Em Impire há mais adolescentes grávidas que mulheres adultas

SOCIEDADE
  • Muitas raparigas trocam escola por lar por obrigação dos pais
  • Maridos não aceitam que esposas adolescentes usem métodos contraceptivos
  • “… meu marido pretende ter 10 filhos para igualar o pai”

Práticas culturais tóxicas, sobretudo transmitidas pelos pais, tem contribuído para o recrudescimento de casos de uniões prematuras no Posto Administrativo de Impire, Distrito de Balama, província de Cabo Delgado, onde as raparigas trocam a escola pelo lar, muitas vezes em casamentos arranjados ou consentidos pelos próprios progenitores. Os dados das autoridades de saúde naquele ponto do País revelam uma situação dramática. Há hoje mais adolescentes em consultas pré-natais e nas camas das maternidades do que mulheres adultas. Mesmo assim, o Governo e sociedade asseguram estar a trabalhar no resgate de raparigas dos casamentos prematuros.

Duarte Sitoe

O Governo de Moçambique, em parceria com a Sociedade Civil, tem estado a implementar algumas acções com vista a reduzir o número de raparigas que desistem da escola motivadas por diversos factores como pobreza, uniões prematuras, gravidezes precoces, entre outros.

Contudo, no Aposto Administrativo de Impire, Distrito de Balama, província de Cabo Delgado, parece que o Executivo perdeu está “batalha”. Os casos de uniões prematuras são a todos níveis aterradores e os relatos das vítimas são arrepiantes. A viverem num ciclo vicioso de violência desde a tenra idade, altura em que começam a ser preparadas para o casamento, raparigas ouvidas pelo Evidências declaram-se felizes no casamento.

A inocência ainda lhe corre pelos olhos, mas Maida Assane, de 17 anos de idade, já tem dois filhos, de 02 e 04 anos. Assane foi pressionada pelos pais a preferir o casamento (prematuro) ao invés de ir para escola.

“Nunca fui a escola. Agora tenho dois filhos e meu marido tem 33 anos. Estou no lar desde 2019 e não me arrependo por isso. Os meus pais disseram que sou mulher e ao invés de ir escola tinha que aprender a cuidar do meu futuro marido. Não me arrependo de ter casado cedo, porque terei muitos filhos”, disse Maida Assane.

Para agradar o seu marido e a sua família, Maida diz que a meta é ter 10 filhos. Curiosamente, em quase 15 minutos de conversa, em nenhum momento colocou seus sonhos e desejos como prioridade.

“Actualmente temos dois filhos, mas o meu marido pretende ter 10 filhos para igualar o pai. Aqui em Impire ninguém fala de outros por ter muitos filhos. Como mulheres, somos ensinadas a dar filhos aos nossos maridos. Não podemos passar a vida a reclamar porque temos que ser esposas obedientes”, disse a menor, expondo, alguns dos ensinamentos que adquiriu em casa e nos ritos de iniciação.

Ao contrário de Maida, Isma Suelé até frequentou a escola, mas foi obrigada a interromper os estudos na sua adolescência para casar com um comerciante de 42 anos de idade. Sem reservas, Suelé declarou que é feliz na sua relação, uma vez que o marido a respeita e cuida dos três filhos.

“As pessoas até podem falar, mas estou muito feliz no meu casamento. O meu marido me respeita e respeita os meus pais. Não olho muito para aquilo que as pessoas falam, uma vez que dizem que me juntei com ele para fugir da pobreza, mas a nossa relação já gerou três filhos. Os meus pais me aconselharam a interromper os estudos para casar e fruto disso hoje sou muito feliz. Tenho que agradecer aos meus pais por isso. Já vieram alguns professores a me mobilizarem para ir a alfabetização, mas meu esposo não permitiu”, disse Isma, demonstrando alguma inocência.

Já Joana Armindo, actualmente com 19 anos de idade, é outra adolescente que foi desviada dos estudos pelo casamento prematuro. Foi quando tinha 14 anos de idade que se juntou com um homem de 26 anos de idade por indicação dos pais.

Agora, com cinco anos de experiência de casamento, Joana não pensa em voltar à escola, uma vez que a mãe e o pai nunca frequentaram uma escola.

“Minha mãe nunca estudou e me disse que tinha que seguir o mesmo caminho. Desde criança ela me ensinou a cuidar do meu futuro marido. Hoje estou no lar graças aos ensinamentos dos meus pais. E eles estão felizes porque o meu marido nunca reclamou. Aqui as raparigas respeitam as decisões dos pais, quando eles dizem casa ela deve aceitar. Estudei até 5ª classe, felizmente sei ler e escrever”, refere.

Activista social denuncia conivência dos pais e líderes comunitários

A médica afecta à maternidade do Centro de Saúde de Impire, Ângela Damião, em entrevista ao Evidências, mostrou preocupação com a prevalência das gravidezes na adolescência, revelando que tem atendido em média 10 adolescentes por dia.

“É preocupante o que está acontecer ao nível deste distrito. Há mais adolescentes grávidas que mulheres adultas. Quando falamos de métodos contraceptivos elas alegam que os maridos não aceitam. Temos tentado fazer a nossa parte, mas os resultados ainda não são animadores. Como crianças deviam se preocupar em ir à escola, mas não é isso que tem acontecido. Elas preferem ir ao lar ao invés dos estudos”, sublinha.

Na qualidade de responsável pelo sector da Educação e Desenvolvimento a nível do Posto Administrativo de Impire, Alves Paulino, mesmo sem adiantar números, referiu que tem trabalhado com a Polícia da República de Moçambique para resgatar as raparigas das uniões prematuras.

“Os casamentos prematuros são uma realidade no nosso distrito. Não podemos olhar para isso de ânimo leve. Como sector da Educação estamos a trabalhar com as autoridades da lei e ordem para recuperar algumas raparigas dos casamentos prematuros. Já recuperamos algumas, mas depois de alguns dias as mesmas voltam. Temos trabalhado com as comunidades para denunciar possíveis casos. Já tivemos casos de sucesso embora sejam em menor número”, lamentou.

Por sua vez, Sónia António, activista que trabalha a nível distrital apontou os ritos de iniciação como o factor para a prevalência de uniões prematuras em Impire. Nas entrelinhas, acusa os líderes comunitários e pais pela explosão de casos de casamentos prematuros.

“Através de um projecto financiado pelo USAID, temos trabalhado com a população para reduzir os casos de casamentos prematuros. A nossa luta parece inglória, porque quanto mais trabalhamos mais aumentam os casos. Os líderes comunitários têm sido coniventes, porque invés de denunciar participam nos casamentos. O Governo deve trabalhar seriamente neste distrito e em outros porque os casamentos prematuros minam a retenção da rapariga nos estudos. Defendemos que a rapariga tem os mesmos direitos que os rapazes e vamos continuar a trabalhar para reduzir esses números assustados”, reconheceu.

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