- Entre a dor e orgulho de ter um filho que morreu pela pátria
- Há pais que, apesar de terem sido comunicados da morte, ainda mantêm esperança
- Passam meses ou anos e nunca receberam o corpo, por isso a mente ainda não aceitou
- Há famílias que só ficaram a saber da perda meses depois, por terceiros ou no Facebook
O Ministério da Defesa Nacional (MDN) ainda não tornou público o número dos elementos das Forças de Defesa e Segurança (FDS) que tombaram em combate na província de Cabo Delgado, desde 2017. No entanto, ao longo destes anos, têm sido frequentes os relatos de baixas e, de quando em vez, pelas redes sociais, os números ganham nomes e rostos quando amigos e familiares prestam suas merecidas homenagens. Porém, nem todos os heróis que tombaram em combate tiveram um enterro digno, uma vez que seus restos mortais nunca foram entregues às famílias, supondo-se que tenham sido enterrados em valas comuns ou em condições deploráveis nas matas de Cabo Delgado. Na semana que se comemora o dia das Forças Armadas da Defesa de Moçambique (FADM), em homenagem aos filhos mais sacrificados da pátria, o Evidências traz o drama das famílias que não tiveram oportunidade de dar um descanso condigno aos seus ente queridos que não escaparam da brutalidade dos terroristas enquanto lutavam pela pátria. Se por um lado, os pais estão orgulhosos pelo facto dos filhos terem perdido a vida lutando pela libertação de Cabo Delgado, por outro estão entre a angústia e a esperança, uma vez que, apesar de terem sido notificados sobre a morte dos seus filhos, em algum momento têm a sensação de que a notícia que receberam não corresponde à verdade e que um dia verão os filhos entrarem pela porta reluzentes, pois ainda não receberam os restos mortais dos perecidos. Sem informação oficial da parte do Ministério da Defesa, que se remete ao silêncio, em total desrespeito, muitas famílias acabam sendo informadas da morte dos seus ente queridos através das redes sociais ou por via de colegas e amigos, meses depois do ocorrido.
Duarte Sitoe
Quando partem para o Teatro Operacional Norte, os membros das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) têm como principal objectivo cumprir com o dever patriótico de defender a pátria e a integridade territorial. No entanto, nessa missão sinuosa, nem todos têm a sorte de voltar com vida, uma vez que alguns tombam em combate.
Oficialmente, o Ministério da Defesa Nacional ainda não tornou público o número de baixas nacionais no Teatro Operacional Norte e, sobretudo, no contexto da luta contra o terrorismo e extremismo violento.
No entanto, de acordo com a ACLED, o número de soldados moçambicanos que tombaram em combate supera a fasquia dos dois mil, desde o arranque da guerra na província de Cabo Delgado.
Todavia, deste número, nem todas as famílias dos jovens corajosos que não escaparam da brutalidade do inimigo tiveram a chance de receber os seus corpos para poderem lhes garantir um último adeus condigno.
Casos há, segundo apurou o Evidências, de soldados cujos corpos foram sepultados em valas comuns nas matas, devido ao estado de decomposição dos corpos, nos casos em que são forçados a recuar deixando os seus companheiros de trincheira tombados.
Mas também há casos que devido à brutalidade dos insurgentes os corpos ficam praticamente irreconhecíveis e ou acabam sendo perdidos nas matas, acabando por serem velados por nativos.
“A dor de não poder enterrar um filho é maior em relação à perda do mesmo”
Sérgio Macamo lutou na guerra dos 16 anos ao lado das forças governamentais como miliciano e, por isso, não se opôs quando um dos filhos decidiu seguir os seus passos. Hoje está dividido entre o orgulho e a melancolia, pelo facto de o filho ter perecido defendendo a pátria.
“Não existe pior dor para um pai que enterrar um filho. Acredito que a dor de não enterrar um filho é maior em relação à perda do mesmo. Conheço os contornos da vida militar e quando meu filho decidiu ir à tropa não tinha guerra, por isso não mostrei oposição. Infelizmente, em 2017 tivemos a situação da guerra em Cabo Delgado e ele foi destacado para estar na linha da frente. Foi cumprir duas missões e regressou, porém na terceira foi de vez, uma vez que morreu numa emboscada do inimigo”, contou Sérgio Macamo, para depois referir que o que mais o entristece é não ter rendido a última homenagem ao seu saudoso filho.
Mais do que a dor da perda do seu filho nas matas de Cabo Delgado, Macamo lamenta o facto de não ter sido formalmente informado da morte do seu filho pelo Ministério da Defesa, tendo ficado a saber do sucedido três meses depois, por via dos seus colegas de trincheira.
“Recebemos a notícia do desaparecimento físico do meu filho volvidos três meses depois do ataque. Um amigo que sobreviveu ligou para dar a notícia. Confirmada a notícia, iniciamos os trâmites para trazer o corpo, mas não foi possível. A informação que tivemos é de que depois de morto foi esquartejado pelos terroristas. Aquilo foi um duro golpe para mim e para a família porque queríamos dar pelo menos um enterro condigno ao nosso herói e de todos moçambicanos. Tentamos superar a perda, porém é difícil esquecer que fomos impossibilitados de enterrar o nosso ente querido. Estou orgulhoso do meu filho, onde quer que esteja, ele lutou por Cabo Delgado e por Moçambique”, disse Macamo.
Quando a mente nega aceitar a realidade enquanto não ver o corpo
Margarida Cumbe não é a mesma desde que o único filho tombou em combate na província de Cabo Delgado. À semelhança de Sérgio Macamo, Margarida vive angustiada porque não recebeu os restos mortais do filho.
Em conversa com o Evidências, Margarida Cumbe referiu que em algum momento pensa que o filho não morreu e que um dia vai aparecer para dissipar todas as dúvidas. Sem informação oficial por parte do Ministério da Defesa, Margarida recebeu a triste notícia através das redes sociais.
“Ninguém acredita que o familiar morreu sem antes ver o corpo. O meu único filho decidiu que queria ser militar e, mesmo eu estando contra, foi à tropa. Entrou em 2016 e em 2020 foi enviado para Cabo Delgado, e de lá nunca mais voltou. Soube através das redes sociais que ele foi abatido pelos terroristas. Fiquei sem chão e acreditava que se tratava de uma mentira, mas os amigos confirmaram a notícia que nunca queria ouvir. Esperava que o Governo me trouxesse o corpo dele para o enterro, mas, debalde, tal nunca veio a acontecer, por isso, em algum momento acredito que o meu filho ainda está vivo”, declarou Margarida, visivelmente emocionada.
Volvidos quatro anos desde que recebeu a notícia da morte do filho, Margarida Cumbe mostrou-se orgulhosa pelo caminho trilhado pelo mesmo, mas teceu críticas ao Governo, em particular o Ministério da Defesa Nacional, por não respeitar os direitos das famílias.
“O nosso Governo não respeita o sofrimento das famílias. Se respeitasse faria de tudo para trazer os restos mortais dos militares que morreram na província de Cabo Delgado. Infelizmente, o meu filho partiu lutando pela pátria, mesmo com a dor no pleito estou orgulhosa pelo caminho que trilhou”, declarou.
Uma outra família, que preferiu falar na condição de anonimato, relata que só recebeu a confirmação da morte de sua ente querida em meados de 2019, depois de uma comunicação feita por um dos amigos de trincheira da finada.
Mesmo inconformados, iniciaram diligências junto do Ministério da Defesa, onde obtiveram apenas a confirmação da perda, mas nunca o corpo. Depois de dias entrincheirados no Estado Maior General e no seu quartel de origem, foram informados que não havia condições de terem o corpo e que estavam em curso diligências para se identificar a ela.
No entanto, de amigos que ainda se encontravam no teatro operacional, a família viria a receber o maior golpe, ao serem informados que, afinal, os corpos de todos militares perecidos naquele ataque haviam sido abandonados no local, e no regresso tomou-se a decisão de se sepultar em vala comum no meio da mata, devido ao seu elevado estado de decomposição.
“Famílias que perderam filhos em Cabo Delgado necessitam de acompanhamento psicológico”
Ao contrário de Margarida Cumbe e Sérgio Macamo, Francisco Alfredo rendeu a última homenagem ao filho. Não supera a dor, mas considera que ter podido sepultar o filho minimizou a sua perda. Três anos se passaram desde o perecimento do filho e referiu que sempre que se assina o 25 de Setembro, Dia das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, lembra do filho com nostalgia.
“O meu filho já era boina vermelha. Infelizmente, tombou em combate. Foi muito difícil trazer o corpo de Cabo Delgado para Maputo, mas conseguimos e pudemos nos despedir dele. Quando falo do dia 25 de Junho fico emocionado porque meu filho dizia que o corpo já não lhe pertencia e que não tinha medo de morrer. Ele sabia que um dia iria morrer, seja na guerra ou por uma coisa normal, por isso estou triste pela sua partida e, ao mesmo tempo, orgulhoso, visto que ele tombou defendido a nação”, sublinha.
Quem defende que as famílias que perderam os seus ente queridos na província de Cabo Delgado precisam de um acompanhamento psicológico é a psicóloga Raquel Neves, que falou, igualmente, da importância das famílias renderem homenagem aos falecidos.
“Em África, o morto tem o mesmo valor que os vivos. As famílias querem enterrar os seus ente queridos com vista a visitar as campas com frequência. Os pais que viram seus filhos morrerem em combate em Cabo Delgado têm algum trauma, uma vez que não tiveram oportunidades de lhes render o último adeus. Estas famílias, sobretudo os pais, necessitam de um acompanhamento porque são passíveis de desenvolver traumas. A morte sempre deixa sequelas em qualquer ser humano, pior quando se trata de um cenário em que não se realizou o enterro”, declarou a psicóloga.
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