- Três anos de um triunfo que não acaba com terrorismo
- Os americanos apresentaram “uma proposta para o fim de terrorismo, em 2021, mas ficou na mesa, sem resposta”
- Ruanda atenua ausência de um Executivo funcional no norte de Cabo Delgado oferecendo serviços básicos como Educação e comida
- Empresas ruandesas e francesas chegam a unir-se para uma frente comum: abocanhar negócios no perímetro da força ruandesa
A guerra compensa. E em Cabo Delgado, o maior compensado é Ruanda, o mais capacitado em termos bélicos, e que “triunfa” na batalha contra os terroristas, e a nível económico expande seus interesses empresariais mostrando-se o eleito da francesa TotalEnergies e do Governo, que entregam tudo: obras de construção, minas de exploração, serviços de segurança e mais. Empresas ruandesas e francesas chegam a unir-se para uma frente comum: abocanhar negócios de Palma. Com uma notável presença de empresas próximas a Paul Kagame, a tropa ruandesa assume postura corporativa (mercenária) e começa a fazer responsabilidade social, numa estratégia que sugere interesse em ter aprovação das comunidades locais, apoiadas através de assistência dos serviços básicos, desde mercados, escolas, alimentos, que o Executivo, naquela que é a região mais rica do país, não consegue prover. São conquistas dos três anos, que assinalam, hoje, dia 09 de Julho, a chegada do contingente militar ruandês a Moçambique para ajudar as Forças de Defesa e Segurança (FDS) no combate aos ataques terroristas que semeiam luto há sete anos. A data coincide com a saída, semana passada, da Missão Militar da SADC em Moçambique (SAMIM), que apoiou o País no combate ao terrorismo desde 2021. Ruanda, o “mais piedoso e capaz”, planeia enviar mais homens para cobrir o défice que se abre com a saída das forças da SAMIM enquanto mantem-se engavetadas as propostas de outros parceiros, como é o caso dos americanos, que fizeram “proposta para o fim do terrorismo em 2021”, mas nunca foram respondidos.
Nelson Mucandze
Até o primeiro trimestre deste ano, os ataques terroristas já tinham provocado a morte de mais de quatro mil pessoas e levado mais de um milhão a procurar refúgio em locais mais seguros. Um milhão de deslocados, para quem não consegue visualizar, estamos a falar de quase toda a população da cidade de Maputo.
Este mal, que mata de forma mais cruel, começa a se manifestar no segundo ano do primeiro mandato do Executivo de Filipe Nyusi. Nos anos que se seguiram, as FDS somaram assinaláveis derrotas no confronto contra os terroristas, mesmo lutando ao lado dos mercenários como Dyck Advisory Group (DAG), que ficaram menos de um ano.
Já a tomar controlo de Mocímboa da Praia, em 2020, os insurgentes bloquearam a principal saída de Palma, a estrada R762. E depois alastraram o controlo e tomaram o posto fronteiriço de Nonje, na fronteira com a Tanzânia, no rio Rovuma, isolando definitivamente a vila de Palma. Os mais ousados tentavam sair da vila via Pundanhar, até Mueda, e depois seguiam até onde a estrada N380 mostrava-se segura, numa saída que serpenteava a mata densa, mas mais tarde os terroristas se aperceberam a tornaram o troço Vila de Palma – Pundanhar num dos mais mortíferos. Os restos de destruição (casas e viaturas incendiadas) foram removidos em 2023.
Voltando ao ano de 2021, é depois de isolar Palma que os terroristas levaram a cabo o histórico ataque a este distrito, obrigando a suspensão do projecto da TotalEnergies, com volume de negócio calculado em mais de 20 mil milhões de dólares. Seu retorno mantém-se uma incógnita. E os argumentos para não retorno são renovados de ciclo em ciclo, enquanto o Executivo bate no peito ao garantir que há todas condições criadas para retoma do projecto.
Um mês depois dos ataques, numa visita guiada à imprensa, o Jornal Evidências testemunhou a destruição e o cheiro da morte. Bastava sair uns 10 metros da comitiva para ver corpos estatelados que escaparam a limpeza feita por militares, num cenário onde o medo dos civis que buscavam desesperadamente sair em busca de um destino seguro, ao longo da rede que veda o projecto de Afungi, o acampamento da TotalEnergies, era palpável. Os relatos apontavam para centenas de mortes de civis e mais de 30 mil pessoas constavam de dados dos que saíram em busca de locais seguros. Somando-se a um milhão de deslocados divididos, hoje, entre voltar ou buscar outro destino.
É depois desse ataque, dois meses depois, em Julho de 2021, que entra em Moçambique a ajuda militar Ruandesa. E o primeiro acto de bravura foi o resgate de Mocímboa da Praia, que até então encontrava-se nas mãos dos terroristas, colocando em causa o desempenho das FDS, enquanto se alimentava a narrativa de que com os “ruandeses não se brinca”. Longe dos sucessos no Teatro Operacional Norte (TON), a entrada destes no território nacional gerou polémica, por um lado, pelo facto de o Chefe de Estado nunca ter declarado Estado de Guerra ou de Sítio em Cabo Delgado e, por outro, pela exclusão do parlamento no processo.
Três anos depois… terrorismo mantem-se e os negócios cresceram
A solidariedade e apoio militar do Presidente de Ruanda, Paul Kagame, abriram espaço para uma nova ofensiva económica ruandesa em Cabo Delgado. Nestes três anos de operação, a principal holding da RPF, sigla inglesa do partido Frente Patriótica de Ruanda, a Crystal Ventures, através da Macefield Ventures, seu braço internacional, passou a controlar as principais linhas de negócio em Palma, ao assumir, através de sucursais e participadas, os principais negócios dentro e fora de Afungi. São empresas que entraram na construção civil, na segurança e com interesses na exploração de minerais.
Numa investigação feita pelo Jornal Evidências, mostramos que até finais de Novembro de 2023, à margem do apoio militar, nasceu o império empresarial ruandês, que se avolumou com o registo, a 11 de Fevereiro de 2022, da Macefield Ventures Mozambique, detida 99 % pela Macefield Ventures, braço internacional de Crystal Ventures, controlado pelo partido RPF, e 1% por Jean Paul Rutagarama, um nome presente em quase todos negócios da holding controlada pelo partido liderado por Paul Kagame.
Lê-se no Boletim da República que a Macefield Ventures Mozambique tem por objectivo principal o exercício das actividades de gestão de empresas e gestão de negócios, gerindo subsidiárias como a NDP, que é parte das empresas que procedem com as construções no interior de Afungi e a Isco Security, actuando na segurança no interior de Afungi, assumindo missões que, de acordo com autoridades ruandesas, não constam do mandato das forças policiais e militares daquele país, ou seja, complementar a missão destes especificamente nos projectos da TotalEnergies.
A Macefield Ventures Mozambique é accionista da Radar Scape Mozambique, a construtora criada em Abril de 2022 e que no mesmo ano encaixou quase um milhão de dólares para reabilitação de casas na vila de reassentamento de Quitunda, próximo a Afungi. Mas aquela holding detém também a Strofinare Moçambique, uma empresa mineira reestruturada em Abril de 2023 para ceder a participação da Macefield Ventures Mozambique, que passou a deter 90%.
Em acta da assembleia geral extraordinária, datada de 01 de Abril de 2022, a Strofinare Mozambique, Limitada, sociedade por quotas, foi reestruturada para que a sócia Strofinare Limited cedesse a totalidade da sua quota, no valor de 19 mil, correspondente a 90% do capital social, a favor da Macefield Ventures Mozambique, Limitada. Em virtude da cessão dessas quotas, as sócias deliberaram por unanimidade a alteração dos sócios e de capital social que de 20 mil passou para 10 milhões de meticais.
Curiosamente, a reestruturação da Strofinare Mozambique, que passa a pertencer à mesma holding que detém negócios em Palma, coincide com o aumento (de 1000 para 2500) e colocação das Forças Ruandesas no distrito de Ancuabe, no sul da província, onde a indústrias de rubi e grafite havia sido ameaçada pelos terroristas.
A partir da sua nova posição em Ancuabe, as forças de Ruanda realizam patrulhas regulares ao longo da rodovia EN14, cobrindo os distritos de Ancuabe, Montepuez e Balama. Os três distritos são, à semelhança de Palma e Mocímboa, ricos em recursos minerais, nomeadamente pedras preciosas e grafite, o que contrasta com a distribuição das forças da SAMIM, que para além de ter um acordo publicamente conhecido, actuam em zonas relativamente pobres em termos de exploração de recursos mineiros.
Empresas ruandesas em trabalhos conjunto com francesas
Como se pode ver, as empresas de Kigali conseguem negócios no mesmo perímetro cuja segurança é garantida pela força ruandesa. Ainda não está claro se essa conquista ruandesa é produto das relações entres os dois países ou de acordos secretos entre os presidentes de Moçambique e Ruanda, numa amizade apadrinhada pela França, através da TotalEnergies.
Mas não há dúvidas de que Ruanda actua por mandado da França, que tem a má sorte de ter um histórico de terrorismo por onde passa, como se pode ver ao escrutinar as suas colonias em áfrica. Nas suas relações com Ruanda, chega a escolher este país como o ponto de encontro para discutir negócios de Cabo Delgado, como se viu em Junho passado, o que cria uma certa curiosidade e abre espaço para teorias de conspiração.
Num outro contexto, é notável a união das empresas dos dois países para uma frente comum. De acordo com Africa Inteligence, a TotalEnergies contratou a Radar Scape do Ruanda e a francesa de serviços petrolíferos Ponticelli para construir uma central de energia solar de 5MW em Cabo Delgado. A instalação visa satisfazer algumas necessidades de electricidade do projecto Mozambique LNG e a missão foi confiada a Radar Scape que faz parte da Crystal Ventures que tem um contrato com a Instituto de Formação Profissional e Estudos Laborais Alberto Cassimo (IFPELAC), apoiado pela TotalEnergies para cuidar da manutenção dos alojamentos construídos para pessoas que viviam em Afungi, no distrito de Palma, na província de Cabo Delgado.
Enquanto crescem os interesses empresariais, em volumes e acordos marcados por secretismo, no terreno, a força ruandesa combina a sua musculatura bélica com uma convivência simpática com as comunidades locais. Conjugando estas qualidades com acções de responsabilidade social, como construção de infra-estruturas básicas como escolas, mercados e distribuição de alimentação.
Recentemente, estes ofereceram salas de aulas num gesto que sugere responsabilidade social. Casos há que oferecem comida às comunidades e assistem a outras questões básicas, que denunciam ausência de um Governo funcional a nível local.
Em termos de evolução no campo, os grandes ataques sempre ocorrem fora dos radares do “território” ruandês. O que denuncia o medo dos terroristas de confrontar esta força, afinal é evidente que em termos de preparação, a Força ruandesa está melhor preparada que as demais forças, sejam da SADC ou FDS. Em Palma, tem as bases mais sólidas, feitas de betão (ao contrário das FDS que recorre às tradicionais trincheiras), além de ostentar armas mais sofisticadas. E termos globais a tendência de redução dos focos de ataque, mas não há qualquer indicação de que esteja para o fim do terrorismo, até que para os céticos tornaria inútil a presença das forças ruandesas, que não se mostram preparadas para se retirar e não há evidências de que, nos três anos que estão no país, esteja a capacitar as FDS para estarem a altura de responder os atentados terroristas sem apoio desses.
Proposta para o fim do terrorismo foi engavetada
Numa intervenção à imprensa, o embaixador dos Estados Unidos em Moçambique, Peter H. Vrooman, lamentou o silêncio de Governo face às propostas apresentadas para acabar com o terrorismo. “Nós fizemos uma proposta para o fim de terrorismo, em 2021, mas ficou na mesa, sem resposta”, disse, há dias, quando interpelado pela imprensa e abordado sobre o tema, embora tenha desdramatizado esse silêncio das autoridades, ao referir que “estamos abertos e a trabalhar juntos”. De acordo com Vrooman, os EUA estão à espera de “uma resposta do governo do que realmente precisa”.
É dentro desse contexto que triunfa o Ruanda, uma vitória nas batalhas contra os terroristas, na expansão dos interesses comerciais e na aceitação das comunidades locais que se mostram mais confiantes no Ruanda que nas FDS. Do resto, a guerra continua e a TotalEnrgies continua mantendo seu retorno uma incógnita, renovando de ciclo em ciclo os argumentos para não retornar.
Recentemente, a agência de crédito à exportação dos Estados Unidos Banco Exim decidiu que não tomará uma decisão sobre a liberação de apoio financeiro ao projecto Mozambique LNG da TotalEnergies antes das eleições nos EUA, em Novembro, de acordo com a Africa Intelligence, colocando mais incerteza na retoma.
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