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- Novo líder da Aviação Civil em dilema entre proteger a LAM e abrir espaço à Solenta
- O documento de autorização está assinado, mas foi barrado pelo ministro João Matlombe. É desta vez que será entregue à Solenta?
- LAM continua na incerteza. Afinal Dane Kondic ainda não assinou renovação do mandato e continua em Portugal, país ao qual rumou um dia depois do “dito por não dito”
Num movimento antecipado há uma semana, o Conselho de Ministros confirmou oficialmente a exoneração de João de Abreu da presidência do Conselho de Administração do Instituto de Aviação Civil de Moçambique (IACM) e a nomeação de Emanuel José da Conceição Chaves para o cargo. A mudança na liderança do regulador aeronáutico ocorre num momento crítico, com o processo de liberalização do mercado aéreo doméstico, um dos maiores desafios de Chaves, paralisado num silêncio ensurdecedor e aparentemente opaco, enquanto a Linhas Aéreas de Moçambique (LAM) continua numa situação de gestão frágil. Paralelamente à crise da LAM, desenrola-se outro drama que ilustra os obstáculos à concorrência e à tão propalada liberalização. A Solenta Aviation, uma empresa moçambicana de capital maioritariamente nacional, detentora de um Certificado de Operador Aéreo (AOC) válido e de uma licença de exploração para transporte aéreo não-regular, aguarda há meses uma decisão do IACM sobre o seu pedido de extensão para operar voos regulares domésticos. Oficialmente não há resposta, no entanto o Evidências sabe que a nível do regulador o processo já havia terminado, porém uma ordem superior, supostamente emanada do então presidente João de Abreu, terá determinado o seu imediato “recorte” e não entrega. As licenças, já processadas e assinadas, terão sido guardadas uma gaveta, num acto interpretado como obediência a uma directiva política não oficial.
Evidências
Uma semana depois do afastamento de João Martins de Abreu da presidência do Instituto de Aviação Civil de Moçambique (IACM), o Conselho de Ministros confirmou oficialmente a exoneração e nomeou Emanuel José da Conceição Chaves como novo presidente do Conselho de Administração. A decisão é apresentada como uma aposta na renovação da autoridade reguladora do sector, mas a mudança ocorre num momento em que a aviação civil enfrenta uma das fases mais críticas da sua história recente.
A nomeação de Chaves foi recebida com sinais de confiança em alguns sectores. A sua experiência técnica e o reconhecimento da sua carreira são vistos como factores que poderão trazer alguma estabilidade à instituição. Ele é reconhecido como um quadro de perfil técnico, mais próximo da fidelidade académica do que das conveniências partidárias. Formado e experimentado no sector aeronáutico (foi PCA dos Aeroportos de Moçambique), construiu a sua reputação pela seriedade com que aborda os temas de aviação e pelo domínio das normas que regem o espaço aéreo.
Chaves distingue-se pela prudência, mas sem a subserviência que frequentemente marca carreiras dependentes do poder. A sua cautela extrema, característica que o acompanha em todas as funções que exerceu, é interpretada como uma forma de preservar a autonomia técnica e evitar precipitações em sectores tão sensíveis como o da aviação civil.
Ainda assim, a sua trajectória não está isenta de polémicas. Raramente deixa legado visível nas instituições por onde passa, e é recordado que, no período em que esteve ligado à gestão aeroportuária, foi sob a sua supervisão que se cometeu um dos maiores “pecados” do sector, que é a construção do aeroporto de Xai-Xai. A obra, alvo de críticas pela sua pertinência e viabilidade económica, tornou-se exemplo de investimento público pouco racional, com baixa utilização e sem retorno compatível com os recursos aplicados.
Contudo, os desafios que o esperam são de monta e exigem mais do que conhecimento técnico. A liberalização efectiva do espaço aéreo, prevista na legislação nacional e em compromissos internacionais assumidos pelo Estado moçambicano, continua bloqueada por interesses contraditórios, pressões de lobbies e pela insistente protecção da companhia de bandeira, a Linhas Aéreas de Moçambique (LAM), cuja sobrevivência é cada vez mais posta em causa.
Por trás desta cortina de ferro, operam suspeitas de lobbies poderosos. Fontes sugerem que dirigentes e interesses instalados na própria LAM exercem uma influência desproporcional sobre o IACM e até sobre o Ministério dos Transportes e Logística, “arrastando” o Estado para uma posição que defende interesses corporativos em detrimento do interesse nacional e do cumprimento da lei.
O peso da liberalização inacabada
Mas a questão transcende as fronteiras nacionais. Moçambique é membro da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) desde 1977 e signatário de acordos regionais como a Declaração de Yamoussoukro, que consagra a liberalização dos céus do continente. A postura actual de Moçambique, de aparente fechamento, coloca-o em rota de colisão com estas obrigações. Organismos como a Comissão de Aviação da SADC ou a AFCAC (Agência Africana de Aviação Civil) podem, em última análise, aplicar auditorias mais intrusivas e até sanções reputacionais, isolando Moçambique no cenário da aviação continental.
A Solenta, uma empresa moçambicana com Certificado de Operador Aéreo (AOC) válido e licença para voos não-regulares, solicitou formalmente ao IACM, a 28 de Fevereiro do ano em curso, a extensão da sua licença para operar voos regulares domésticos, um direito consagrado na Lei da Aviação Civil e na Política de Aviação Civil do governo, que liberalizaram o mercado. O processo, segundo documentação a que o Evidências teve acesso a partir de uma fonte do IACM, seguiu todos os trâmites. Submeteu todos os manuais operacionais, foi sujeita a uma auditoria de aptidão técnica em Abril, que aprovou a sua capacidade, e liquidou todos os emolumentos calculados pelo IACM, um valor significativo pago ao Estado como “contribuição”, não como “compra” de autorização.
Aqui, a narrativa oficial desvanece-se e entra o reino da opacidade. Fontes da Solenta relatam que, após o pagamento, os técnicos do IACM procederam à emissão e assinatura de todos os documentos: a emenda ao AOC e as licenças de operação para os voos regulares. Os documentos estariam, na última semana de Maio, no guiché de entrega, prontos para ser levantados pelo requerente.
Foi então que, segundo relatos de várias fontes que estiveram presentes nas instalações do IACM, ocorreu o incidente mais revelador. Uma ordem verbal, supostamente emanada do gabinete do então presidente João de Abreu, mandou “recortar” (reter) imediatamente a entrega dos documentos. As licenças, já assinadas e processadas, terão sido fisicamente recolhidas e guardadas numa gaveta. “Se estivéssemos milagrosamente no gabinete do Comandante Abreu, podia mostrar-lhe a gaveta. Existem, foram assinados”, afirmou uma fonte, num misto de incredulidade e frustração. O acto é interpretado como uma obediência cega a uma directiva política não escrita, anulando um processo técnico concluído com sucesso.
Desde então, o IACM mantém um “silêncio consistente”. Não há qualquer comunicação oficial a explicar o indeferimento, o adiamento ou sequer a existência de um problema. Este silêncio é, em si mesmo, uma violação dos prazos legais de resposta e um sinal alarmante de que as decisões estão a ser tomadas noutra arena que não a da meritocracia técnica.
Documentos chegaram a ser assinados em Maio, mas foram retidos no gabinete do antigo presidente do IACM, numa aparente decisão de última hora. O silêncio do regulador perante solicitações formais reforça a percepção de que se privilegia a protecção da LAM, mesmo à custa do incumprimento das próprias normas nacionais e internacionais. “O governo está a ir contra os instrumentos do próprio funcionamento. É como se uma pessoa estivesse a amputar parte dos seus membros para proteger outros fins”, afiança uma fonte abalizado da matéria.
Diante deste cenário, a Solenta Aviation, que pretende operar sob a marca Fastjet, viu-se obrigada a deslocar as suas aeronaves, que estavam no hangar dos Aeroportos de Maputo, para o Zimbabwe. Apesar de estarem registadas com matrícula moçambicana e tripuladas por profissionais nacionais, voam a partir daquele país, numa conjuntura em que o principal concorrente interno, a LAM, dispõe apenas de uma aeronave (problemática) com matrícula nacional.
Chaves herda, assim, um dossier carregado de desconfiança. E caberá a ele provar se a liberalização será uma promessa finalmente cumprida ou se continuará a ser um exercício de retórica diplomática, travado por interesses internos.
A sombra da LAM
A situação da Linhas Aéreas de Moçambique continua delicada e longe de uma solução estrutural. A gestão da companhia tem sido marcada por episódios de desorganização, decisões controversas e uma incapacidade persistente de recuperar viabilidade financeira e reputacional.
Um dos exemplos mais comentados é a compra precipitada de uma aeronave, decisão considerada desastrosa por analistas e que só agravou os problemas de tesouraria. Paralelamente, a frota da companhia enfrenta sucessivas avarias, comprometendo a regularidade da operação.
É um dos legados de Dane Kondic, gestor estrangeiro contratado para reestruturar a companhia, que no momento encontra na indefinição. Actualmente em Lisboa, com contrato não renovado, Kondic aguarda orientações claras da Comissão de Gestão. A demora em renovar o contrato, depois da corrida desesperada para anunciar que não havia dúvidas sobre a extensão de contrato para um ano, aumenta a incerteza sobre o rumo da LAM.
Na semana passada, um avião alugado esteve avariado na África do Sul. De imediato, as questões levantadas sobre o porquê continuar a trabalhar com esta companhia que sempre aluga os seus voos no modelo oneroso de custos alugando via ACMI (um contrato de leasing de aeronaves onde uma empresa fornece não só a Aeronave, mas também a Tripulação, a Manutenção e o Seguro, ficando a cargo da contratada a responsabilidade pela parte operacional do voo) foram respondidas ao Evidências por informações de que a LAM pode estar impedida de voar para a África do Sul com aeronaves próprias (apenas 1), sob o risco de estas serem penhoradas devido a processos judiciais relacionados com a antiga gestora, a Fly Modern Ark (FMA). Se confirmada, esta limitação coloca em causa a credibilidade internacional da companhia e expõe fragilidades profundas da sua gestão.
Do resto, a aviação civil é, por natureza, um sector regulado, mas em Moçambique as fronteiras entre regulação e proteccionismo têm-se mostrado perigosamente difusas. O argumento de que a concorrência ameaça a sobrevivência da LAM é frequentemente invocado para justificar atrasos, indeferimentos tácitos ou simples silêncios administrativos do regulador. Contudo, entre os entendidos do sector, a estratégia é contraproducente.
Longe de fortalecer a transportadora de bandeira, o isolamento apenas prolonga a sua agonia. Experiências de países vizinhos, como Tanzânia ou África do Sul, mostram que a abertura do mercado pode coexistir com companhias nacionais fortes, desde que estas sejam geridas com rigor e profissionalismo.
A chegada de Emanuel Chaves ao IACM ocorre, portanto, num cenário de turbulência. O novo presidente não terá apenas de gerir a instituição reguladora, terá de provar que o órgão pode actuar com independência, transparência e imparcialidade.
A liberalização do espaço aéreo, já consagrada na lei, não pode continuar a ser adiada sob pretexto de proteger uma companhia que, ao longo das décadas, acumulou mais fracassos do que sucessos. Se Chaves optar por dar prioridade ao interesse público, poderá marcar uma viragem histórica no sector. Se, pelo contrário, ceder às pressões dos lobbies e perpetuar a lógica de proteccionismo, arrisca-se a comprometer não só a sua reputação, mas também a credibilidade do Estado moçambicano perante o mundo. No fundo, o que está em causa é a definição do futuro da aviação civil nacional.

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