- A desilusão de um artista que lutou pela independência e pela afirmação das artes no país
- Estou desempregado há três anos. Como é que o governo e o partido acham que eu vivo?
- Muitos dos nossos dirigentes têm problemas de falta de cultura
- Vou deixar o material de investigação que estou a fazer com meu neto…
Numa entrevista cheia de muitos questionamentos, reflexões e recados, o músico e compositor moçambicano, José Mucavele, autor da icónica música “balada para as minhas filhas”, voltou a mostrar o seu desapontamento em relação ao estágio da cultura moçambicana. O artista que se desvinculou da política para seguir a carreira musical diz estar desempregado e marginalizado pelo governo e pelo partido Frelimo. Nas entrelinhas, mostra desapontamento com a gestão da actual ministra, Edelvina Materula, ademais, Mucavele chega a questionar: “Sua excelência, olha para o seu pelouro e veja o que está a fazer, o que evoluiu, o que encontrou, o que baixou e o que progrediu. Se não está para olhar, está para sentar e governar, está a governar o quê? Acompanha, a seguir, os excertos mais importantes.
Duarte Sitoe
Evidências – É um dos músicos que nos seus versos traz temas que consciencializam a sociedade. Como caracteriza a nossa sociedade no presente?
José Mucavele – Moçambique tinha o melhor povo do mundo. Já tivemos uma educação que espantou o mundo, mas de repente nos sentimos do jeito que estamos hoje, sem princípios e sem norte. De alguma forma, a sociedade tem de parar isso e consertar as coisas que estão erradas.
E olhando para as artes?
– Olhando para a parte das artes é um desastre total, a ministra vai me perdoar, mas como artista que é devia ver o que está a acontecer em termos do desenvolvimento das artes identitárias em Moçambique. Tudo que é arte identifica o seu povo, identifica a sua sociedade e o que Moçambique está a fazer. Falando directamente para si, sua excelência ministra da Cultura e Turismo, fiquei desapontado com a nossa festa do dia 25 de Junho, acha mesmo razoável, excelência, que para uma festa nacional, que é o dia 25 de Junho, mandemos vir músicos estrangeiros para festivais de Zouk, patrocinados pelo Ministério? Numa festa nacional em que seriam os batuques a soarem nos bairros e todos aqueles artistas que são esquecidos durante o ano, como por exemplo eu que não tenho concertos, a fazerem a festa. É nas datas comemorativas como 25 de Junho ou 25 de Setembro que deviam dar espaço a esses artistas.
Não vamos dizer que será pela associação dos músicos que vamos pressionar ou fazer greve, sua excelência, olha para o seu pelouro e veja o que está a fazer, o que evoluiu, o que encontrou, o que baixou e o que progrediu. Se não está para olhar, está para sentar e governar, está a governar o quê? Por acaso já esteve com os artistas para saber se eles estão felizes com a sua situação em Moçambique?
Isto também tem a ver com a sociedade e o tipo de empresário que recebe alvará para gerir as artes em Moçambique. Sou um artista desempregado. Desde que entrou a Covid-19 nunca mais viajei. Um artista como eu está desempregado há três anos. Por acaso, o Governo sabe que há artistas desempregados aqui em Moçambique? Artistas que são solicitados para educar a sociedade e orientar a sociedade através das suas canções estão hoje marginalizados.
Sente que o povo não valoriza os seus artistas?
– Não é a sociedade que nos põe de lado, quem nos põe de lado são, em primeiro, os empresários que o país tem e, em segundo, o Governo que coloca artistas como nós desempregados. Acho que o partido e o Governo sabem que existe José Mucavele, nunca perguntaram por que esse homem não aparece, não toca ou estão a fazer para que realmente nós estejamos sentados no gelo.
Sei que o nosso Governo gosta das artes, mesmo o Presidente da República gosta das artes, mas será que já procurou saber porque em 365 dias são os mesmos artistas que são chamados para os concertos? Será que Moçambique não produziu outros tipos de artistas, são sempre os mesmos? Há falta de cultura no país. Muitos dos nossos dirigentes têm problemas de falta de cultura, por isso não vêem que a nossa arte não está a evoluir.
“… artistas novos que vão buscar são os que não trazem de nada”
Está a querer dizer que o Governo tem preterido os músicos da velha?
– Além disso, se os mais novos que vão buscar fossem os que artisticamente representam este país, eu até não diria mau, mas esses artistas novos que vão buscar são os que não trazem nada que tem a ver com a cultura moçambicana e pisam os velhos que vinham alegrando este país e o representando em todo mundo. Hoje, não existimos, eu sou desempregado aqui neste país, compreende?
Sou antigo combatente, gastei a minha juventude na libertação deste país e pedi ao presidente Samora para que me deixasse fazer arte, e apliquei-me para fazer arte e representar Moçambique. Tenho obras que são patrimónios por aí. O país não se alegra de ter um artista assim? Pisam e abafam, porquê?
Tendo em conta a tua experiência, que políticas devem ser aplicadas para mudar esse cenário?
– Primeiro, as escolas que já temos destas áreas devem formar com sabedoria e com pedagogia de ensino; segundo, que as organizações apoiem os projectos sérios que o país tem para o desenvolvimento das artes. Veja lá que sou um cidadão que entregou um projecto em 1978 para o desenvolvimento das artes culturais em Moçambique, não só na música mas em todas as artes. Nessa altura, deram espaço em KaTembe para montar a investigação que venho levando a cabo desde 1974, desde Nachingwea. Este projecto trago desde Nachingwea, vim para aqui como quadro superior do Ministério do Interior, não deixei de investigar as etnias deste país para serem o que são elas dentro das suas artes identitárias até hoje. Nunca fui apoiado pelo Governo, mas sabem aquilo que faço. Agora pergunto: o que se passa entre o Governo deste país e o artista José Mucavele?
Pergunto isso porque estou a me sentir excluído do meu país. Estou para editar em Moçambique uma obra que nunca foi trazida aqui, falo do álbum “Atravessando rios”, o melhor disco que gravei em Portugal e recebeu cinco estrelas naquele país pelo maior crítico de obras artísticas em Portugal. Até aqui, só três empresas, que são três amigos, responderam para o apoio da edição do disco. Os fundos não chegam para se editar o disco, estou à espera para se trazer o álbum que nunca entrou em Moçambique. Estou à espera que alguém apoie a vinda deste disco aqui para que os moçambicanos tenham o disco em mão, gravado em 1984 e lançado em 1985. Não seria eu a tentar trazer o disco, seriam os empresários.
Uma pergunta à Frelimo: “Me entreguei à luta para ser desempregado no meu país?
Refere-se sempre a empresários como quem não se importa com a promoção da cultura…
– É claro, porque não temos empresários para a área da cultura, se calhar temos gente que não tem emprego, gente que não tem nada para fazer, mas tem os cofres dos bancos onde vão buscar dinheiro e promovem concertos para tirar 90% da receita para o bolso deles. Aliás, olhando para aquilo que pagam aos artistas aqui, ficam com 95%. Isto tem de mudar, quem brilha no palco é o artista, a estrela é o artista e não o empresário. Não desgracem os artistas. Agora pergunto: por que o único artista pobre no continente é o moçambicano?
Em todo mundo o artista tem uma boa segurança social porque o trabalho dele vale dinheiro, a arte vale dinheiro, só em Moçambique é que o artista é pobre. Estou desempregado há três anos. Como é que o governo e o partido acham que eu vivo? Me entreguei à luta de libertação para ser desempregado no país? Pergunto ao meu país e ao meu partido Frelimo. Eu me voluntariei à luta de libertação nacional para hoje ser desempregado no país? É triste, meus camaradas, não fiz mal nenhum para este país e não fiz mal nenhum para o meu partido.
Profundo. Mas, o que o governo deve fazer por você e outros artistas como você?
– Temos instituições criadas para esta área da cultura para quê? Acabem com o Ministério da Cultura e peguem nesse dinheiro invistam nos artistas que têm projectos para desenvolver as artes e a cultura neste país. Acabem com o Ministério e criem outro espaço para olhar para as artes e cultura neste país, porque a arte só existe nas pessoas que fazem a cultura.
Os jovens deviam exigir, deviam perguntar onde estão as referências culturais artísticas do nosso país. Vão continuar sempre com o Mr. Bow e com os Zicos? Então os incultos são os jovens que não vão a busca daquilo que faça bem no ouvido, na cabeça ou na alma. Nós já não temos muito tempo de vida. Quando perdi o meu ídolo moçambicano da música ligeira, que é o Hortêncio Langa, fiquei assustado, pensando que o próximo sou eu, mas quando partir deixarei o quê? Não gostaria de deixar o trabalho que estou a fazer, gostaria de terminar o trabalho de investigação que andei a fazer ao longo dessas décadas todas. Enquanto eu não criar a minha instituição na terra que o Estado me deu não vou entregar nenhum material na obra de investigação a este país. Deixarei com o meu neto, se calhar ele vai saber o que fazer quando crescer, não vou dar. Este é o material que podia deixar para ajudar os jovens que querem seguir a área de música.
Quais são as exigências que faz para deixar esse material que pode ser útil para a nossa cultura?
– Vou deixar aquilo que é meu com o meu neto. Tinha um propósito do projecto para desenvolver isso, mas se não conseguir concretizar este projecto não tenho outro destino senão entregar este acervo ao meu neto.
“Estou muito desapontado com o país”
Com isso, quer dizer que está desapontado com o pelouro da cultura em Moçambique?
– Estou muito desapontado com o país na área cultural. O Governo deve sentir que estou muito desapontado com a direcção cultural do nosso país. Peço perdão ao Presidente da República, mas camarada presidente não estou satisfeito com a direcção cultural do nosso país.
No passado, a falta de estúdios era o calcanhar de Aquiles para os músicos que pretendiam gravar os seus trabalhos, mas nos últimos anos assistiu-se a uma proliferação de estúdios. Pode-se aliar esta disponibilidade com a qualidade da música que é feita no presente?
– Entra na África do Sul para ver como está organizada a indústria cultural. Por acaso tem uma discoteca onde pode comprar um disco. E vocês jovens nunca perguntaram se tem discoteca com música à venda. Estamos no século XXI e 47 anos de independência. O neocolonialismo será por via cultural e nós deixamos tudo andar. Culturalmente, a língua portuguesa não me diz nada, na minha identidade a língua portuguesa não existe. Sou um defensor da cultura, mas não consegui dar cultura aos meus filhos. Não vamos trazer cultura nenhuma das nossas etnias através da língua portuguesa.
Com isso defende que devem ser introduzidas as línguas locais no processo do ensino?
– Eles sabem o que devem fazer, e deviam ter feito isso. Defendemos isso desde o tempo em que Alcídio Quenha era ministro da educação. Desde lá que nada aconteceu, estamos a marginalizar as nossas línguas. Somos o único povo que não tem a sua história. Este é o país que estamos a construir e dissemos viva Moçambique.
A pirataria continua a tirar sono aos artistas moçambicanos. Num passado recente disse que Moçambique era um país de piratas devido a inércia das autoridades governamentais para travar este fenómeno. Como analisa o cenário do presente?
– Como vai ter avanço se lança uma lei, monta também um grupinho para tirar proveito da ordem que você criou. A lei diz que pitaria é crime, mas não se combateu porque as pessoas que deviam defender o artista e combater a pirataria construíram armazéns para duplicarem os discos e venderem. O que avançou dentro da cultura? O que sempre avança é a mudança dos ministros.
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