- Consumidores com mais de sete meses sem água, mas recebem facturas mensalmente
- Escassez de água chega a forçar abandono nos condomínios luxuosos
- Muita água, poucas infra-estruturas hídricas e défice de manutenção
- Há relatos de que técnicos não implementam plano de abastecimento para vender facilidades
São três horas da madrugada. O sol sequer deixa sua luz espreitar, mas já há agitação e um barulho que soa igual a tambores no populoso bairro Nampaco, arredores da superpovoada cidade de Nampula, a capital do Norte. Em pouco tempo, as ruas são tomadas por pessoas de todas idades, maioritariamente mulheres e crianças, com bidões em direcção ao poço. É o reflexo do dia-a-dia dos munícipes da cidade de Nampula, onde as limitações da barragem responsável por cobrir a cidade mostram-se contínuas, aliada à falta de infra-estruturas hídricas auxiliares e deficiente manutenção das já existentes. As autoridades só conseguem prover apenas um quarto (¼) da necessidade da urbe, deixando milhares na penúria. A escassez abrange também os condomínios que, apesar de recorrerem ao fornecimento assegurado por camionistas que vendem água em tanques cisternas, assistem ao abandono dos clientes que, para além do luxo, querem o básico, a água de forma regular. É aqui onde existe um esquema montado pelos técnicos, que consiste na não implementação do plano de abastecimento alternado, a fim de vender facilidades.
Nelson Mucandze
Em termos oficiais, a insuficiência no abastecimento de água está sendo minimizada através da distribuição alternada por bairros, que, apesar de se verificar todos os meses do ano, é formalmente anunciada nos meses de pico, como se verificou em Outubro passado.
Mas, apesar das autoridades garantirem que tem “bombado” a água para os bairros nos dias estabelecidos, existem locais em que os consumidores registam meses sem água. Ao Evidências narram o dramático quotidiano de ter de acumular mensalmente facturas, quando precisam de madrugar às 3 horas, todos os dias, para comprar água do poço, antes que esta se agite e se torne imprópria para o consumo.
Numa madrugada típica do mês de Outubro, a nossa equipa de reportagem procura documentar o frenesim matinal causado pela busca de água. Estamos no coração do bairro de Nampaco, há uns 10 Km do centro da cidade de Nampula.
Pelas ruas mal parceladas, chama atenção o estado de abandono da torneira de uma residência. Era a casa de Emanuel Elias. A torneira estava sem arejador, sem qualquer depósito e sem tranca, o que não tem sido comum. E o contador com aspecto de que foi vandalizado aumentava a curiosidade. Foi quando a equipa do jornal Evidências interpelou o dono de casa que ficou a saber que o aspecto reflectia o pior drama dos últimos tempos.
De acordo com Emanuel Elias, que não vê jorrar qualquer gota de água na sua torneira há seis meses, é preciso acordar as três horas para conseguir água limpa.
“A água não demora ficar suja nos poços e, para conseguir água limpa, é preciso madrugar”, conta, especificando que tem a sorte de ter o poço a 10 minutos da sua casa, havendo, no entanto, pessoas que vem de lugares mais distante e precisam madrugar ainda mais.
É o caso de Maria Mussera, residente no mesmo bairro, que cedo teve de abandonar o marido e o conforto da sua cama para prover água à sua família. Naquele dia, teve o azar de, ao acordar, despertar também a sua criança que teve de a levar ao colo, um peso que vai se acrescentar aos 20 litros de água que vai carregar de cada vez até encher o seu recipiente.
“Estamos a dever cinco mil meticais de água que não consumimos”
A água não jorra há seis meses nas torneiras de muitos munícipes, mas em nenhum desses meses a factura do Fundo de Investimento e Património de Abastecimento de Água – FIPAG (agora a gestão passou para Administração Regional de Águas do Norte – Ara-Norte) falhou, embora as autoridades tenham sido comunicadas da falta deste líquido precioso.
A resposta dos técnicos que entregam as facturas é de que este é um assunto de outros departamentos. Mas é um procedimento interno da Ara-Norte que quem acumula facturas sem ter consumido a água não compreende.
“Estamos a dever cinco mil meticais de água que não consumimos”, protesta Emanuel Elias, com um sorriso sarcástico, enquanto exibia algumas facturas que conseguiu juntar e levar à nossa reportagem.
A escassez de água não foi repentina. “Não é um problema novo, para nós. Mas nem sempre foi assim. No princípio (há vinte anos atrás) saía todos os dias, pelo menos, nos meses de chuva. Depois, começou a não sair com regularidade, mesmo quando chegassem estes meses (Novembro à Janeiro) de época chuvosa, mas saía”, explica o jovem.
No sair e não sair, o facto é que tudo foi piorando até se chegar aos níveis actuais. “Estamos a acumular facturas e para nós é, de facto, irónico ter de pagar algo que não consumimos. E o mais engraçado é que as facturas nunca falham”, continuou Elias.
Mais para o interior do bairro, foi possível apurar que, embora as autoridades digam que fornecem água em dias alternados, no terreno a realidade é outra. A escassez de água tem sido contínua e piora a cada ano, evidenciando o fracasso das várias iniciativas que, em eventos pomposos, têm sido lançadas, muitas delas apadrinhadas pelo Banco Mundial, como parte da resposta para os desafios da urbe e da região norte em geral.
Enquanto os consumidores narravam o drama que enfrentam para conseguir água há mais de seis meses, a Administração Regional de Águas do Norte (Ara-Norte) e o Fundo de Investimento e Património de Abastecimento de Água (FIPAG) anunciavam restrições no fornecimento de água à urbe, alegando estiagem que se verifica na província de Nampula, como se o assunto fosse novidade.
“Pedi para tirarem torneira da minha casa”
A dona Sofia Abudo, residente no bairro de Namutequeliua, não acredita que a indisponibilidade de água seja mesmo por incapacidade do fornecedor, o FIPAG (agora Ara-Norte). Ela explica que sempre que a comunidade se organiza e vai pressionar pela solução acaba jorrando por um ou dois dias.
“Quando fomos reclamar eles abriram a água por dois dias”, sentenciou, completando que o que a comunidade quer é uma solução definitiva.
“Eles trazem facturas e dizem que é da taxa única de 150 meticais, porque tenho torneira na minha casa, então pedi para virem retirar a torneira da minha casa. Cinco meses a pagar 150 é dinheiro suficiente para comprar saco de farinha”, desabafou Sofia, secundada pelas vizinhas que a acompanhavam.
O problema não está apenas no acesso. A água do poço também tem seu preço, ou seja, no fim do mês tem uma factura dupla: a cobrada pelo FIPAG e o peso do dinheiro que diariamente paga para poder comprar água no poço.
“Temos que pagar a taxa única do FIPAG e depois pagar cinco meticais por recipiente de 20 litros pela água que consumimos”, queixa Catarina Mussera. As mesmas queixas são ouvidas dos residentes dos bairros de Muahivire, Napipine, Namicopo, Muatala, entre outros onde as torneiras estão apenas para enfeitar a casa.
O presidente do Conselho Municipal, Paulo Vahanle, disse ao Evidências que reconhece o martírio que os munícipes vivem para ter acesso ao precioso líquido, assumindo, no entanto, que a sua intervenção é limitada, não só em termos de fundo, como também em termos de atribuições. Mas mesmo assim, numa tentativa de auxiliar a empresa pública, disse que abriu 20 furos de água, reconhecendo que isto é “uma gota no oceano”.
A falta de água influencia nas receitas da edilidade, na medida em que esta não consegue recolher a taxa de saneamento. É que à luz de um memorando entre o FIPAG e o Município de Nampula, cabe ao primeiro fazer a cobrança da taxa de saneamento para depois canalizar a edilidade. Mas as facturas aos munícipes nunca falha, pelo que é desculpa de mau pagador.
Uma escassez com contornos criminosos
Um dos negócios que vem caracterizando a cidade de Nampula nos últimos anos é o imobiliário. Nos condomínios que nascem como penas em aves em Nampula, o consumo de água é notório, o que gerou uma oportunidade para alguns técnicos da Administração Regional das Águas do Norte, ou mesmo FIPAG enquanto aquele não se assume como distribuidor de água, fazerem florescer os seus negócios.
A nossa reportagem visitou, na cidade de Nampula, o condomínio Milénio, no bairro de Namicopo. Por ali, o Evidências assistiu o murchar das plantas, em frente às casas bem concebidas e na sua maioria pertencentes a figuras bem posicionadas a nível nacional.
Não eram só as flores a denunciar a falta do essencial, as piscinas também estavam vazias e secas. É a falta de água a desconfigurar a beleza das residências, um cenário que se replica nos demais condomínios e moradias cuja localização não permite abertura de furos.
Em conversa com a representante do Condómino Milénio, que pediu para falar na qualidade de residente, este reconheceu que a crise de água chega a afugentar inquilinos, quando descobrem que é preciso outra ginástica para conseguir água. No entanto, a administração do condomínio tem estado em constantes conversações com o FIPAG, para gerir esta crise que prevalece há anos e não tem fim à vista.
Alguns condomínios como a Serra da Mesa acabaram abandonando o FIPAG, logo que tiveram sucesso na abertura de furos de água.
O Evidências apurou que a falta de um plano de abastecimento em muitos bairros é, nalguns casos, propositada, porque os técnicos acabam se aproveitando da situação para disponibilizarem a água mediante pagamentos ilícitos.
Num dos bairros visitados, um dos moradores entrevistados denunciou a nossa reportagem que pagou dez mil meticais a um dos técnicos do FIPAG para passar a ter água, o que tem acontecido desde então. Curiosamente, o seu vizinho de lado nem uma gota, o que sugere um esquema de montagem de válvulas por residências pelos técnicos desonestos. O facto acaba por comprometer toda a administração, na medida em que estes não têm mapa organizado das válvulas montadas clandestinamente.
Por outro lado, há consumidores que associam as constantes limitações do provedor público de água com o negócio da venda de água.
Cidade tem défice de 10,2 mil milhões
As autoridades só conseguem prover apenas um quatro (¼) da necessidade da cidade de Nampula, quando a barragem de Nampula, construída no tempo colonial, está a 100 porcento do seu actual encaixe. Dados da Administração das Águas da Região Norte indicam que a barragem responsável por abastecer a cidade tem capacidade para 3.8 mil milhões metros cúbicos, muito abaixo de cobrir uma cidade que necessita de 14 mil milhões metros cúbicos.
Em Outubro, altura em que a nossa equipa esteve no terreno, a barragem estava abaixo da sua capacidade, o que forçou o anúncio das restrições para distribuição por bairro. No entanto, nem com a implementação na íntegra do abastecimento alternado, seria possível cobrir a cidade que, com base no seccionamento (restrição) de válvulas, carece de 120.000m³/dia, estando em situações “normais” a dar 40.000m³/dia, o que significa, entretanto, que Nampula regista um défice de 80.000m³/dia.
Numa tentativa de imprimir uma nova dinâmica na distribuição de água, o Governo remodelou o papel do FIPAG e criou as sociedades comerciais regionais de água, enquadradas na sua estratégia para melhorar a eficiência, fiabilidade e sustentabilidade dos sistemas bem como da expansão dos serviços que serão suportados pelo Programa de Investimentos 2022-2032. Lançadas em Outubro, estas estão distribuídas em Águas da Região Norte, Águas da Região Centro, Águas da Região Sul e Águas da Região Metropolitana de Maputo, sendo todas elas Sociedades Anónimas.
A ideia por detrás das reformas que obrigaram, no caso da Região Norte, a exoneração de toda antiga administração regional, sedeada em Nampula, parte do princípio de que o FIPAG foi criado para gerir o fundo e património das águas e, com a descentralização, espera trazer outra dinâmica, melhorar a gestão e controlo de forma transparente e fomentar a concorrência na melhoria de prestação de serviços entre estas instituições que se esperam sustentáveis.
Das três regiões do país, dados públicos apontam que a área de jurisdição da ARA-Norte é a região com maior disponibilidade de água no país e o grande Calcanhar de Aquiles é a disponibilidade do sistema de abastecimento de água, devido a falta de infraestruturas de armazenamento deste precioso líquido, dependendo, no caso de Nampula, da única infra-estrutura construída no tempo colonial.
Foi possível constatar que, praticamente, todas as casas nesta região acabam construindo os seus próprios depósitos de água, transferindo essa problemática para uma solução “doméstica” que tem resultado ou poderia resultar melhor com a divulgação e cumprimento de um plano de abastecimento.
Porém, internamente, há quem ousa traçar um perfil de gestores indicados por mera acomodação política, facto que acaba originando descontentamento e actos de sabotagem coordenadas até com algumas chefias igualmente insatisfeitas por não merecerem reconhecimento.
A longa espera pela disponibilidade da Ara Norte
Internamente, são comuns relatos de casos de meios circulantes da instituição que chegam a ficar meses na manutenção, porém não levantados por alegada falta de fundos, denúncias de rompimento de furos não concertados pontualmente e águas turvas que jorram das torneiras.
Solicitada para falar desta problemática e sua visão para tirar a região da crise, a Ara-Norte pediu que a nossa reportagem mandasse as questões e aguardasse pelas respostas. No entanto, passaram-se três meses e a administração nada disse.
Na insistência, depois de se alegar ausência do PCA da Ara Norte, em viagem para fora do País, fomos informados que a equipa da administração é nova, que ainda se estava a inteirar dos desafios da instituição.
Não é possível deixar de questionar de quê a equipa se inteirar, sendo que os problemas, decorridos meses, qualquer cidadão comum pode relatar.
*Esta reportagem foi produzida com a poio da MidiaLab, no âmbito do programa REAJIR, financiado pela USAID.

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