“Seja quem for, o novo Chefe de Estado deve apostar na reconciliação de todos os moçambicanos”

DESTAQUE POLÍTICA
  • Escritor Delmar Maia defende combate à corrupção e reconciliação para o restart
  • “O dono da República de Moçambique é o povo moçambicano”
  • “A aposta no combate contra a corrupção é um dever mais do que urgente”
  • “Nem todos os que publicam livros são escritores no sentido literal”
  • Delmar Maia acredita que é possível viver através da literatura, mas….

Moçambique é actual detentor do Prémio Camões, por sinal o mais prestigiado no que respeita à literatura lusófona. Numa entrevista concedida ao Evidências, Delmar Maia, escritor moçambicano radicado em Portugal e presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora analisou o actual estágio da literatura moçambicana, mas também deixou o seu verbo afiado discorrer sobre a política moçambicana e aquilo que pensa sobre o recomeço necessário no novo ciclo de governação que começa em Janeiro próximo. Segundo Maia, que se mostrou solidário com os escritores que têm sido alvo de ameaças por criticarem o actual modelo de governação, é preciso separar o trigo do joio porque nem todos que lançam livros no país são escritores. Por outro lado, olhando para o actual contexto social e económico do país, Delmar Maia referiu que os dirigentes políticos devem ser mais servidores do país e menos patrões e nunca devem se achar proprietários do país. Na entrevista no estilo clássico, cujos excertos mais importantes reproduzimos a seguir, defende que, “seja quem for, o novo Chefe de Estado deve apostar, em primeiro lugar, totalmente na reconciliação de todos os moçambicanos e que a aposta no combate contra a corrupção é um dever mais do que urgente dos dirigentes políticos”.

Duarte Sitoe

Podíamos começar pela literatura, mas decidimos fazer diferente, muito por conta do momento que vivemos neste momento. Iniciou, há pouco, a campanha eleitoral e, como moçambicano na diáspora, de que modo olha para os passos que o país trilhou rumo ao tão almejado desenvolvimento?

Moçambique é um país de contrastes e muitas assimetrias. Se viajarmos de Norte a Sul vemos isso de forma muito clara. Se formos visitar as zonas suburbanas das cidades percebemos as assimetrias. Se visitarmos a província da Zambézia visualizaremos as grandes assimetrias do país. Depois há o fenómeno da corrupção que deve ser combatido, pois é inimigo do desenvolvimento e há ainda as raízes da intolerância política que devem terminar para que se construa definitivamente o futuro.

Mas se me perguntar se há aspectos positivos, aspectos muito positivos, claro que há. Há mais moçambicanos formados, há mais universidades, há mais empreendedores, há mais criadores, há mais jornais e revistas em vários formatos, há mais rádios, há mais empresários moçambicanos.

Moçambique é um país abençoado no que aos recursos naturais diz respeito. Contudo, continua na lista dos países mais pobres do mundo. O que falta para o país trilhar o caminho do desenvolvimento na base dos recursos?

– Falta que se cumpram os compromissos com o povo. Os dirigentes políticos devem ser mais servidores do país e menos patrões e proprietários do país. O dono da República de Moçambique é o povo moçambicano. O país é de todos os moçambicanos, independentemente da sua cor partidária, etnia, religião, género ou daquilo a que convencionamos chamar “raça”. Portanto, os recursos são do povo moçambicano e a exploração desses recursos deve reflectir-se na melhoria substancial da vida de todos os moçambicanos de Norte a Sul.

O combate sem tréguas à corrupção deve estar nos estatutos, programas e agenda de qualquer partido político ou dirigente do país. Por outro lado, a intolerância política, hoje, mais do que nunca, não faz sentido nenhum. A não ser para aqueles que possuem telhados de vidro.

No dia 09 de Outubro os moçambicanos serão chamados às urnas para escolher o próximo Presidente da República. Olhando para o actual cenário, qual deve ser a aposta do novo Chefe de Estado nos próximos anos?

– Seja quem for, o novo Chefe de Estado deve apostar, em primeiro lugar, totalmente na reconciliação de todos os moçambicanos, promovendo o respeito pela diversidade. A paz não tem preço. Já morreram demasiados moçambicanos pelo país, já se assassinou demasiado moçambicano por razões políticas, já morreram demasiados quadros valiosos do país devido à intolerância. A história e a verdade dizem-nos isso: Nunca existirá o pensamento único num povo e num país.

A aposta no combate contra a corrupção é um dever mais do que urgente dos dirigentes políticos. O investimento nacional em água potável para todos os moçambicanos nos bairros suburbanos e nas zonas rurais é mais do que uma obrigação. E uma aposta clara na educação, investindo mais nas actuais universidades públicas moçambicanas e na reabilitação de todas as escolas degradadas e na continuação e reforço da construção de novas escolas no interior e zonas rurais do país. Mais promoção de investimentos nacionais e estrangeiros para o emprego dos moçambicanos. Investimentos mais significativos deveriam ser feitos na saúde para que os moçambicanos não tenham de sair do país para se tratarem. E para finalizar, a construção de novas estradas e a reabilitação de todas as vias que ligam o país de norte a sul devem ser uma prioridade.

“Nem todos os que publicam livros são escritores no sentido literal”

Delmar Maia, em que estágio se encontra o Círculo dos Escritores Moçambicanos na Diáspora?

O Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora(CEMD) encontra-se muito bem, pois continua com as suas iniciativas culturais anualmente, intensificou as parcerias com várias instituições moçambicanas (AEMO, Alcance Editores, Conselho Autárquico de Quelimane (CAQ), AEZA –Associação dos Escritores da Zambézia, Clube de Leitura de Quelimane (CLQ), Embaixada de Moçambique em Portugal e internacionais (Perú, Brasil, Portugal, Espanha, Bélgica, Croácia, Eslovénia, Lituânia, República Dominicana, Cuba, Malawi, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, entre outros). Isto apesar da tentativa encomendada frustrada e parola da sua destruição por parte de um suposto poeta e escritor guineense septuagenário infiltrado e que até a minha família atacou.

Um cara sem vergonha que acabou publicamente expulso e banido pela nossa associação e que foi incentivado por moçambicanos sem visão de futuro a destruir o nosso projecto que representa valores de liberdade criativa e de pensamento. Sem dúvida uma encomenda “política” parola executada por um maldoso infeliz.

Em comparação com a Associação dos Escritores de Moçambique, a CEMD tem poucos escritores filiados. O que pode estar por detrás deste fenómeno?

– Não é o CEMD que tem poucos filiados. Filiados temos muitos. Nós vivemos na diáspora. Não há muitos escritores moçambicanos propriamente em Portugal. Esses são poucos, muitos deles já morreram por doença e por velhice. Por isso, esta associação se abriu ao mundo. Tem moçambicanos a residirem em vários lugares do mundo, Brasil, EUA, Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Argélia, Timor-Leste, Angola e abrimos a filiados estrangeiros que amam a literatura, que pagam quotas e participam nos nossos eventos e publicações. Não se esqueçam que a imigração moçambicana tem sido feita historicamente para outros países africanos vizinhos de Moçambique, como África do Sul, Zimbabwe, Zâmbia, eSwatini, Malawi. Mas também é bom não esquecer as conturbadas saídas de moçambicanos para os EUA, Portugal, Itália, Brasil, Austrália e até África do Sul nos quentes anos da revolução em Moçambique sem outra alternativa.

Só mais recentemente começou um novo movimento migratório de moçambicanos para Portugal. A diáspora representa e abarca todos eles. Por outro lado, nós temos muitos filiados e alguns membros honorários em território moçambicano, para além de embaixadores nos diversos países do mundo.

Quais são as iniciativas que a Associação dos Escritores Moçambicanos na Diáspora tem levado a cabo para incentivar a filiação de mais escritores?

– As nossas iniciativas não pretendem nem têm como objectivo atrair mais filiados. Temos o nosso plano de trabalho, a nossa agenda cultural, o nosso Regulamento Interno e os nossos estatutos pelos quais nos regemos.

Temos o Encontro Anual de Escritores Moçambicanos na Diáspora (EAEMD), que se realiza desde 2008, em que galardoamos escritores, poetas, artistas plásticos, cineastas, académicos e políticos moçambicanos que se destacam em Moçambique e fora do território moçambicano e a parceria com a Organização Mundial de Poetas Mulheres na República Dominicana, que promove, com a nossa coordenação em Lisboa, o Festival Internacional de Arte y Poesia Grito de Mujer, onde galardoamos escritoras, artistas plásticas, artesãs, educadoras, activistas, entre outras. Muitos galardoados são moçambicanos e outros estrangeiros. Não fazemos distinção da sua cor partidária nem religião. Depois, temos outros eventos como parceiros, nomeadamente os do MIL – Movimento Internacional Lusófono, o Instituto Cervantes de Espanha, Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia em Portugal.

Finalmente somos parceiros de várias instituições em vários festivais de literatura ou de âmbito mais alargado.

Em Moçambique, o número de escritores cresce exponencialmente ano após ano. Qual a análise que faz da literatura moçambicana no presente?

É preciso termos cuidado em analisar este fenómeno. Vamos reflectir. Nem todos os que publicam livros são escritores no sentido literal. Publicaram algum livro em algum momento das suas vidas. Muitos deles pagaram para publicar. Mas isso não faz deles propriamente escritores. Quem os lê? Quem os comercializa? Quem faz a distribuição dos livros? Quem os promove dentro e fora de Moçambique? Têm consistência como escritores? Continuaram, continuam e continuarão a escrever após a publicação do primeiro livro? As suas obras vendem? São estudadas? Referenciadas? Qual o seu nicho de mercado? Por onde circulam esses livros? Mas é claro que é um fenómeno positivo, pois em Moçambique não havia tanta gente a escrever livros.

Há aqueles que já alcançaram reconhecimento internacional, entre eles Paulina Chiziane, Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Khosa, Luís Patraquim, Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha (infelizmente já falecido), Eduardo White. Por outro lado, há uma geração de ouro da literatura moçambicana que ainda merece mais atenção internacional. Autores como Carlos Paradona Rufino Roque, Juvenal Bucuane, Armando Artur, Marcelo Panguana, Luís Cezerilo, Adelino Timóteo, Sangura Okapi, Jorge de Oliveira, Filimone Meigos, Guita JR, Hélder Muteia, Nélson Saúte, Lília Momplé, Jorge Viegas, Sónia Sultuane, entre outros que merecem ver os seus livros circularem pelo mundo e serem traduzidos.

E não nos devemos esquecer daqueles que já partiram e não estão entre nós, que deixaram obra de qualidade inquestionável, que também merecem ser mais conhecidos, entre eles Heliodoro Baptista, Rui Nogar, Ascêncio de Freitas, Virgílio de Lemos, Jorge Rebelo, Rui Knopfli, Gulamo Khan, Bahassan Adamodjy, Albino Magaia, Calane da Silva, Reinaldo Ferreira, Noémia de Sousa, Orlando Mendes, Fernando Couto, Rui de Noronha, Alberto de Lacerda, Marcelino dos Santos, João Pedro Grabato Dias, Sebastião Alba, Leite de Vasconcelos, Carlos Cardoso, Mutimati Barnabé João, entre outros. São escritores no verdadeiro sentido da palavra e nada os poderá impedir de prosseguir, crescer e evoluir para outros patamares. São escritores globais consistentes.

Há ainda, sem dúvidas, a nova geração como o Lino Mukurruza, Álvaro Taruma, Japone Arijuane, Pedro Pereira Lopes, Eduardo Quive, Nélson Lineu, Amosse Mucavele, Sérgio Raimundo, Lucílio Manjate, Amélia Matavele, Heliodoro Baptista JR, Ernesto Moamba, Dany Wambire que têm um futuro promissor inquestionável.

Não posso esquecer que em Quelimane e nas diversas cidades do país também há escritores e jovens escritores a revelarem-se. A circulação do livro é fundamental quer internamente quer no exterior do país. Que haja uma aposta clara nesse campo.

“Não ‘matem’ os escritores, não há exclusividade na literatura”

Será que a quantidade de escritores que o país tem actualmente é proporcional a qualidade que sempre caracterizou a literatura moçambicana?

O país é grande o suficiente para albergar grandes quantidades de escritores. Só o tempo fará a filtragem daquilo que tem qualidade ou não tem. Não “matem” os escritores que moram nestes “jovens escritores”, alguns deles já veteranos que escreviam para as gavetas. Deixem-nos crescer. Deixem-nos revelar-se. Ainda bem que há mais gente a escrever. Nem todos serão escritores, nem todos continuarão a publicar sempre. Deixem-nos concretizar objectivos e seremos felizes. Não há exclusividade na literatura, seja em Moçambique seja em qualquer parte do mundo. A democratização/massificação da edição está a suceder em todo o globo terrestre e a filtragem será natural. O tempo é dono dessa filtragem e não um conselho de censura “divino” composto por predestinados. Há quem exija uma crítica literária. Muito bem.

Pergunto: é com que objectivo? Matarem os “jovens escritores”? Os escritores emergentes? Matarem a concorrência? A literatura é uma corrida de cavalos? É um grupo de “iluminados” moçambicanos que irá construir esse empreendimento? A colher alguns e excluir e “matar” outros acabados de nascer? A crítica só faz sentido se for honesta e construtiva. Se for altruísta. Mas antes, preocupemo-nos com os leitores. Que se aumente o número de leitores. Como dizia um intelectual amigo, mais vale ter leitores de banda desenhada do que leitor nenhum.

Qual é o apelo que deixa para a nova fornalha dos escritores em Moçambique?

Que continuem a ser leitores inveterados e em paralelo continuem a escrever se for esse o impulso interior que sentem, mas sem pressa de publicar. Que aproveitem todas as oportunidades para publicarem sem a forçarem. Tudo tem o seu tempo. Escritor uma vez, escritor sempre. Nunca desistam.

Alguns escritores aproveitam as suas obras para criticar o modelo de governação no país e, por via disso, são alvo de ameaças. Qual é o seu parecer em relação a esta situação?

Eu entendo que o escritor é e deve ser sempre livre. Qualquer forma de censura só o atiça mais. É opção de cada autor definir o que pretende alcançar com a sua obra. Os processos criativos nunca serão controláveis, a não ser por auto-censura do próprio autor. Entre a realidade e a ficção há uma realidade muito ténue. Devíamos ter aprendido com a história. Lembram-se da PIDE nas ex-colónias e em Portugal? O que ganhou com a censura, as perseguições, as prisões, os assassinatos e ameaças que praticou? E da STASI na antiga RDA? O que ganhou com a censura, as prisões, os assassinatos e as perseguições? Como terminou a RDA? Como acabaram os regimes romeno e polaco? Valeu a pena para eles? As obras de muitos autores assassinados, perseguidos, censurados e ameaçados ficaram imortalizadas e os regimes sucumbiram.

A liberdade criativa é imperativa. E muito mais ainda num estado de direito democrático em termos constitucionais. Serei sempre solidário com os criadores e artistas. A arte precisa de liberdade. Ela própria respira e transpira liberdade.

Viver da literatura? “Diria que é possível, mas difícil e muito complexo”

A cultura e o activismo andam de mãos dadas. Como é que o CEMD, através das suas actividades, desperta os moçambicanos que sonham em trabalhar no estrangeiro sobre as falsas promessas de emprego na diáspora?

Esta área é muito complexa. A nossa associação é de âmbito cultural, mas ainda assim estamos atentos ao fenómeno, pois há muitas fraudes nestes processos. Há gente desonesta que cobra quantias aos interessados e uma vez chegados à Europa são abandonados à sua sorte. Muitas vezes, quando há empregos, são os mais mal pagos e sem garantias de alojamento completo. Há jovens que vivem amontoados em quartos minúsculos sem o mínimo de condições, enfim.

Temos participado em conferências, Congressos, Palestras e Simpósios sobre a imigração, em que alertamos para este tipo de situações. Mas há também outras associações da sociedade civil na diáspora, como a Casa de Moçambique, Centro Cultural Luso-Moçambicano (CCLM) e Solidariedade Imigrante, com quem temos parcerias que alertam para este fenómeno e actuam no terreno.

Aliás a Associação Solidariedade Imigrante (SOLIM) tem promovido o Festival Imigrarte que promove a arte dos imigrantes em Portugal e sempre participamos como parceiro representante dos moçambicanos.

Algumas editoras não têm sido honestas com os escritores na edição e na venda das obras. Como é que a CEMD tem advogado junto das editoras para defender os direitos dos autores?

– Pouco podemos fazer como associação de escritores. Os processos criativos são individuais, as opções editoriais também. Há muitas editoras, há muitas gráficas. Apenas podemos aconselhar, chamar atenção. Exige-se que haja maior fiscalização/ monitorização das autoridades fiscais junto das editoras dentro e fora de Moçambique para que os autores não saiam prejudicados no processo de edição e venda e no respeito recíproco escrupuloso dos contratos que as editoras assinam com os autores.

O próprio CEMD tem editado, mas somos uma associação sem fins lucrativos que se autofinancia com as quotas e vendas de livros que publica, que depois financiam outras publicações e eventos. De outra forma seria complicado sobreviver como associação. Mas há um trabalho sério de promoção do autor e da obra. O que nem sempre acontece com algumas editoras profissionais que muitas vezes só olham para os seus lucros. E em que ninguém presta contas a ninguém.

Quais são os grandes desafios que a CEMD enfrenta no presente?

Temos procurado fortalecer a nossa autonomia financeira para ganharmos sustentabilidade. Por outro lado, procuramos e defenderemos sempre a sua característica apartidária, independentemente de haver muita diversidade entre os seus filiados. É nosso compromisso desde a sua fundação em 2008 e sua formalização em 2010.

É possível viver exclusivamente da literatura em Moçambique e na diáspora?

Diria que é possível, mas difícil e muito complexo. Que não é estável nem sustentável, sobretudo na CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Por isso é que o escritor moçambicano tem que ser um escritor global e não apenas moçambicano. As próprias editoras, quer moçambicanas, quer estrangeiras, apenas se concentram nos seus próprios lucros e esquecem o autor. Muitas vezes os autores se contentam só em publicar. Muitos escritores têm uma profissão que exercem e que os sustenta. É provável que no futuro isso seja possível, mas neste momento e num futuro próximo isso não será exequível.

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