O que sobrou do acordo de paz

OPINIÃO

Luca Bussotti

As danças para rever, dum ponto de vista prático, o último acordo de paz entre o Governo e Renamo foram abertas pela Frelimo. Depois de o Presidente Nyusi ter-se pronunciado em várias circunstâncias sobre a impossibilidade – ou a falta de vontade – de proceder às eleições distritais em 2024, dias atrás o chefe da bancada parlamentar do maior partido de Moçambique abriu oficialmente as danças para rever este ponto. Que não é um ponto qualquer, mas faz parte do pacote legislativo que, em 2018, foi votado pela Assembleia da República mediante uma emenda pontual da Constituição como tradução de uma parte do acordo político entre Governo e Renamo para fechar o conflito que estava de novo a assolar o Centro do país.

Venâncio Mondlane, em nome do grupo parlamentar da Renamo, como resposta indirecta a esta postura da Frelimo sublinhou que a figura dos Secretários de Estado provinciais não faz sentido, não tendo nenhuma base legal, e tendo sido introduzida para “minimizar o risco” de a Frelimo deixar de controlar esta ou aquela parcela do País, pelo menos a nível descentralizado.

Do lado militar as coisas parecem não andar de forma mais positiva. Existe resistência e descontentamento nas fileiras da Renamo sobre o processo de desarmamento e sobretudo de reintegração dos antigos militares do exército de Dhlakama no exército nacional, assim como a respeito do pagamento das suas pensões, para os que já têm atingido a idade da reforma.

Em suma, depois de três anos da assinatura, em 2019, do acordo definitivo de paz, parece que pouco sobrou dele, e que tal acordo aparenta não ser tão definitivo como todo o mundo pensava e esperava.

O que mais interessa aqui realçar é a parte política deste acordo. Assim como a militar, não precisava de um gênio ou de um vidente para prever que tal acordo podia ter pernas curtas…O motivo é simples: os acordos de paz se fazem, por definição, quando entre as partes beligerantes se instaura um novo clima de confiança cujo objectivo fundamental é construir uma paz verdadeira, autêntica e realmente definitiva. Ora, o que está a acontecer em Moçambique é um fenómeno que em outros países africanos não chegou de se verificar: aquela desconfiança que as velhas gerações tinham entre elas foram transmitidas para as novas, sem solução de continuidade…ou seja, os ideais de paz e harmonia social que qualquer processo de paz devia difundir não se manifestaram em Moçambique. A desconfiança mútua continua a mesma dos anos Setenta e Oitenta. O que mudou só foi o quadro político internacional e as modalidades de levar a cabo esta luta.

Foi esta a razão que fez com que as duas partes procuram agora desmontar  os conteúdos fundamentais do acordo de paz, que encontrou a sua tradução legal na Constituição, ou seja, no pacto mais supremo entre os cidadãos, que deveria ser salvaguarda e defesa de forma unitária. Vice-versa, a Constituição parece algo maleável e mutável segundo as conveniências deste ou daquele partido. Se a Frelimo acha que as eleições distritais podem constituir um risco para quebrar o monopólio do seu poder, então é suficiente usar do poder da sua maioria parlamentar para azerar tudo e considerar o que foi assinado como algo escrito na areia…Se a Renamo julga que o Secretário de Estado provincial não tem bases legais, então vale a pena eliminar esta figura. Conclusão: o acordo definitivo de paz foi assinado de forma superficial e pensando no seu fecho imediato, mais do que em dar estabilidade político -institucional ao país. E o próprio país está a voltar a viver um clima de grande incerteza, que não se sabe onde é que irá desaguar.

O que geralmente acontece em situações parecidas é, por um lado, respeitar quanto previsto em acordos assinados entre as duas partes e “sacralizados” pela Constituição. E, em segundo lugar, se na Assembleia da República os partidos acham que chegou o momento de rever a Constituição, este processo convém que seja feito convocando uma Assembleia Constituinte, de preferência envolvendo também os representantes da sociedade civil, mais do que proceder a uma alteração constitucional através da força dos números que este ou aquele partido detém no parlamento, e de forma pontual, mudando o que convém para o próprio interesse de parte.

Se trata de um percurso exclusivamente político, cujo objectivo deveria ser a afirmação da paz e da estabilidade do país e de suas instituições. Se, vice-versa, o objectivo é perpetrar o poder mediante actos de força que a lei dos grandes números permite, nesse caso a Frelimo poderá usar a maioria de que goza no parlamento para fazer todas as alterações constitucionais que pretende, sem a necessidade de se apoiar a uma Assembleia Constituinte, ou a meios mais democráticos e participativos para realizar seus fins.

Fica evidente, porém, que do acordo definitivo de paz quase nada vai sobrar…

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