Uma retrospectiva de Prakash Ratilal

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Moçambique, 50 anos depois: Da utopia da independência ao abismo das desigualdades

  • O país viu emergir uma nova elite económica, que se apropriou do Estado
  • Mais de 500 mil jovens entram no mercado de trabalho anualmente sem perspectiva
  • Dois terços da população depende da agricultura, mas apenas 2,1% do crédito é destinado ao sector

Meio século depois de proclamar a sua independência, Moçambique encontra-se num cruzamento de paradoxos históricos. De um lado, temos os alicerces heróicos de uma nação construída sobre sacrifício, sangue e solidariedade e, do outro, um presente marcado por desigualdades gritantes, corrupção institucionalizada e uma juventude que luta para se reconhecer nas promessas da República. No ensaio publicado a propósito dos 50 anos de independência, cujas cerimónias centrais decorreram no Estado da Machava, onde apesar da convicção política de que o momento iria lotar o local, a realidade mostrou um oposto com requintes de rejeição ou desinteresse, o economista Prakash Ratilal, expõe, com uma rara franqueza, um percurso, uma travessia épica por mares agitadas: instabilidade, sabotagem externa, guerra civil, reformas económicas dramáticas e tentativas sucessivas de construir um Estado funcional e soberano. Sem fazer vista grossa aos eventos externos, Ratilal denuncia, no documento, que, neste percurso, “o assalto aos bens públicos conduziu à formação de grupos económicos e familiares que se digladiam pelo controlo do Estado”. E, em jeito de conclusão, ele adverte: “Sem combate sério à corrupção, sem meritocracia e sem instituições fortes, a maldição dos recursos pode afundar ainda mais o país”.

Evidências

A independência chegou num momento em que o País tinha apenas 10 economistas formados, 93% de analfabetismo e uma máquina estatal abandonada por mais de 200 mil portugueses. As instituições públicas, as empresas e até os serviços básicos estavam paralisados ou em risco de colapso.

Face a esta realidade, “houve necessidade de improvisar e reinventar-se”, escreve Ratilal. Jovens com apenas a 4ª ou 5ª classe foram chamados a liderar sectores vitais. Um dos marcos foi a criação do Banco de Moçambique, que herdou as operações do Banco Nacional Ultramarino semanas antes da independência. A barragem de Cahora Bassa, outra peça estratégica, foi nacionalizada anos depois após duras negociações com Portugal.

A estratégia era clara, garantir a soberania total e não aceitar passivos da era colonial como dívida legítima. “A dívida era inexequível”, admitiria o então Primeiro-Ministro de Portugal, Vasco Gonçalves, pouco antes da independência.

Contudo, a independência foi encarada como uma ameaça pelos regimes racistas da África do Sul e da então Rodésia do Sul. Com o apoio de potências ocidentais receosas do avanço socialista, iniciou-se uma guerra não declarada de sabotagem económica, ataques armados e terrorismo indiscriminado.

O “relatório Gersony”, encomendado pelos EUA, fala em mais de 100 mil mortos e 5,6 milhões de deslocados internos entre 1977 e 1992. A UNICEF regista 600 mil mortos por causas indirectas, incluindo doenças evitáveis e desnutrição.

Enquanto o Estado tentava sobreviver, o Presidente Samora Machel liderava com austeridade e espírito nacionalista. “Nos anos 80, decidimos entre leite para crianças e medicamentos”, lembra Prakash, ao descrever o colapso quase total das reservas cambiais.

A diplomacia moçambicana passou então a operar com intensidade global: Samora encontrou-se com Ronald Reagan, Indira Gandhi, Margaret Thatcher e até Henry Kissinger, com o propósito de reposicionar Moçambique como país não-alinhado e parceiro viável.

“Os caminhos não eram em linha recta nem plenamente seguros. Muitos sentiram na pele o risco de morte. Houve riscos, houve traições, houve intrigas. Mas a direcção estava coesa, havia muita confiança e solidariedade entre nós, os caminhos e os trilhos iam sendo percorridos”, lembra, completando que erros foram certamente cometidos, mas sempre na busca de soluções que beneficiassem o País. Lá onde se sentia que era necessário formular ou corrigir políticas e actuações, foram tomadas medidas correctivas, de longo alcance.

Da libertação à pilhagem

Um contraste com o presente. Afinal, como anota, o sonho da soberania cedeu lugar à realidade da corrupção institucional. Os exemplos abundam. Em 2016, Moçambique viu-se mergulhado num escândalo financeiro sem precedentes, mais de 2,2 mil milhões de dólares em dívidas ocultas foram contraídas à margem da lei, com garantias do Estado, arrastando o país para o descrédito internacional.

Este episódio travou a um decrescimento económico, agravado pela pandemia de Covid-19 e pelo terrorismo no norte do país. O índice de pobreza disparou para 62,8% em 2020, um retrocesso brutal em relação aos 46% registados em 2014.

O advento da economia de mercado, na sua vertente selvagem, num contexto de fragilidades institucionais, exacerbou os egoísmos, atiçou a pilhagem dos recursos do Estado e, de certa forma, de entidades privadas.

O país viu emergir uma nova elite económica, ligada a círculos políticos e familiares, que se apropriou do Estado. “O assalto aos bens públicos através dos desvios de aplicação das verbas do orçamento, dos concursos e contratos aprovados ao arrepio das normas e das leis, conduziu à formação de grupos económicos e ou de grupos familiares, que visivelmente se digladiam, entre si, para assegurar o controlo das instituições públicas e as agremiações, com prioridade as que dispõem de acesso aos fundos, por via de donativos e ou de créditos, subscritos pelo Estado”, sublinha.

Prosseguindo que nestes processos ilícitos, identificam-se alguns cidadãos que, no passado histórico, defenderam e lutaram pelos nobres ideais de libertação e da independência, pondo em causa a sua reputação e o desprestígio e ineficácia das instituições que, no conjunto, minam a confiança dos cidadãos no Estado.

Os princípios de ética e de transparência públicas têm sido atropelados e banalizados e promovem o desvio dos escassos recursos públicos que poderiam ser alocados para a melhoria de prestação de serviços ao público e a manutenção de infra-estruturas públicas. Estes factos provocam fissuras no tecido social e cultural, e condicionam o desempenho da economia, mantendo-a pouco competitiva.

Ainda no seu ensaio de 14 páginas, o economista escreve que as desigualdades se acentuaram, com esbanjamento e visíveis sinais exteriores de riqueza, que ofendem a dignidade dos moçambicanos. “O incremento da corrupção que tende a ser endémica, a persistência impune de sequestros, atingindo a classe empresarial, corroendo assim o tecido económico e social do País. No conjunto, ao acentuar as incertezas sobre o futuro, acrescentam prejuízos incalculáveis aos cidadãos e às famílias moçambicanas, reduzindo o investimento, aumentando o desemprego e a quebra dos rendimentos das famílias, agravando os níveis de pobreza e da desigualdade”.

Noutro capítulo, descreve que no conjunto, entre outras razões, a falta de sintonia entre a política monetária e a fiscal tem contribuído para sério entrave ao crescimento e desenvolvimento do sector empresarial. As elevadas taxas de juro reais, os atrasos no pagamento de serviços prestados ao Estado penalizam, sobremaneira, as empresas. Acresce que o Estado não tem prestado serviços eficientes aos seus cidadãos. Isso tem gerado conflitos, erupções de violência em vários lugares, causando mortes e destruição de equipamentos e infraestruturas.

Agricultura esquecida, juventude marginalizada

A agricultura, apontada como base do desenvolvimento nacional, permanece abandonada. Dois terços da população vive dela, mas apenas 2,1% do crédito bancário em 2023 foi destinado ao sector agrícola. O país tornou-se importador líquido até de alimentos básicos.

A juventude, por sua vez, vive, segundo ele, numa espiral de desemprego e desesperança. Mais de 500 mil jovens entram no mercado de trabalho anualmente sem perspectiva de emprego formal. O sector informal e a emigração tornaram-se as saídas possíveis.

Uma das luzes ao fundo do túnel é a “Visão 2050: Moçambique inclusivo, próspero e em paz”, documento produzido por mais de 50 moçambicanos de renome. Este plano recomenda que as receitas do gás e da mineração sejam usadas para projectos estruturantes, que promovam emprego e combatam a pobreza.

Entretanto, Prakash Ratilal adverte que “sem combate sério à corrupção, sem meritocracia e sem instituições fortes, a maldição dos recursos pode afundar ainda mais o país”.

Observa ainda que a geração da independência construiu instituições, enfrentou a guerra, resistiu à sabotagem e impôs Moçambique no cenário internacional, mas hoje, parte dessa geração observa com desalento a corrosão ética e a captura do Estado por interesses privados.

Os desafios persistem: má gestão, degradação do tecido social, colapso de serviços públicos e ausência de um projecto de nação inclusivo. Mas, como escreve Prakash, “a juventude deve ousar criar uma nova utopia”.

 

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