General do Norte (Chipande) mostra raiva pelos camaradas do Sul

DESTAQUE POLÍTICA
  • Discurso de tribalismo sobe de tom na Frelimo
  • A indignação de quem viu a sua “tribo” excluída da “bolada”. “Na tenda só estão os do Sul”
  • “Deixaram aonde os macondes…”, questiona o general do Norte.
  • Uma crítica aberta a Chissano e Guebuza?

O discurso de tribalismo e regionalismo, um tema polémico dentro da Frelimo, está a subir de tom. Desta vez, a denúncia veio do general Alberto Chipande, o actual “dono da vez” dos libertadores, que se diz escandalizado quando viu na “tenda (onde são julgados os implicados nas dívidas ocultas) marongas, manhembanes e machangas de Gaza”. Na sua verificação, o Evidências apurou que dos 20 réus arrolados no processo que corre no tribunal sobre as dívidas ocultas, 13 são naturais de Maputo, dois de Inhambane e um de Gaza, os restantes três são de Zambézia (curiosamente todos altos quadros do SISE, onde foi urdido o esquema) e um de Sofala, na região centro. A questão é levantada por um general, considerado patriarca da ala Maconde, que quando chegou a sua “vez” indicou o seu sobrinho Filipe Nyusi para a presidência do país. Curiosamente, desde que o clã assumiu o poder, tem vindo a colocar o país numa base tribal, sendo que o grosso modo das instituições do Estado, como poder judiciário, repreensivo e até legislativo, esteja nas mãos de dirigentes do Norte e algumas raras excepções do Centro do país. A nível do partido, como se de um pacto se tratasse, todos os órgãos sociais e cargos relevantes são ocupados por camaradas do Centro e Norte, à excepção do secretário-geral.

Nelson Mucandze

O tribalismo e regionalismo na Frelimo não é um assunto recente, contudo toma outra dimensão quando vem da própria elite política, do partido que de quando em vez coloca a boca no trombone, seja para reclamar inclusão ou mesmo para exigir tacho.

No último Sábado, o general Alberto Chipande foi convidado para ser orador único da palestra organizada pela Organização da Juventude Moçambicana (OJM), o braço juvenil da Frelimo, um momento que serviu de desabafo para o também conhecido como “autor do primeiro tiro da luta de libertação”, uma narrativa contestada e desmentida pelas novas fontes da história contemporâneo de Moçambique.

Mais do que desabafar, a posição do general é encarada como uma crítica velada a Joaquim Chissano e Armando Guebuza, dois antigos Presidentes da República, oriundos do Sul, que nos seus consulados terão deixado de lado os camaradas do Norte e Centro do país.

Na explanação do general, num encontro que durou perto de três horas, o trabalhismo e regionalismo é preocupante no país e faz parte dos males que a juventude precisa combater: “Eu fiquei muito escandalizado sabe, quando vi aquele tribunal ali, na tenda, a maioria são do Sul, desculpa lá, são marronga, manhembanes e machanganas de Gaza. E outros deixaram aonde? Deixaram aonde, macondes e macuas, cenas e ndaus?”, questionou repetidamente, com um ar de frustração.

A indignação de quem viu a sua “tribo” excluída da “bolada”

Da lista consultada pelo Evidências, foi possível apurar que dos 20 réus arrolados no processo nº18/2019-C (relativo às dívidas ocultas), que corre na 6ª Secção Criminal do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo sobre as dívidas ocultas, 13 são naturais de Maputo, dois de Inhambane e um de Gaza, os restantes três são de Zambézia e um de Sofala, na região centro. A maioria dos réus não tinha o poder de influência.

Chipande é um general influente, natural de Cabo Delgado, de onde procede Nyusi, que chega à Ponta Vermelha graças ao seu apoio para que fosse candidato nas internas do partido até ascender à Presidência.

Além de ser seu mentor, é seu conterrâneo no planalto de Cabo Delgado. A “indignação” de Chipande não é de quem está a repudiar o mal que lesou o país, mas de quem viu a sua “tribo” excluída da “bolada” que prosperou os amigos do Sul, mesmo que isso tenha colocado o país no retrocesso. É uma interpretação que não colhe consenso, afinal o Presidente da República também é associado às dívidas ocultas e há uma crença de que o processo foi pincelado.

Mas não são só os de Norte que reclamam o tribalismo. Em 2019, numa reunião do partido, Armando Guebuza também denunciou que o partido irá retroceder para 1962, caso não se faça nada para abrandar o tribalismo, o que faz coro às reclamações à surdina de camaradas do Sul, que reclamam de estarem excluídos dos negócios e dos círculos de tomada de decisões no partido.

“O tribalismo está forte, ainda fraco para a dimensão e tamanho da Frelimo, mas também deixarmos que ele continue, estaremos a voltar para 1962, somente com a diferença de termos um país independente”, disse no Comité Central daquele ano.

O novo figurino de poder repressivo

Chipande tem influência sobre Nyusi e a forma como está configurado o poder dos sectores sensíveis mostra uma certa tendência de se preterir pessoas do Sul, perpetuando o tribalismo que hoje dizem ter sido vítimas.

Há um aparente controlo dos poderes repressivos do Estado (nomeadamente, o judiciário e as Forças de Defesa e Segurança), configurados numa base regional e predominantemente dominados pelo Norte e o Centro.

Grande parte de posições relevantes das FDS ou do sistema judiciário está nas mãos de Centro e Norte, uma configuração que coincide com a distribuição do poder nos órgãos sociais da Frelimo. Não há uma medição exata para se apurar se é por tribalismo ou não, mas a tendência não deixa ser curiosa, ainda mais quando sobe de tom o discurso de tribalismo dentro da Frelimo.

Num áudio da antiga ministra do Trabalho e Segurança Social, Helena Taipo, retrata a figura de um Presidente da República (Nyusi) que recorre aos poderes à sua disposição para eliminar possíveis adversários ou ameaças às suas ambições políticas.

Taipo indicia o uso do sistema judiciário para sua perseguição, contrariando a narrativa que é vendida aos “incautos” como exemplo de combate à corrupção a todos níveis. É neste contexto em que surge um mapa de poderes repressivos centralizados em grupos próximos da região presidencial, no lugar de uma distribuição, um erro que nos últimos 15 anos vinha sendo corrigido.

Coincidência ou não, o facto é que os ministérios do Interior e da Defesa, o Comando Geral da Polícia, o Estado-Maior General, a Procuradoria-geral da República, a Magistratura Judicial e outros poderes repreensivos são controlados por pessoas do Centro e Norte.

O comandante-geral da Polícia da República de Moçambique, Bernardino Rafael, é de norte; da mesma região onde procede o chefe de Estado-Maior General, Joaquim Mangrasse. Apesar de não ter poderes operativos, os Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE), indispensáveis para o controlo ideológico, são conduzidos por Júlio Jane, um quadro da região Centro, Manica.

É a mesma coincidência que se assiste na Procuradoria-geral da República, onde Beatriz Buchili, que chega ao cargo pelas mãos de Guebuza, é de Norte, concretamente em Niassa. O mesmo sucede com o presidente do Tribunal Supremo, Adelino Muchanga, do Centro, em Sofala. Muchanga, à semelhança de Buchili, assume aquela pasta pelas mãos de Guebuza, que curiosamente, no seu governo, procurou impor equilíbrio.

No momento em que o processo das dívidas ocultas é determinante para o futuro político, coincide que o juiz do caso, Efigénio Baptista, é também do Centro, na Zambézia. O mesmo sucede com as pastas de Justiça, Conselho Constitucional e Religioso, Helena Kida, que é do Norte, Niassa.

Mas para quem sempre se centrou nesta problemática sem tabu, este é um debate que nunca deixou de ser actual na Frelimo, aliás, de acordo com Chichava (2008), até a génese do cinquentenário está enraizada nessa base que sempre foi criticada por alguns dos seus militantes como sendo aquela que, desde Mondlane, privilegiava o Sul em detrimento de outras regiões.

Um contraste com o imaginário que plasmava como alternativa de combate às diferenças étnicas e tribais, o aglutinar de indivíduos provenientes de diferentes regiões do país como fortalecimento do conhecimento mútuo e cultivo de solidariedade. É só um projecto político da Frelimo que visava uma sociedade baseada na partilha conjunta, cancelando qualquer tentativa tribalista, racial ou regional que sempre esteve iminente desde 1962.

No entanto, se antes a reclamação era de quem estava fora, ou mesmo de um membro comum, hoje quem denuncia são individualidades cuja militância é confundida com a própria Frelimo e, mais do que isso, pertencentes ao sul.

“Deixemos de ser portugueses, os colonos já foram”, Chipande

Fora do tema do tribalismo e regionalismo, Chipande, que expõe a preocupação do general para uma distribuição equitativa das oportunidades na palestra que decorreu na Escola do Partido, na cidade de Matola, exortou os jovens a não ficarem alheios ao terrorismo, uma criação de desestabilizadores para que o país não explore os seus recursos petrolíferos.

Nas palavras do também membro da Comissão Política da Frelimo, o país não deve aceitar a dependência porque já é livre, graças a luta da libertação nacional levada a cabo para a defesa da integridade territorial e o direito de autodeterminação.

“Os colonos já foram, deixamos de ser portugueses. Eu não sou português e vocês também não são. Quem conquistou a independência foi a Renamo, MDM ou sociedade civil?”, questionou retoricamente Alberto Chipande, combatente da luta de libertação nacional, dando seguidamente a resposta: “foi a Frelimo”.

O general disse que não se deve ficar com a Independência, que é preciso união dos moçambicanos em torno da libertação económica. “Para a independência, não lutamos de forma isolada. Lutamos todos. Agora, para a economia, se quisermos lutar um por um, tribo por tribo e zona por zona, nunca vamos conseguir. Estudem e pesquisem. Tudo, hoje, é pesquisa. E vamos mudar completamente o nosso Moçambique. Dominem a ciência, a tecnologia para a agricultura, educação, saúde e todos os sectores. Dominem isto”, sublinhou Alberto Chipande, num discurso com desabafo à mistura: “chega da dependência, mas quem deve dizer isso são vocês. Não aceitar migalhas e esse acabou depende de vocês. Não deixarem pessoas vos roubarem. Agora, crie mentalidade de toma e dá. Quer gás, dá, e se não tem, vai lá. Quer ouro, toma e dá. Se não tem, vai lá”.

E para o general na reserva, não restam dúvidas de que o terrorismo em Cabo Delgado é pelos recursos naturais, daí que apela aos jovens que sejam vigilantes e não se juntem ao grupo terrorista.

“Mas nunca vão tomar o gás de Cabo Delgado e muito menos o petróleo. É por isso que estamos a combater. Há três anos, mas não conseguem. Não temos armas, não temos nada, mas não vão conseguir. Toma, dá porque lá não há tribalismo. Não há regionalismo. Somos moçambicanos que estamos a combater. São moçambicanos que se deslocam para outras províncias e são apoiados. São jovens de todo o país que vão para lá sacrificar-se. Por isso eles (os terroristas) não vão conseguir”, disse Chipande, num tom de convicção.

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