Idosos expõem-se ao risco para ter o pão na mesa

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  • O drama dos guardas noturnos na Cidade de Maputo

À noite, enquanto muitos dormem, há idosos que lutam silenciosamente para sobreviver num país que, na prática, não oferece amparo. Falhas na protecção social básica a pessoas necessitadas empurra, diariamente, centenas de idosos, que deveriam desfrutar da tranquilidade da aposentadoria às ruas para enfrentar jornadas extenuantes, trabalhando como guardas noturnos em condições perigosas e sem condições mínimas. Abandonados pelo sistema previdenciário e, em muitos casos, pelas próprias famílias, esses homens carregam o peso de uma vida marcada pela luta diária. Suas histórias revelam o drama de quem, após décadas de trabalho, encontra no frio da noite o sustento.

Luisa Muhambe

De acordo com o último Censo Geral da População e Habitação, realizado em 2017, os idosos (pessoas com 60 anos ou mais) representam cerca de 6,1% da população de Moçambique, somando aproximadamente 1,7 milhões de pessoas. No entanto, apenas cerca de 14% desses idosos têm acesso a uma aposentadoria através do Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), deixando muitos sem opção além de continuar trabalhando para sobreviver, num país em que o sistema de protecção social paga um subsídio social básico que sequer é suficiente para uma semana.

A nova Lei do Trabalho de Moçambique, revista em 2020, visa proteger trabalhadores de todas as idades, estabelecendo direitos como segurança no local de trabalho e condições mínimas de saúde. Contudo, a legislação não oferece uma protecção específica para os idosos que ainda precisam trabalhar e nem define claramente limites de idade ou medidas específicas para trabalhadores idosos em profissões de risco.

Daniel José, de 59 anos de idade, trabalha como guarda noturno há 12 anos. Vive com sua esposa e dois netos, filhos de seu primogênito, que faleceu há alguns anos. Sem treinamento ou equipamento de defesa, Daniel Cossa admite que o trabalho é arriscado, mas sem escolha continua trabalhando para colocar o pão na mesa.

“Nunca vivi uma experiência violenta, mas sei que se houver um assalto, não tenho como me defender porque não tenho nenhuma arma. O que me faz continuar é a necessidade de sustentar minha família, porque não tenho apoio de mais ninguém. Rezo dia e noite para que não seja atacado por bandidos. Gostaria de ficar em casa, mas não posso porque a minha família não terá o que comer”, relatou Cossa, ajeitando o seu agasalho, no princípio de mais uma noite fria na cidade de Maputo que iria ser passada ao relento.

“Não temos condições para retaliar um possível ataque dos criminosos”

Martins Macaringue também vive o mesmo drama. Ex-pescador e viúvo, o idoso de 62 anos trabalha como guarda noturno há 15 anos. Em conversa com o Evidências, reconhece que abraçou uma profissão perigosa para ter o pão na mesa.

“A minha vida toda fui pescador, era só o que eu sabia fazer, esse trabalho de guarda foi a única coisa que consegui quando decidi deixar de ser pescador, não podia escolher muito. Infelizmente, a vida não é fácil, daí que tenho que me expor ao perigo. Tenho filhos, mas o que me dão no final não paga todas as contas. Não temos condições para retaliar um possível ataque dos criminosos, mas continuamos nesta profissão”, declarou.

Rafael Ussemende, de 68 anos, trabalha como guarda noturno há 28 anos. Hoje cuida da segurança de uma loja de bebidas. Sem receber ajuda de seus dois filhos, Ussemende sustenta a esposa com o que ganha das suas noites de sacrifício e admite que o trabalho se tornou extremamente difícil com o passar dos anos.

“Para um homem da minha idade, esse trabalho já não é o mais adequado. Estou quase nos 70 anos, e trabalhar à noite é complicado. Quando chega o frio, ficamos aqui fora até amanhecer, sem nenhum lugar para nos abrigar. Se você adoece, fica em casa e não recebe nada”, explica Rafael, expondo o outro problema de contratos precários.

Para ele, a falta de suporte familiar e a ausência de uma aposentadoria justa fazem com que continue trabalhando, mesmo cansado e adoecido. “O que me faz continuar é que ninguém se importa”, diz ele, exausto.

Trabalhadores mais velhos enfrentam desafios estruturais em Moçambique

Os três trabalhadores enfrentam uma dura realidade: trabalham sem o devido treinamento e sem nenhum instrumento para se proteger em casos de assaltos e, para além disso, não recebem nenhum tipo de assistência em caso de doença.

Edy Ecariano, director executivo da ONG Amigos da Terceira Idade (OKUBARELA), que actua na defesa dos direitos dos idosos em Moçambique, afirma que os trabalhadores mais velhos enfrentam desafios estruturais no país.

“Existe um preconceito forte de que os trabalhadores mais velhos são menos produtivos e resistentes a mudanças, o que leva à discriminação no trabalho. Muitos idosos acabam aceitando qualquer emprego, mesmo que seja perigoso, pela falta de uma aposentadoria adequada”, destaca Ecariano, para depois criticar o facto de muitos idosos trabalharem sem protecção ou treinamento adequado.

“A nova Lei do Trabalho estabelece que os empregadores devem garantir a segurança e o bem-estar dos trabalhadores, mas, na prática, não há fiscalização suficiente para proteger os idosos”, disse ele.

O director executivo da ONG Amigos da Terceira Idade aponta, por outro lado, que a maioria das empresas e empregadores não oferecem condições de trabalho seguras para os idosos e que muitos deles recebem salários muito abaixo do que seria justo.

“O governo tem feito o básico para proteger os idosos, mas precisamos de uma fiscalização mais forte e de políticas públicas voltadas para a saúde e a segurança dos idosos no ambiente de trabalho”, enfatiza.

Advogada defende criação de políticas de assistência social para idosos

Eunice Machuca, advogada que lida com direitos trabalhistas, reforça a gravidade da situação enfrentada pelos trabalhadores idosos em Moçambique, principalmente em profissões de risco.

“A legislação moçambicana precisa ser mais clara e específica em relação à protecção dos trabalhadores idosos. O facto de muitos continuarem a trabalhar em empregos perigosos, como o de guarda noturno, sem treinamento ou equipamento de protecção, é uma clara violação dos direitos humanos e trabalhistas”, defendeu, ressaltando a falta de uma rede de apoio social adequada.

“O sistema previdenciário em Moçambique é falho e excludente, o que obriga muitos idosos a continuarem a trabalhar em condições precárias. A ausência de fiscalização eficaz por parte das autoridades também agrava esse cenário, uma vez que os empregadores não são pressionados a cumprir as obrigações legais”, sublinha.

No entender de Eunice Machuca, uma reforma mais abrangente e efetiva é necessária, através do reforço de políticas públicas que contemplem tanto a fiscalização quanto a criação de programas de assistência social e saúde específicos para a população idosa.

“Além disso, é imprescindível a criação de incentivos para que empregadores ofereçam melhores condições de trabalho a esses profissionais”, sustenta.

Programa de Subsídio Social Básico em colapso

A realidade enfrentada por guardas noturnos como Daniel, Rafael e Martins é apenas um retrato da vulnerabilidade de muitos idosos trabalhadores em Moçambique, num contexto em que o Governo se mostra incapaz de garantir uma proteção social básica eficaz aos grupos mais vulneráveis.

Apesar de a nova Lei do Trabalho oferecer algumas garantias mínimas, a falta de fiscalização e a informalidade do mercado de trabalho continuam expondo os mais velhos a jornadas exaustivas e perigosas. A ausência de uma aposentadoria digna e o abandono familiar tornam esses trabalhadores invisíveis, forçando-os a lutar diariamente pela sobrevivência.

A Estratégia Nacional de Desenvolvimento 2025-2044, um documento tornado público, recentemente, pelo Conselho de Ministros, revelou que o exército de pobres aumentou exponencialmente nos dois ciclos de governação de Filipe Nyusi.

O grosso das famílias que vive abaixo da linha de pobreza depende sobremaneira do Programa de Subsídio Social Básico (PSSB), que, essencialmente, visa aumentar a capacidade de consumo das pessoas em situação de pobreza e de vulnerabilidade através de transferências monetárias regulares e incondicionais com mais enfoque para a nutrição infantil e assistência aos idosos. No entanto, há 18 meses que o Instituto Nacional de Acção Social, segundo a sua directora-geral, não consegue canalizar os referidos valores, o que de certa forma sufoca os agregados familiares que dependiam destes subsídios para, no mínimo, ter uma refeição por dia.

Para o Governo, o Programa Subsídio Social Básico é um instrumento fundamental para a redução da pobreza e desigualdade no país, tendo como alvos pessoas idosas, pessoas com doença crônica ou degenerativa, crianças entre os 0 aos dois anos de idade em situação de desnutrição e famílias chefiadas por crianças ou com crianças órfãs e vulneráveis, que combine com os demais critérios estabelecidos.

Na medida em que o número de famílias que vivem abaixo da pobreza aumenta exponencialmente, tal como revelou a Estratégia Nacional de Desenvolvimento 2025-2044, aprovada, recentemente, pelo Conselho de Ministros, o INAS não consegue alocar o Subsídio Social Básico aos seus beneficiários.

A título de exemplo, em Dezembro de 2023, aquela instituição conseguiu pagar apenas 302,897 dos 639,636 beneficiários existentes no PSSB e este ano tem conseguido beneficiar do mesmo. Esta situação inquieta sobremaneira as famílias carenciadas.

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