- O relato de crianças inocentes que sobreviveram à guerra
- Conheça a história de um menor que viu o pai a ser degolado, antes de ser baleado
O terrorismo em Cabo Delgado, que, desde Outubro de 2017, já causou a morte de mais de três mil pessoas e mais de um milhão de deslocados, para além do rastro de destruição e óbitos, deixou feridas e marcas indeléveis no corpo e na alma de sobreviventes, alguns dos quais são apenas crianças, que apesar da sua tenra idade conhecem a brutalidade dos terroristas. Algumas crianças assistiram seus parentes a serem degolados por terroristas e deveriam, por isso, ter uma assistência social e psicológica, mas o Estado não tem recursos para contratar psicólogos clínicos, o que representa um perigo para o desenvolvimento psico-emocional dos sobreviventes de palmo e meio.
Texto: Omardine Omar*
De acordo com peritos e organizações internacionais, a guerra em Cabo Delgado já causou a morte de mais de 3100 pessoas, entre civis e militares, para além de mais de um milhão de deslocados, sendo que, deste número, mais de 300 mil são crianças, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Parte destas crianças que sobreviveram ao pior da barbárie humana encontra-se a recuperar dos traumas da guerra, mas também das feridas que deixam marcas que permanecerão para toda a vida no seu corpo.
É o caso de Ibrahimo Juma, de 10 anos de idade, nascido na aldeia de Marere, distrito de Mocimboa da Praia, residente no Centro de Acolhimento de Nakaka, no distrito de Montepuez, para onde mudou-se com a família na sequência de ataques de grupos armados. Na madrugada do dia 16 de Junho de 2019, então com apenas sete anos, assistiu inerte aos terroristas a decapitarem o seu progenitor.
Apesar da inocência e não constituir nenhuma ameaça para os invasores, o menino Ibrahimo não escapou da brutalidade dos insurgentes, tendo sido atingido por duas balas na perna, enquanto chorava pela morte do pai.
Hoje, o menino que frequenta a segunda classe, em virtude de ter iniciado tardiamente os estudos por causa da guerra, mal consegue esconder as marcas das balas que carrega no seu corpo.
Amina Saíde, tia materna de Ibrahimo, conta que depois da invasão dos insurgentes, os membros da família sobreviventes percorreram mais de 30 quilómetros até ao distrito de Mueda, onde o menino viria a receber assistência médica. Após o tratamento, a família seguiu viagem para Marere, em Montepuez, onde viria a ser amparada no centro de acolhimento de Nakaka.
Amina conta que até hoje as imagens do acto hediondo ainda continuam patentes na mente do pequeno Ibraimo, que certas vezes fica fora de si, não conseguindo sequer tirar uma simples palavra da boca por um dia inteiro. Ademais, a fonte contou que, durante a noite, o pequeno Ibrahimo tem acordado chamando pelo nome do pai, o que denuncia que ainda não superou o trauma causado pela perda.
Agora, apesar de estar em segurança, a família do pequeno Ibraimo, tal como o grosso dos deslocados, vive uma crise humanitária sem precedentes. Por causa da insuficiência nutricional devido a escassez de alimentos, o menor desenvolveu uma anemia crónica e, como tal, deve ser submetido a uma transfusão de sangue mensalmente.
A difícil superação da perda de parentes
Em Nakaka, a nossa reportagem interagiu com a família de um outro menor que ficou órfão devido aos ataques armados. Trata-se de Geraldo Piússe, também de 10 anos de idade, nascido na aldeia de Chitunda, no distrito de Muidumbe, actualmente a frequentar a 1ª classe.
Conforme explicou Bertina João, avó da criança, “o pai de Geraldo foi assassinado pelos terroristas em 2019, quando, junto da família, regressavam da machamba. E porque nem sempre a desgraça vem só, no mesmo dia os terroristas invadiram a sua aldeia e queimaram a residência”.
A família não teve outra alternativa senão abandonar a vila de Muidumbe e partir para o distrito de Mueda, de onde mais tarde seguiria para Montepuez. E porque o percurso era feito durante vários dias a pé no meio do trajecto a mãe do menino Geraldo acabou perdendo a vida vítima de doença.
Hoje, o menino tenta superar a dor da perda dos pais, enquanto tenta recuperar o tempo perdido sem poder estudar devido aos ataques armados que assolam a nortenha província de Cabo Delgado há mais de quatro anos.
Quem também carrega no peito as feridas da guerra é Ancha Abdulai, de 14 anos de idade, que perdeu o pai e a irmã de apenas sete anos durante um dos ataques ao distrito de Mocímboa da Praia, em Março de 2020.
A adolescente vive, actualmente, no Centro de Acolhimento de Paquitequete, Cidade de Pemba, e tem feito das tripas coração para sobreviver, uma vez que a família já não recebe apoio das entidades governamentais e muito menos das organizações humanitárias.
No Centro de Acolhimento de Paquitequete, Ancha vive com a mãe e um irmão menor, que nasceu meses depois da fatídica invasão terrorista. A adolescente não esquece o esforço da progenitora que percorreu vários quilómetros mesmo estando nos últimos dias da gestação.
Sem apoio, a família sobrevive graças a boa vontade da vizinhança. As dificuldades são tantas que não conseguiu se matricular para dar continuidade aos estudos, e hoje não tem nada para vestir. Essa triste realidade contrasta com as declarações frequentes do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano que assegura que nenhuma criança vai ficar fora do sistema.
No mesmo lar das lamentações de Ancha Abdulai estava Muanacha Taibo, de 15 anos de idade, também proveniente de Mocímboa da Praia e que devido às dificuldades que enfrenta não conseguiu se matricular para o presente ano lectivo. A adolescente conta que antes da guerra chegar à sua zona de origem de onde partiria para Pemba tudo era diferente, uma vez que tinha familiares que a apoiavam sempre que precisava.
Crianças expostas às vicissitudes da vida
Alguns líderes religiosos, que falaram a nossa equipa de reportagem, revelaram que as crianças na situação da Ancha e Maimuna no Centro de Acolhimento de Paquitequete são muitas e expostas a vários riscos, incluindo o risco de caírem em redes de prostituição.
Os líderes religiosos, que não se quiseram identificar, entendem que a escola seria um local apropriado para as crianças esquecerem o trauma que viveram nos últimos anos.
Sobre a situação das crianças vítimas dos ataques terroristas em Cabo Delgado, Organizações Não Governamentais como a Save The Children têm apelado a comunidade de doadores para garantir acesso aos serviços de saúde, educação mental e apoio psicossocial.
“Como pai, parte meu coração em pensar como as crianças devem estar a lutar para processar o impensável. Na melhor das hipóteses, elas foram forçadas a fugir de suas casas e da sensação de segurança. Na pior das hipóteses, elas testemunharam horrores que nenhuma criança deveria ver”, disse Chance Briggs, director-geral da Save The Children em Moçambique.
Estado não tem recursos para acompanhamento psicológico
Sobre a situação da criança nos Centros de Acolhimento em Cabo Delgado, o activista social e psicólogo que tem liderado algumas campanhas humanitárias em Cabo Delgado, Vasco Achá, defendeu que “as crianças que perderam seus pais deveriam ter uma assistência social e psicológica, mas o Estado não tem recursos para contratar psicólogos clínicos, porque neste momento o interesse maior são as necessidades básicas”.
Achá explicou que o que se pode fazer neste momento são actividades lúdicas para que se possam distrair, uma vez que não existem condições financeiras e de pessoal, fazendo com que, no entender do activista social, estas crianças estejam a perder-se e tendo outros problemas como psicoses e depressões, que podem se agravar para quadros graves como o suicídio futuramente.
Sobre o assunto, a nossa reportagem fez de tudo para ouvir o Governo provincial de Cabo Delgado e as direcções provinciais e na nacional do Ministério da Acção Social, Criança e Género, mas devido a agendas superlotadas dos seus representantes, segundo fomos ditos, não foi possível ouvir as suas reacções.
Entretanto, há dias, durante a entrega de seis salas de aulas no bairro Mahate, em Pemba, feitas através do projecto karibu, coordenado pela Helpo e financiado pelo Instituto Camões e da Fundação Galp, o Governador de Cabo Delgado, Valige Tauabo, realçou o objectivo do executivo em combater todos os factores que contribuem para que as crianças abandonem a escola e assumiu compromisso em ver todas as crianças deslocadas do terrorismo reintegradas em algum centro de ensino.
*Colaboração
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