A retenção da rapariga na escola e o acesso à educação para todas as crianças são algumas das prioridades que constam no Plano Estratégico da Educação 2020 – 2029. Entretanto, em alguns distritos da zonal sul, concretamente província de Maputo, muitas são as raparigas que, por falta do apoio dos progenitores acabam, desistindo dos estudos. Anabela e Filomena viram os pais a lhes cortarem as pernas enquanto queriam dar continuidade aos estudos. As duas raparigas, hoje com 27 e 29, respectivamente, tentam lutar contra o tempo e contaram ao Evidências o drama que viveram quando foram pretéritos em detrimento dos irmãos.
Texto: Duarte Sitoe
Garantir que todos tenham acesso à educação é dos objectivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Entretanto, apesar do Governo e algumas organizações da sociedade levarem a cabo uma série de iniciativas para reter a rapariga no ensino primário e secundário, existem pais e encarregados da educação que preferem investir na educação dos rapazes em detrimento ao da rapariga.
Anabela Macamo teve o azar de ingressar a escola muito tarde porque vivia no distrito de Moamba, por sinal longe dos estabelecimentos de ensino primário. Foi com nove anos que Macamo ingressou na primeira classe, tendo chegado a 10ª classe sem repetir de classe.
“Eu vivia na Vila de Moamba e tinha que caminhar mais de cinco quilômetros para encontrar uma escola. As outras crianças da minha idade naquela época frequentavam o ensino primário, mas eu ajudava os meus pais na machamba e nos deveres de casa. Felizmente, mudamos de residência quando tinha nove anos e fui a tempo de ser matriculada na primeira classe e cheguei a 10ª classe sem repetir nenhuma classe”, contou Anabela.
Quando tudo parecia que a transição da 10ª para a 11ª classe seria um mar de rosas, Anabela não teve vaga tanto para o curso noturno assim como para diurno, sendo que só tinha uma opção para dar continuidade aos estudos, ou seja, uma escola privada ou um internato.
Entretanto, Macamo, já com 18 anos de idade, deu aos pais a ideia de dar continuidade aos estudos numa escola privada ou num internato, mas, debalde, as suas aspirações foram “sol de pouca dura”.
“Depois de concluir a 10ª classe tive o maior revês da minha vida. Não tive vaga e pedi ao meu pai para dar seguimento aos estudos, mas o mesmo disse que preferia investir na educação dos filhos homens porque teria retorno no futuro. Chorei durante muitos dias, mas a decisão já estava tomada”.
Quis o destino que Anabela ficasse gravida no mesmo ano em que lhe foi gorada a possiblidade de prosseguir com os estudos o que, de certa forma, foi uma “arma” usada pelo pai para justificar a sua decisão. Foi já no lar e com três filhos que Anabela Macamo voltou à carteira para recuperar o tempo perdido, estando no presente a frequentar o terceiro ano Instituto Superior das Ciências de Saúde.
A fonte refere nas entrelinhas não guarda rancor dos pais, mas tem feito de tudo para não cometer o mesmo erro.
“O passado ficou para história. Não pude dar o seguimento aos estudos por razões alheias a minha vontade, mas, mesmo depois de ser mãe de três filhos, voltei a estudar e estou quase a terminar o meu curso no Instituto Superior de Ciências de Saúde. Tenho três filhos e todos gozam direitos iguais. Exorto aos pais e encarregados para não priorizarem uns em detrimento dos outros porque isso prejudica o empoderamento da rapariga”
“Os pais devem perceber que nem sempre investir no homem é sinônimo de sucesso”
Filomena Macaringue, nascida na província de Gaza, ainda guarda sequelas do passado, uma que não teve oportunidade de ir à escola por imposição dos pais que entendiam que a mesma devia ser preparada para futuramente ser esposa de uma família sucedida.
Ao Evidências Macaringue contou que os homens é que tinham direito de ir à escola na sua família. “As mulheres não podiam ir à escola na minha família. Era um cenário triste. As mulheres eram preparadas para casar com homens das famílias bem – sucedidas e de preferência com pais que trabalhavam na África do Sul. Foi ao lar quando tinha 17 anos e não sabia ler muito menos escrever. Se alguém mandasse mensagem no meu telemóvel tinha que pedir ajuda de alguém para ler”.
Filomena Macaringue teve a sorte de se mudar para Maputo e vivia perto de um Centro de Alfabetização. A fonte conta que nos primeiros dias foi consumida pela vergonha de começar a aprender a ler e escrever já com quase trinta anos de idade, mas o apoio do marido foi imprescindível para ingressar naquele centro.
“Sempre foi meu sonho aprender a ler e escrever. Ouvi que na minha nova zona existência um centro que ensinava a ler e a escrever as pessoas que não tiveram a oportunidade de estudar no passado. No princípio tinha vergonha, mas o mesmo marido apoiou-se e comecei a frequentar a escola. Felizmente hoje não preciso da ajuda de ninguém para ler mensagens no meu telefone, já sei lei e escrever. A idade e o tempo nunca foram barreira. Não tivemos a oportunidade de ir à escola no passado, mas hoje podemos correr contra o tempo”.
A activista social e psicóloga, Nilda Samuel, referiu, por sua vez, que os pais não podem ter preferências quando se trata dos filhos. De acordo com Samuel, os pais e encarregados de educação devem perceber que nem sempre investir no homem é sinônimo de sucesso.
“Todos temos os mesmos direitos perante a Constituição da República. Infelizmente, ainda há pais que discriminam a rapariga porque investindo nela não terão retorno, devem perceber que nem sempre investir no homem é sinônimo de sucesso. Há muitos exemplos de mulheres que conseguiram se formar e orgulharam os pais”.
Nas entrelinhas, Nilda Samuel apontou que rejeição pode, por um lado, criar traumas nas mulheres, mas, por outro, pode contribuir para a mudança de comportamento.
“Nenhuma mãe deseja o mal aos filhos. As mulheres que foram preteridas no passado vão tratar os filhos da mesma forma o que, de certa forma, pode contribuir para a mudança de comportamento na sociedade. Entretanto, há outras que podem guardar traumas do passado e repetir os erros dos seus progenitores”.