Luca Bussotti
Os políticos africanos da altura das lutas ou dos movimentos para as independências tinham um perfil bastante claro: acima de tudo, eram intelectuais que, devido às condições históricas daquele momento, dedicaram parte das suas vidas à política. Em segundo lugar, tratava-se de indivíduos que faziam parte de estruturas colectivas bem delineadas, que conseguiam elaborar ideias, projectos, programas com base no interesse comum. Não que não houvesse individualismos, mas o objectivo a ser alcançado era tão grande que estes se escondiam tão bem que nem vinham à tona, pelo menos no debate público. A seguir, os mesmos (ou quase, salvo alguém que não conseguiu ver o seu país independente, como Cabral ou Mondlane) enveredaram para um caminho de autonomia e de orgulhosa procura de uma maneira africana de estar na geopolítica.
Exemplos não faltam a este propósito: os vários Nyerere, Nkrumah, Senghor, Mandela, só para recordar alguns deles, juntavam as três características acima mencionadas: eram grandes intelectuais, pensadores conhecidos internacionalmente para as suas elaborações teóricas. A Negritude, a Self-Reliance, o envolvimento dos camponeses em cooperativas de produção como as Ujamaa, o Panafricanismo e o Ubuntu eram todas elas ideias fortes que estes intelectuais propuseram à opinião pública, procurando aplicá-las concretamente nos seus respectivos países e, em parte, a nível continental. Nem sempre a realidade reflectiu a teoria, mas o que interessa, aqui, é que estes estatistas eram, antes e acima de tudo, elaboradores de ideias colectivas que brotavam do contexto africano.
Juntamente com esta característica, a componente ética era também notável: alguns deles deram a vida para a causa da libertação ou da independência completa da pátria: não só, como acima recordado, Cabral e Mondlane, mas personagens do calibre de Patrice Lumumba desafiaram as grandes potências ocidentais a custo da sua própria vida. Um custo que deve ser interpretado como a tentativa de construir estados africanos realmente autónomos, que procuraram, no início do caminho das independências, adquirir um estatuto de autonomia económica e política e de dignidade e respeito a nível nacional, continental e internacional que hoje parece esquecido.
O político ideal, usando categorias de Max Weber, naquela época nem tanto remota era, portanto, quem sabia encarnar o espírito de afirmação pacífica do seu povo, procurando potencializar as estruturas internas para garantir o bem-estar aos cidadãos que temporariamente estava a administrar. Os laços com outros países, ou seja, as relações internacionais eram determinadas, acima de tudo, por aspectos de comunhão de ideais, depois de conveniências económicas, mas sempre finalizadas a adquirir um estatuto de independência efectiva das ajudas externas. O caso de Moçambique é significativo, deste ponto de vista: apesar das grandes desvantagens que isso implicou, Samora Machel resolveu aplicar à letra as sanções internacionais contra o Rodésia do Sul de Ian Smith, recebendo no solo pátrio exilados políticos de vários países, principalmente sul-americanos, que na altura estavam fugindo de ditaduras de matriz fascista.
Não interessa, aqui, fazer uma avaliação da política de Moçambique daquela época: o importante é assinalar que havia uma coerência – até estabelecida na Constituição de 1975 – entre estrutura interna do Estado e relações internacionais, procurando os “amigos” naqueles países que partilhavam ideias com Moçambique. Samora Machel, portanto, se juntou àqueles líderes que tentaram tornar mais autónomos seus países com a ajuda de outras nações aliadas, acima de tudo do ponto de vista ideal, mas não necessariamente ideológico (vários países ocidentais liberais, como Suécia e Itália, foram parceiros fundamentais de Moçambique desde a luta de libertação).
O quadro que temos hoje está completamente invertido: o político africano, salvo raríssimas excepções, não tem nada de intelectual, tem muito pouco de postura ética virada para o bem comum, e sobretudo é avaliado por parte dos seus próprios cidadãos mediante a fita métrica do saber angariar fundos de parceiros externos. O caso de Moçambique, mais uma vez, é significativo: há poucos dias fontes governamentais, a que se juntaram pontualmente quase todos os órgãos da comunicação social, públicos e privados, anunciaram com grande pompa que o Fundo Monetário Internacional tinha retomado o programa de ajuda para Moçambique. Esta atitude deve ser enquadrada no seio de uma “lógica do pedir” que há muito tempo tomou posse da política moçambicana e, em geral, africana. O bom político, assim, não é a pessoa que tem ideias e programas para desenvolver autonomamente o seu próprio país, mas sim quem consegue fundos externos (na maioria dos casos a serem gastos de forma desnecessária ou até ilícita, como no caso das dívidas ocultas), aumentando a dependência e a dívida pública que, depois, alguém terá de pagar.
Seria interessante, hoje que estamos nas vésperas de eleições autárquicas e a seguir presidenciais, ouvir dos vários partidos moçambicanos propostas cuja finalidade seja a forma como o país poderá se tornar mais autónomo dos empréstimos externos, aumentando a sua capacidade produtiva nos principais sectores económicos: primário, secundário e terciário. Ideias fortes devem voltar na arena política nacional e continental, porque só assim é que Moçambique – assim como todos os outros países africanos – poderá traçar um caminho minimamente viável para as gerações futuras, a que qualquer político digno deste nome tem de garantir um futuro melhor do presente assim como do passado.
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