Operação paliativa no Tesouro e na AT: a limpeza que evita sujar os sapatos dos donos do esquema

ECONOMIA POLÍTICA
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  • Não há nenhuma figura politicamente exposta
  • Há selecção de alvos da operação. Estáse a intervir até onde é politicamente conveniente
  • Recolheram informáticos, computadores e documentos, mas nenhum dos donos do esquema
  • Letela dá ultimato ao SERNIC: “Queremos os verdadeiros chefes do crime”

As buscas realizadas, semana finda, na Autoridade Tributária (AT) e no Ministério das Finanças, que culminaram na detenção de funcionários médios, estão a ser apresentadas como um avanço no combate à corrupção. Mas para vários observadores atentos ao funcionamento interno do Estado, a operação cheira mais à “pintura de fachada” do que à intenção real de desmontar a máquina que, durante anos, drenou recursos públicos através de comissões ilícitas.

Evidências

O que está a ser exposto agora não é novidade para o empresariado moçambicano, que há muito denuncia a existência de cartéis que, em articulação com quadros do Tesouro e da Autoridade Tributária, cobravam “percentagens” para acelerar o pagamento de facturas ou o desembolso do IVA.

No entanto, o padrão das detenções e o foco exclusivo nos supostos executores directos, na sua maioria técnicos e informáticos, alimentam receios de que a investigação esteja a ser minuciosamente calibrada para não incomodar os verdadeiros mandantes, ou seja, aqueles com poder político para se manterem na sombra enquanto o sistema funcionava a seu favor.

Relatos colhidos pelo Evidências indicam que muitos dos esquemas eram feitos com conhecimento e até supervisionados por dirigentes de topo das instituições visadas. Alguns destes nomes há muito são apontados como os beneficiários finais da teia que transformou o pagamento de facturas públicas num negócio paralelo, lucrativo e altamente protegido.

A selecção de alvos da operação da semana, dos quais não se destaca nenhum nome sonante, pelo menos até agora, reforça a percepção de que o Estado está a intervir apenas até onde é politicamente conveniente. Na AT, por exemplo, foram recolhidos técnicos de informática.

Até aqui, a operação visou, sobretudo nos executores, — funcionários do Tesouro e da AT, mas aqueles que, segundo fontes internas, pressionavam para priorizar facturas de empresas ligadas a certos círculos do poder ou que se beneficiavam em última estância desta operação, permanecem longe das salas de interrogatório, ou seja, figuras proeminentes que, supostamente, mandavam e recebiam parte do “bolo” das comissões permanecem intocadas.

Há casos documentados de pressões intensas sobre o Tesouro no final do ano passado, quando empresas associadas à antiga elite dirigente exigiram, com sucesso, prioridade nos pagamentos, depois de terem forçado contribuintes a antecipar receitas para a Conta Única do Estado.

Esses episódios são conhecidos, comentados e até registados em pareceres oficiais. Mas, até agora, nenhuma investigação tocou nesses decisores. Até ministros e directores nacionais são apontados como parte deste esquema.

A operação poderá resultar em mais detenções de funcionários intermédios, mas a pergunta que paira sobre o processo é inevitável: terá a justiça mandato, autonomia e coragem suficientes para subir a escada e investigar quem dava as ordens?

Por enquanto, tudo indica que estamos perante uma “operação limpeza” que varre o chão, mas não mexe nos tapetes onde, durante anos, se esconderam as verdadeiras marcas do saque institucional.

SERNIC não comenta sobre a operação

Instado para comentar sobre o processo à margem da operação, o director nacional do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), Elídio Miguel, evitou avançar detalhes sobre a operação de busca e apreensão realizada no Ministério da Economia e Finanças, concretamente na Direcção Nacional do Tesouro, e na Autoridade Tributária de Moçambique (AT).

Questionado sobre os motivos da rusga e sobre as informações preliminares que têm circulado, Elídio Miguel limitou-se a afirmar que o assunto será esclarecido “a seu tempo”.

“A seu tempo vamos nos pronunciar sobre isso. É um trabalho que está sendo feito pelo SERNIC em articulação com a Procuradoria-Geral. Vamos nos inteirar e pronunciar-nos sobre este aspecto a seu tempo”, declarou o responsável, sem abrir espaço a pormenores operacionais.

Perante a insistência dos jornalistas, que procuravam perceber em que consistiram concretamente as buscas realizadas no Tesouro e na AT, Miguel reforçou que não é adequado revelar informação nesta fase da investigação.

“Não posso apresentar detalhes, como deve imaginar. Ainda estamos no processo de investigação e não é recomendável, nesta altura, pronunciarmo-nos com detalhes sobre esta matéria”, afirmou.

Procurador-Geral quer mais do que os executores: os mandantes

Falando, à margem da 8.ª sessão do Conselho Coordenador do SERNIC, de forma abstracta e sem se referir particularmente ao caso das buscas, o Procurador-Geral da República, Américo Letela, lançou um dos mais duros recados públicos dirigidos ao Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), exigindo uma viragem profunda na forma como o País enfrenta o crime organizado.

Letela enfatizou que o País não pode continuar a combater apenas a “linha da frente” do tráfico, detendo correios, vendedores e consumidores, enquanto os líderes das redes permanecem fora do alcance da justiça.

“A exigência é clara: revelar os verdadeiros responsáveis, os grandes beneficiários desta cadeia criminosa que destrói vidas, famílias e o futuro da nação”, declarou o Procurador-Geral, sublinhando que o sucesso da investigação criminal deve ser medido pela capacidade de “identificar, investigar e responsabilizar os mandantes” — aqueles que planeiam, financiam e lucram com o crime.

Letela afirmou que o tráfico de drogas, alimentado por redes transnacionais, “ameaça a estabilidade social e económica do País” e que a sociedade já não aceita investigações que parem nos executores materiais.

“Não basta apreender drogas ou desmantelar pequenas fabriquetas. É imperioso mostrar quem lucra com o sangue dos nossos jovens, homens, mulheres e crianças”, afirmou.

O Procurador-Geral relacionou ainda o recrudescimento dos raptos em Maputo ao mesmo padrão de deficiência estrutural na investigação, que continua a capturar executores mas não os cérebros dos esquemas. O sentimento de insegurança, advertiu, cresce à medida que as forças de investigação falham em atingir “os níveis superiores da cadeia criminosa”.

“A sociedade já não se satisfaz com operações pontuais. Identificar esconderijos, desmantelar células e deter autores materiais é importante, mas já não é suficiente”, disse Letela, exigindo “resultados concretos e mensuráveis” no combate aos raptos.

Num dos momentos mais incisivos da sua intervenção, Letela advertiu os próprios agentes do SERNIC a manterem distância de redes criminosas.

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