Sobre os presentes da Governadora de Gaza: um teatro de reverência financiado com meios públicos

EDITORIAL
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Não é preciso quebrar a lei para trair o espírito público. A má administração, muitas vezes, veste-se com o manto da legalidade e, ainda assim, tropeça na ética. O episódio das ofertas da Governadora de Gaza ao Presidente da República é sintomático: um gesto que, embora defendido com veemência pelo Governo como legal, levanta sérias questões sobre o bom senso, o uso dos recursos públicos e os limites do poder.

Numa cerimónia envolta em cordialidade e símbolos tradicionais, a governadora ofereceu ao Chefe de Estado arroz, castanha, cabritos, gado, peixe, laranjas e muito mais. Foram 20 cabeças de gado, e não foi por acaso. Era uma encenação do poder que presenteia o poder, um teatro de reverência financiado com meios públicos. E não, o problema aqui não é jurídico, é ético.

Em nome da cultura e da hospitalidade, tenta-se justificar o que, no fundo, é um desvio de prioridades. O porta-voz do Governo, Inocêncio Impissa, apressou-se a invocar a Lei de Probidade Pública, garantindo que não há violação, porque não se tratava de uma tentativa de suborno ou de busca de favor. Mas será que a ética pública só se resume a um contrato de troca explícita?

Governar é, acima de tudo, servir. Quando representantes do povo usam recursos do Estado para oferecer presentes a superiores hierárquicos, mesmo com a promessa de redistribuição, acenam para uma cultura de bajulação institucionalizada. Um Presidente da República em missão de trabalho não deve ser tratado como um visitante estrangeiro a ser homenageado com presentes exuberantes. Ele está a exercer a sua função, não há necessidade de receber favores.

A naturalização desses gestos cria um ambiente onde a hierarquia se sobrepõe à equidade, onde a política se faz de rituais de obediência e não de prestação de contas. Cada quilo de arroz oferecido é um quilo a menos numa escola ou num centro de saúde local. Cada cabeça de gado, um símbolo de uma governação que ainda não aprendeu a distinguir o público do pessoal.

A ética na administração pública não começa onde a lei termina. Ela começa no discernimento sobre o uso responsável dos bens públicos, na recusa em perpetuar práticas que reforçam o culto da personalidade e enfraquecem a cidadania. O gesto da Governadora pode não ser crime, mas não é exemplo.

Se queremos um país onde a política sirva à justiça e não à cerimónia, é preciso reaprender a separar o dever do espectáculo. Afinal, nem tudo o que reluz é ouro, às vezes, são apenas laranjas.

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