Luca Bussotti
O teatro principal ocorreu, semana passada, na sala da BO, em Maputo. Havia ali grandes actores, do lado da política (um antigo Presidente da República), do judiciário (um juiz em carreira e um Ministério Público geralmente brilhante) e, naturalmente, da imprensa, que fez uma cobertura, com relativos comentários, totalizante. Foi um exercício de democracia, pois todo o país viu e comentou o psicodrama moçambicano digno do dramaturgo norueguês Ibsen. Entretanto, longe de ser uma “casa de bonecas”, tratou-se de uma guerra de ciclopes, em que poderes e pessoas diferentes se digladiaram, com inclusive alusões contínuas aos demais actores cujos espectros vagueavam naquela sala, com tanto de misterioso desligamento energético.
Mas não é deste teatro que interessa aqui falar. Toda a gente viu o espectáculo e o interpretou à sua maneira, pouco, portanto, é necessário acrescentar. Muito mais longe, num teatro de periferia, está-se nesses dias encenando um drama digno do melhor Brecht. Este drama se chama Vale, o teatro fica na província de Tete, e seus actores são protagonistas de diferentes origens e possibilidades económicas e sociais, com, no meio, um realizador, o Estado moçambicano, que até hoje não conseguiu dirigir devidamente os vários intérpretes.
Quando a brasileira Vale entrou em Tete, as expectativas eram elevadas: Lula estava no Palácio do Planalto, em Brasília, e Guebuza na Ponta Vermelha, a crise dos dois países ainda estava muito longe de acontecer e toda a área de Moatize e arredores parecia beneficiar de um investimento que se previa lançar as bases para um verdadeiro boom da economia da região.
A Vale investiu não apenas no carvão, mas também no Corredor Logístico de Nacala, com mais de 900 quilómetros de linha férrea passando por Moçambique e Malawi. Um empreendimento significativo, que entretanto sempre resultou em questões sociais e humanas relevantes: comunidades pouco envolvidas nas escolhas empresariais (com reações importantes, como no caso dos olheiros), papel do Estado moçambicano desequilibrado em favor do investidor estrangeiro ao invés das comunidades que deveria proteger, sentenças da justiça moçambicana (neste caso o Tribunal Provincial de Tete) a estabelecer o pagamento de multas salgadas (cerca de 158 mil dólares) por parte da Vale, em favor das comunidades locais (nomeadamente 48 camponeses), devido à construção de uma barragem que impedia a estas últimas a sua deslocação para as localidades vizinhas.
As lutas, porém, não terminaram: com efeito, a Vale resolveu completar a sua exit strategy mediante a venda da mina de Moatize e do Corredor Logístico de Nacala por 270 milhões de dólares à sociedade Vulcan Minerals, uma controlada da indiana Jindal, que já opera em Moçambique com a mina de Chirodzi. Uma decisão de certa forma lógica, que corta definitivamente a tentativa brasileira de instalar um domínio quase que monopolístico no Corredor de Nacala, com a integração da produção e venda de carvão, o Corredor logístico de Nacala e a produção de commodities agrícolas, previstas no já fechado programa ProSavana. Entretanto, apesar das declarações formais, a Vale tem ainda pendentes que tem de honrar, e que um grupo de organizações da sociedade civil (primeira assinante a ADECRU) recordou mediante uma carta aberta ao Ministro dos Recursos Minerais e Energia, datada 17 de Fevereiro de 2022. A carta pretende acionar o bloqueio da supramencionada venda, até quando os pendentes – muitos dos quais ainda à espera de julgamento na justiça moçambicana, quer em Maputo, quer em Tete – não forem resolvidos. Além disso, os assinantes exigem que o Ministério dos Recursos Minerais forneça (ou obrigue a Vale a fornecer) dados públicos sobre os memorandos de entendimento e os planos de reparação e restauração das condições de vida das comunidades locais, dos rios, solos e das demais áreas degradadas e das infra-estruturas de comunicação deterioradas pela passagem de meios pesados, mandando realizar estudos sobre o impacto social e ambiental das actividades levadas a cabo pela Vale.
Cada um pode ter o posicionamento que quiser sobre a carta; entretanto os assuntos levantados pela ADECRU e seus parceiros são extremamente sérios e merecem uma atenção especial. Estamos diante de danos ambientais largamente acertados (inclusive, como recordado acima, pelas autoridades de justiça de Moçambique), de violações dos direitos humanos também notórias e que merecem pelo menos um aprofundamento por parte do governo moçambicano, cujo dever principal não é garantir dividendos a esta ou aquela empresa privada, mas sim tutelar os seus próprios cidadãos a partir dos mais fracos.
É neste outro teatro de periferia que companhias pequenas, com poucos meios e recursos tentam desafiar intérpretes bem mais poderosos e famosos. Espera-se que a disputa em curso se possa ser acompanhada devidamente pelos medias moçambicanos, assim como foi feito pela série teatral-televisiva da BO; e também deseja-se que o governo consiga, desta vez, ser aquele realizador capaz de orientar os vários actores, segundo o roteiro estipulado pelo art. 11 da Constituição, baseado no princípio da justiça social.
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