Cabo Delgado — oito anos de terror: Há quem lucra enquanto pessoas morrem

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  • TotalEnergies, Ruanda e as grandes famílias somam ganhos em meio ao sangue
  • Enquanto famílias fogem, elites moçambicanas capturam terras estratégicas
  • Benefícios da Total vão desde concessões exclusivas à facilidade de impor mais vontades
  • Silenciosamente, o Ruanda está a construir um império lucrativo em Cabo Delgado

Quando, em 2017, as primeiras incursões armadas começaram a incendiar aldeias e a deslocar comunidades em Cabo Delgado, poucos previam que o conflito se arrastaria por tantos anos. Este Domingo, 05 de Outubro de 2025, o conflito em Cabo Delgado completou oito anos em 2025. São apenas menos dois do que os dez que durou a luta de libertação nacional de Moçambique, mas, ao contrário dessa guerra histórica, o fim do terrorismo ainda não está à vista e o balanço é conhecido: milhares de mortos, mais de um milhão de deslocados ao longo do conflito, ondas periódicas de novos ataques e uma província que ainda não recuperou a paz. Mas há outra pergunta que ganha peso: quem saiu a ganhar com este conflito? Um levantamento feito pelo Evidências mostra, até aqui, dois grandes beneficiários — empresas do gás (em particular a TotalEnergies) e parceiros militares externos (com destaque para Ruanda) — e um preço humano que não cabe nas contas. 

Reginaldo Tchambule e Elísio Nuvunga

Antes da alvorada de 05 de Outubro de 2017, Mocímboa da Praia ainda dormia sob o silêncio da lua e os ventos mornos da costa. Mas a paz foi rasgada quando cerca de 30 homens armados invadiram a vila — atacaram três postos policiais, mataram civis e agentes da polícias, e saquearam arsenais com frieza calculada.

Moradores fugiram em desespero, enquanto as chamas consumiam edifícios públicos e casas. Foi o início de uma guerra inesperada, silenciosamente preparada e brutalmente anunciada — o primeiro ataque terrorista em Cabo Delgado.

Foi ali, naquela madrugada cinzenta, que se abriu um novo capítulo de terror no País que no último Domingo completou oito anos, faltando somente dois para igualar-se ao período da Luta Armada de Libertação Nacional (1964-1974) e equivalente à metade do tempo que durou a guerra civil.

O conflito já provocou mais de 1,3 milhão de deslocados e milhares de mortos, segundo dados das Nações Unidas e da organização ACLED. Os ataques continuam. Em Agosto de 2025, mais de 46.000 pessoas foram deslocadas num curto espaço de dias, segundo agências humanitárias e a ONU. Já em finais de Setembro ocorreram ataques em Macomia, Muidumbe e outras localidades que resultaram em mortos e casas queimadas.

Este sábado, nas vésperas de se assinalarem oito anos do conflito, os terroristas alargaram as suas acções para Nampula, tendo entrado no distrito de Memba onde incendiaram 45 casas em dois povoados, um do posto administrativo de Lúrio e o outro no posto administrativo de Chipene.

Essas novas ofensivas confirmam que, apesar de operações militares pontuais, com apoio das forças estrangeiras, e de ganhos territoriais para o Estado, a ameaça insurgente mantém capacidade de acção e provoca crises humanitárias recorrentes.

Desde 2017, a pergunta que não se quer calar é sempre a mesma: quem são os atacantes, o que querem e a mando de quem? Passam hoje oito anos desde o primeiro ataque em Mocímboa da Praia, e ainda não há respostas claras. O vazio de informação oficial, a complexidade do conflito e a sobreposição de interesses internacionais transformaram a insurgência em algo que desafia análises simples.

Há quem soma ganhos em meio ao caos

Entretanto, à sombra das ruínas e do desespero de famílias humildes, consolidou-se um sistema onde multinacionais, aliados externos e elite política nacional acumularam ganhos políticos, económicos e estratégicos. Há pelo menos multinacionais, forças ruandesas e algumas famílias poderosas identificadas entre os actores que tem estado a somar ganhos, em meio à guerra.

O projecto Mozambique LNG, liderado pela TotalEnergies e avaliado em cerca de US$ 20 mil milhões, é a espinha dorsal das atenções internacionais em Cabo Delgado. A ofensiva de 2021 contra Palma paralisou o projecto e levou a Total a declarar força maior, entretanto, o esforço para retomar obras tem sido contínuo e o Governo moçambicano anunciou recentemente que as condições para a retoma já estão criadas.

Chamadas por Maputo para estabilizar áreas-chave desde 2021, as forças ruandesas tornaram-se um actor central na estratégia de segurança de Cabo Delgado. A intervenção de Kigali recebeu apoio financeiro externo — por exemplo, injecções da União Europeia através da European Peace Facility — e gerou contratos de logística, segurança e fornecimento que, por relatos da imprensa e análises, movimentaram somas significativas.

Para além do apoio directo (equipamento, transporte, pagamento de operações), a formalização da presença ruandesa (recentes acordos e um Status of Forces Agreement) criou condições legais e económicas para que empresas associadas e o próprio aparelho do Estado ruandês obtivessem benefícios monetários e políticos.

Dados públicos e investigações jornalísticas mostram o que Ruanda não só ganhou prestígio diplomático e militar, como também obteve ganhos económicos directos (contratos, fornecimentos, logística) e indirectos. Não se trata apenas de “ajuda”; trata-se de uma presença com benefícios financeiros fabulosos e que gera fluxos financeiros e interesses estratégicos.

Uma das fontes de ganhos do Ruanda tem sido o financiamento externo que sustenta a sua presença em Cabo Delgado. Em 2022 e 2024, a União Europeia, sob lobby da França, aprovou dois financiamentos separados de 20 milhões de euros cada (totalizando 40 milhões) para apoiar as tropas de Paul Kagamé em Cabo Delgado, um apoio controverso tendo em conta que as tropas regulares de Moçambique da mesma entidade só receberam treinamento e apoio material não letal.

O Ruanda ganha também no contexto empresarial. Tal como documentou o Evidências, em reportagem, em 2023, a TotalEnergies contratou empresas ligadas a interesses ruandeses para serviços de segurança e construção de infra-estruturas no projecto. Essas contratações implicam transferência de contratos e receitas a empresas ligadas a players que interagem com o teatro militar.

Sob o escudo da segurança, empresas ligadas à Frente Patriótica Ruandesa (RPF) — o partido no poder em Kigali — expandiram-se em Palma e arredores, controlando sectores-chave ligados ao megaprojeto de gás da TotalEnergies.

Segundo documentou o Evidências, no centro desta rede está a Crystal Ventures, a poderosa holding do partido de Paul Kagamé, que, através da Macefield Ventures e das suas subsidiárias, domina hoje a construção, a segurança e a mineração na região. Criada em Fevereiro de 2022, Macefield Ventures Mozambique, detida quase totalmente pela casa-mãe ruandesa, passou a gerir empresas como a NDP (obras em Afungi) e a Isco Security (protecção privada ao projecto da TotalEnergies).

A mesma holding detém a Radar Scape Mozambique, subsidiária de uma empresa ruandesa com o mesmo nome, contratada pela petrolífera francesa e pela Ponticelli para construir uma central solar de 5 MW, e pela TotalEnergies para reabilitar casas em Quitunda. Já a Strofinare Moçambique, reestruturada em 2023, cedeu 90% do capital à Macefield Ventures, coincidindo com o aumento do contingente ruandês em Ancuabe, distrito rico em rubis e grafite.

Analistas apontam para uma coincidência entre presença militar e interesses económicos, com Kigali a garantir contratos milionários enquanto mantém o controlo da segurança em zonas estratégicas.

Com parcerias franco-ruandesas apoiadas pela TotalEnergies e pela diplomacia francesa, a guerra em Cabo Delgado criou novos vencedores invisíveis: as empresas que prosperam à sombra do terror — e entre elas, as ruandesas estão na linha da frente.

O paradoxo: investimento e exclusividade vs população deslocada

A TotalEnergies, operadora do megaprojeto de gás natural liquefeito (GNL) em Afungi, suspendeu as suas operações em 2021 após o ataque a Palma, mas ensaia um regresso com mais poder. Embora, por ora não se possa falar de lucros, o conflito permitiu-lhe renegociar condições de segurança e consolidar o controlo total da área de exploração, agora protegida por forças ruandesas e segurança privada, em regime de ilha e com sérias restrições de acesso, como se fosse um país dentro de um país.

Fontes do sector revelam que a petrolífera está a incorporar custos de segurança não previstos no contrato inicial — valores que podem ultrapassar a fasquia de biliões de dólares e que serão considerados “custos recuperáveis”. Isso significa que o Estado moçambicano receberá menos receitas líquidas, já que parte dos lucros será usada para compensar esses novos encargos.

“A guerra aumentou o risco e justificou a revisão dos contratos. A TotalEnergies saiu fortalecida, com o projecto protegido e o Governo dependente”, observa um especialista ouvido pelo Evidências.

Antes de a TotalEnergies assumir o controlo, a Anadarko Petroleum,  a empresa norte-americana descobriu e obteve licença do gás na bacia do Rovuma. Embora tenha vendido a sua participação à Total em 2019 por cerca de 3,9 mil milhões de dólares, o conflito acabou por valorizar indirectamente o investimento, já que a nova operadora francesa manteve praticamente todos os contratos e estruturas criadas pela Anadarko.

Especialistas afirmam que, com a militarização de Cabo Delgado e o isolamento de Afungi, os activos da Anadarko ganharam segurança estratégica e evitaram nacionalizações ou redistribuições contratuais.

“O conflito serviu para consolidar o modelo de exclusividade criado desde a era Anadarko, agora blindado pela presença militar estrangeira”, nota um investigador e especialista que temos vindo a citar.

Enquadram-se dentro do regime de exclusividade a que a fonte se refere, os controversos contratos de concessão do Terminal Marítimo de Gás Natural Liquefeito (TMG-LNG) e de Instalação de Descarga de Materiais (Material Offloading Facility – MOF), assinados em 2016 e actualizados em 2019, com condições mais favoráveis para os investidores.

Os referidos contratos são um ganho do conflito em Cabo Delgado. Antes da guerra, o Governo tinha desenvolvido planos para construir a sua base logística em Pemba, que seria propriedade da empresa Portos de Cabo Delgado.

Com o conflito, as multinacionais, conseguiram mover as placas tectónica deste importante infra-estrutura para Palma, forçando ainda o Governo a concedê-las o direito de construir o seu próprio Terminal Marítimo de LNG e a sua própria Instalação de Descarga de Materiais (Material Offloading Facility – MOF), infra-estruturas que constituem base logística de apoio à construção da planta de liquefacção do gás em Palma, em regime de operação exclusiva.

As grandes famílias e a sombra de expropriação de terras ricas e estratégicas

Enquanto o terrorismo e a violência se espalham em Cabo Delgado, alguns sectores da elite política moçambicana transformaram a instabilidade em oportunidade económica. Famílias ligadas ao poder e a altos funcionários do Governo surgem cada vez mais associadas à apropriação de terras, muitas vezes em áreas afectadas por deslocamentos forçados, reassentamentos e megaprojectos.

Relatórios da sociedade civil e investigações jornalísticas apontam que terras em zonas estratégicas, próximas de Palma, Mocímboa da Praia e Ancuabe foram transferidas para empresas e indivíduos ligados a figuras do Governo, em alguns casos para exploração agrícola, imobiliária ou mesmo para futuros projectos industriais.

Em entrevista ao Jornal Sinal Aberto em 2023, o antigo jornalista, historiador e académico Yussuf Adam, o qual tem feito várias pesquisas sobre o assunto, disse que, afinal, enquanto muitos moçambicanos fogem desesperados de suas terras há quem fica a ocupar as suas terras consideradas estratégicas.

No caso específico de Afungi, a combinação de megaprojectos como o GNL da TotalEnergies, presença militar estrangeira e reassentamentos criou terreno fértil para que famílias ligadas ao poder formalizassem direitos sobre terrenos altamente valorizados, enquanto a população local permanece sem acesso às suas casas ou áreas de subsistência.

“Segundo os deslocados, quem vai ganhar com esta situação são as empresas de exploração de gás e petróleo e os políticos e detentores do poder de Estado, porque já não vão pagar indemnizações a essas populações. Como não estão no terreno e não têm o DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra), nem documentos de identidade porque tudo foi queimado pela guerra, quando voltarem, ninguém lhes vai dar ouvidos”, revelou o pesquisador..

Na narrativa tribal, algumas das tribos mais representativas de Cabo Delgado tem se queixado de estarem a ser ser vítimas de um processo de land grabbing, por parte da elite Maconde.

“Eles dizem que são ‘epothas’, escravos em Makua ou Kimwani, ou seja, aqueles que não têm direitos de nenhum tipo. Por isso afirmam: ‘deixamos de ser donos da terra para sermos vienes’, isto é, forasteiros na terra dos outros. Normalmente, o viente recebe terra dos donos dela, mas não pode plantar árvores e tem que dividir a sua produção com os donos da terra”, descreve na sua entrevista Adam.

Parte dos indivíduos associados a esta elite tinham, inclusive, planos de construção de pequenos hubs logisticos (pequenas bases logísticas privadas), sobretudo em Palma e Mocímboa, o que levou a choques severos com outros interesses já instalados no local. André Hanekom, sul-africano, morto em circustâncias estranhas, após ser detido acusado de financiar terrorismo, era dono de uma pequena base logística que se localiza dentro de um território onde gravitam interesses de quem detem poder, o que, segundo algumas teorias terá sentenciado o seu destino.

João Feijó alerta que conflito beneficia interesses externos e internos

Batante conhecido pela sua pesquisa persistente sobre Cabo Delgado, o pesquisador João Feijó, especialista em dinâmicas sociais e conflitos no Norte de Moçambique, faz uma leitura dura e desiludida sobre os oito anos de terrorismo em Cabo Delgado, destacando que o conflito beneficia interesses externos e internpos, enquanto populações continuam abandonadas e vulneráveis.

Segundo o investigador, o conflito armado está longe de terminar porque há quem ganha com ele. Para além dos interesses corporativos e ajuda militar camuflada, Feijó destaca os senhores da guerra que lucram com o sangue e sofrimento.

“Guerra implica fornecimento de armas, com contratos que não são auditados pelo Tribunal Administrativo. Há interesses, há lucros e há quem vive disso”, denuncia.

Feijó destaca o Ruanda como um dos países que mais tem lucrado com o envolvimento militar em Cabo Delgado. “O Ruanda beneficia-se porque consegue modernizar as suas tropas, afirmar-se como potência regional e captar financiamentos directos e indirectos. Os contratos entre Moçambique e Ruanda não são públicos, não sabemos quanto custam nem o que está em jogo”, afirma.

Para Feijó, não há indicadores de que a guerra esteja a abrandar. Pelo contrário, o grupo insurgente tem consolidado a sua presença nas zonas costeiras, onde estabelece laços com as comunidades locais.

“Eles fazem negócios, recrutam, recolhem informações e encontram abrigo nas aldeias. É uma guerra de paciência. Só se vence conquistando o coração das pessoas com saúde, educação e serviços públicos”, explica.

Mas, segundo o pesquisador, as fragilidades institucionais e a má gestão dos recursos tornam difícil esse processo. “Sem capacidade de oferecer alternativas, o Estado empurra as populações para as cidades, provoca o caos e, nesse caos, os insurgentes alimentam a narrativa de que o governo não protege nem cuida das pessoas”, analisa.

O pesquisador teme que, sem reformas profundas, a violência possa espalhar-se para outras regiões do país. “Já houve ataques em Balama e Nampula. Se continuarmos assim, Moçambique corre o risco de fragmentar-se em múltiplos focos de conflito difíceis de controlar pelas forças de defesa”, afirma.

A solução, segundo Feijó, passa por uma mudança radical no modelo económico: “É preciso criar projectos de trabalho intensivo, investir na agricultura, na agroindústria e no comércio local. A indústria extractiva arranca terras, destrói o ambiente e não gera empregos. Os lucros ficam nas mãos de estrangeiros e de uma minoria política.”

Feijó aponta ainda para a conivência de certos sectores da sociedade civil, que, segundo ele, perderam a capacidade crítica por dependerem de financiamentos das mesmas embaixadas e instituições internacionais envolvidas no sistema. “Há todo um ciclo de dependência que beneficia poucos e perpetua o sofrimento da maioria”, resume.

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