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- Foi o comandante de liberalização, mas esbarrou no proteccionismo estatal
- Assinou autorização da Fastjet, mas viu a decisão ser anulada por pressão política
- De Abreu cai por tentar mudar as regras eJoão Matlombe garante que o status quo prevaleça
- Dias antes de exoneração, De Abreu foi denunciado no GCCC e iniciou assassinato de carácter
A exoneração de João de Abreu da presidência do Conselho de Administração do Instituto de Aviação Civil de Moçambique (IACM) não foi um episódio isolado, nem tampouco fruto exclusivo da sua vontade. A versão oficial aponta para um pedido de demissão prontamente aceite, mas os bastidores revelam um enredo muito mais denso, desde pressões políticas, proteccionismo económico e a velha batalha entre a promessa de liberalização do espaço aéreo e a realidade de um monopólio defendido a todo o custo. Entre os factores que precipitaram a sua saída destacam-se dois episódios decisivos, o primeiro foi a turbulência gerada em torno da entrada da companhia de baixo custo Fastjet no mercado nacional, visto como ameaça letal para a posição monopolista da Linhas Aéreas de Moçambique (LAM) e, o segundo, a denúncia feita à Autoridade Reguladora da Concorrência (ARC) de cobrança de valores indevidos aos passageiros, corroendo ainda mais a frágil confiança no sistema. O processo de licenciamento de Fastjet, conduzido pelo IACM, parecia finalmente materializar a liberalização do espaço, mas quando tudo indicava que a autorização seria entregue, o ministro dos Comunicações e Logística, João Matlombe, interveio directamente e ordenou que a licença não fosse emitida, entendendo a operação como uma “sabotagem” contra a LAM. Fontes próximas do processo relatam que, quando a Fastjet tentou recorrer a instâncias superiores, foi-lhe transmitido que, do ponto de vista técnico, tudo estava concluído. O veto vinha das ordens de “cima”, as mesmas que autorizaram a exoneração de Comandante de Abreu, como é tratado nos círculos de aviação, com “efeitos imediatos”.
Nelson Mucandze
Desde o início da década de 1990, quando Moçambique iniciou as primeiras experiências de abertura económica, que o sector da aviação surge como promessa nunca cumprida. Foram várias as companhias privadas que tentaram ocupar espaço — entre elas, a Air Corridor, a Kaya Airlines ou a Solenta Aviation — mas nenhuma resistiu à combinação letal de custos operacionais elevados, entraves burocráticos e a sombra omnipresente da transportadora de bandeira, Linhas Aéreas de Moçambique (LAM), um fardo duro para o orçamento do Estado, mas uma vaca leiteira para uma elite predadora e sindicatos que lucram com comissões.
A LAM, criada em 1980 para substituir a histórica DETA, foi, durante décadas, símbolo de soberania nacional. Contudo, com o passar dos anos, transformou-se numa empresa cronicamente deficitária, sobrevivendo graças a injecções financeiras do Estado e a um regime de protecção que bloqueia a concorrência. A liberalização do espaço aéreo, repetidamente anunciada em discursos oficiais e planos estratégicos, nunca saiu verdadeiramente do papel.
A exoneração de João de Abreu da presidência do Conselho de Administração do Instituto de Aviação Civil de Moçambique (IACM) não é apenas a queda de um gestor. É sobretudo o reflexo de uma indústria aérea que, há mais de uma década, se move em terreno turbulento, arrastando consigo escândalos, decisões políticas contraditórias e uma companhia de bandeira, a LAM, que se tornou um símbolo de sobrevivência artificial com sustento político, mantida por decretos mais do que por mérito operacional.
De Abreu assinou autorização da Fastjet em Março, mas ordens de cima bloquearam
O caso Fastjet é a ferida exposta deste sistema. A transportadora sul-africana de baixo custo, em parceria com a Solenta Aviation, vislumbrava uma oportunidade única, que se resumia em instalar-se em Moçambique, voando sob matrícula nacional, e oferecer passagens a preços competitivos. Um investimento superior a dois milhões de dólares foi canalizado em formação de pessoal, contratos de handling, catering, fornecimento de combustível e licenças.
A autorização foi assinada em Março pelo próprio João de Abreu, que comunicou à empresa a existência da permissão, prometendo a entrega formal do documento ao regressar de uma viagem ao Zimbabué.
Mas o dossier foi imediatamente bloqueado em instâncias políticas. O poder político não via com bons olhos a entrada de um operador que poderia canibalizar o já reduzido mercado da LAM. Só para se ter ideia, enquanto neste momento em que a LAM anuncia aquisição de uma Bombardier Q400 (tractor aéreo) a Fastjet tinha já instalado três jactos Embraer ERJ 145.
A decisão foi clara: proteger a companhia estatal, mesmo que isso significasse engavetar uma autorização formalmente emitida. O resultado foi devastador. Aviões da Fastjet, já estacionados no hangar de Mavalane, tiveram de ser retirados. E relata-se que voaram rumo ao Zimbabué. Outros seguiram o mesmo destino. Para os investidores, restou a amarga sensação de ter sido vítima de fraude estatal.
Quando a Fastjet tentou recorrer às instâncias superiores, a resposta foi seca: a nível da aviação civil, o processo estava resolvido; a ordem para travar vinha “mesmo de cima”. Assim se consolidava a ideia de que a liberalização do espaço aéreo moçambicano não passa de promessa, sempre adiada em nome da sobrevivência de uma companhia de bandeira debilitada, mas politicamente intocável.
Enquanto o processo seguia encalhado, nos bastidores, circulam relatos de chantagem, com emissários sugerindo participações accionistas para a entrada da Fastjet-Solenta, levando algumas correntes a concluir que a recusa tinha a ver com a institucionalização de boladas, uma percepção perigosa para um governo que está no início do consulado.
LAM: O epicentro da turbulência
O pano de fundo é um só: a crise crónica da LAM. A companhia de bandeira, há anos a operar no vermelho, tornou-se o epicentro de um labirinto de decisões políticas e económicas que minam a liberalização do espaço aéreo.
A ARC denunciou recentemente a cobrança ilegal de tarifas aos passageiros, num processo que expôs uma prática abusiva e comprometedora. A AdM, pressionada pela fragilidade da companhia, foi obrigada a renegociar dívidas e a reestruturar contas, numa espécie de “amnistia financeira” cujos detalhes permanecem fechados a sete chaves.
Não é a primeira vez que a política protege a LAM à custa da concorrência. A companhia já foi, em anos anteriores, alvo de resgates financeiros, manobras administrativas que, em vez de resolverem os problemas estruturais, os perpetuaram. A liberalização do espaço aéreo, promessa feita ainda nos anos 2010, foi sucessivamente adiada. No lugar da concorrência, ergueu-se um muro de proteccionismo.
A queda de João de Abreu
A pressão resultante desta agitação foi insustentável para João de Abreu. Embora tivesse sido o rosto, em governos anteriores, da promessa de abrir o espaço aéreo, viu-se encurralado entre a assinatura de autorizações formais e a ordem política de travar a entrada da Fastjet. Enquanto para as companhias aéreas a sua palavra era lei; para o poder político, era apenas um tecnocrata que se tinha excedido.
Talvez isso explique também a revisão, em finais de Junho, do estatuto orgânico para o Instituto de Aviação Civil de Moçambique (IACM), que revogou o decreto anterior (n.º 70/2016) e ajustou a organização e funcionamento do IACM às suas ambições e, desta vez, com maior intervenção política.
Não é por acaso que a sua saída, anunciada como pedido de demissão, aconteceu com a nota de “efeitos imediatos”. Dois dias depois, o ministro dos Transportes e Logística, João Jorge Matlombe, deslocou-se ao IACM para uma visita que muitos interpretaram como acto de verificação, confirmar se o “comandante” tinha compreendido a urgência da decisão.
No entanto, não obstante o desgaste político, o Evidências apurou que o pedido renovado de pedido de demissão foi antecedido de perseguição de assassinato de carácter ecoada pelos meninos de recados e alguns órgãos de comunicação controlados, o que sugere uma busca obsessiva de encontrar a lacuna de um homem que autorizou abertura de espaço aéreo a Fastjet num momento delicado, denunciou a LAM à ARC, e foi a televisão dizer que, de facto, tinha sido ele. Aliás, chegou a dizer que em condições normais, sem sindicatos de roubo na LAM, uma hora de voo devia custar entre 60 e 65 dólares.
O ponto mais alto deste percurso é a acusação de gestão danosa à IACM, pelo Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC). O processo número 14/11/P/2020 já foi submetido pelo GCCC ao Tribunal Judicial da Cidade de Maputo (TJCM) para acções subsequentes. João de Abreu é acusado juntamente com o chefe da Unidade Gestora e Executora de Aquisições (UGEA), no IACM, César Cavele, entre outros colegas, de prática de crimes de violação de regras de gestão, abuso de cargo ou de função, participação económica em negócios e de pagamento de remunerações indevidas.
Fontes ligadas ao sector garantem que esta não foi a primeira vez que apresentou a sua demissão, já no governo anterior teria tentado abandonar o cargo, sem sucesso. A conjugação destes elementos foi explosiva, expondo fissuras no sistema e corroendo a autoridade de Abreu, que já em governos anteriores havia ensaiado a demissão, sempre travado por circunstâncias de momento. Desta vez João Matlombe, que se mantém mudo em relação ao pedido da Fastjet, levou menos de 24 horas para autorizar uma exoneração com efeitos imediatos, e dois dias depois visitou o IACM, talvez para se certificar da saída do de Abreu, bem antes do pedido e a resposta chegar ao Conselho de Ministros, responsável por decretar a nomeação daquele. De facto, no IACM, na última sexta-feira, o ministro Matlombe não foi recebido pelo Conselho de Administração daquela instituição, mas sim pelos directores
A exoneração de João de Abreu não é um episódio isolado. É antes o retrato de uma indústria capturada por interesses contraditórios. O IACM, que deveria ser o guardião da regulação, enfrenta agora o confronto político. Enquanto a ARC, que ousou denunciar práticas ilegais da LAM, encontrou-se sozinha, sem resposta clara do executivo; a AdM, obrigada a apagar fogos financeiros alheios, tornou-se cúmplice involuntária de uma gestão que privilegia a sobrevivência da LAM sobre a sustentabilidade do sector.



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