Somos cúmplices: Fomos arrastados a legitimar a vitória da mama Samia Suluhu

EDITORIAL
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Sem razões publicamente justificáveis, o Presidente da República, Daniel Chapo, preferiu ausentar-se da Cimeira de Turismo de Vilankulo, um evento estratégico para a economia do país, para assistir à tomada de posse de Samia Suluhu Hassan, na Tanzânia. Uma escolha aparentemente diplomática, mas politicamente ruidosa, feita em detrimento da sensatez e do simbolismo que o cargo exige.

A presença de Chapo numa cerimónia que sela uma vitória eleitoral envolta em denúncias de fraude, violência e repressão não é apenas um gesto de cortesia entre Estados vizinhos. É, sobretudo, um acto de posicionamento. Quando um Chefe de Estado se desloca para testemunhar a consagração de uma eleição marcada por sangue e silêncio, ele não é um mero espectador, é um legitimador.

As eleições de 29 de Outubro na Tanzânia deixaram um rasto de mortos, feridos e censura até aos meios de comunicação que ficaram dias sem actualizar noticiários. A internet foi bloqueada, a oposição silenciada e as ruas transformadas em corredores de medo. A cerimónia de posse, limitada a convidados e realizada num recinto governamental, é a metáfora perfeita de uma democracia sitiada, fechada sobre si mesma, blindada contra o povo que deveria representar. Tradicionalmente, a tomada de posse na Tanzânia ocorre em Estado e aberto às massas.

Mesmo a África do Sul, país cuja diplomacia costuma mover-se com a prudência de quem equilibra princípios e interesses, “recusou validar” o processo eleitoral, afirmando não ter tido condições de fiscalizar adequadamente o pleito. Moçambique, porém, apressou-se a enviar felicitações, alinhando-se a regimes como Uganda e Somália, conhecidos por relativizar o Estado de Direito em nome da “estabilidade”.

Que mensagem pretende o governo moçambicano transmitir ao mundo e, mais grave ainda, ao seu próprio povo? Que a democracia é um ornamento protocolar? Que o poder, uma vez conquistado, justifica qualquer método? Que a solidariedade entre autocracias pesa mais do que a coerência ética entre democracias?

O gesto de Daniel Chapo não pode ser lido isoladamente. Ele insere-se numa tendência crescente em que líderes africanos preferem o conforto da cumplicidade ao incómodo da coerência. A defesa da soberania, tantas vezes invocada para justificar o silêncio, não deve ser confundida com a abdicação de princípios universais. A solidariedade africana só tem sentido se for em defesa dos povos, não dos regimes.

Enquanto Dar es Salaam se fecha em luto e medo, Vilankulo esperava a presença do seu Presidente para celebrar o turismo, um dos pilares do desenvolvimento nacional. Ao escolher Dodoma, Chapo não apenas ignorou um compromisso interno, deu prioridade à diplomacia da conveniência sobre a economia real.

Há um paralelo inquietante entre Moçambique e Tanzânia. Ambos os países partilham não apenas fronteiras e histórias de luta, mas também um desconfortável apego ao poder e à retórica da estabilidade. O terrorismo que assola o Norte de Moçambique e a violência política que corrói a Tanzânia são sintomas de um mesmo mal, a erosão do contrato social, quando o Estado se esquece de que a sua legitimidade nasce do voto, não da força.

Um editorial não é um julgamento, mas um espelho. E o reflexo que aqui se desenha é de um país que, ao calar diante da injustiça alheia, treina o ouvido para não escutar a sua própria. Moçambique precisa decidir se quer ser reconhecido como um Estado que honra princípios democráticos ou como mais uma voz no coro dos que aplaudem o autoritarismo disfarçado de estabilidade.

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