Estado em colapso silencioso e grupos de interesse em guerra surda

DESTAQUE POLÍTICA
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  • Atrasos salariais, TSU e boladas de tractores são heranças difíceis para o Governo
  • Falta de dinheiro compromete actividades de órgãos do Estado como AR
  • Trabalho da terceira comissão que estava previsto semana passada adiado sem data

Embora não o reconheça publicamente, a Administração Pública enfrenta uma crise salarial que se agrava e ganha contornos crónicos. Num ano financeiramente atípico, marcado pela morosidade previsível na aprovação do Orçamento do Estado, várias actividades dos órgãos governamentais foram adiadas. Mesmo após a aprovação, o Orçamento não pôde ser executado na sua plenitude, comprometendo a autonomia dos pagamentos e, em cadeia, a qualidade dos serviços públicos que dependem de um Sector Privado que se queixa de dívida. À crise estrutural soma-se a insatisfação crescente dos Funcionários e Agentes do Estado, habituados a receber os salários antes do dia 25 e que agora enfrentam atrasos até ao dia 07 ou até 10 do mês seguinte. A Tabela Salarial Única (TSU), um dos marcos mais controversos do consulado anterior, tem sido apontada como o principal entrave. No entanto, outras leituras descrevem o cenário como resultado de uma intersecção perigosa entre o colapso financeiro do Estado, a manipulação política das dificuldades internas e a teia de interesses herdada da era Filipe Nyusi. Neste contexto, o Presidente da República, Daniel Chapo, governa num autêntico campo minado, onde cada atraso salarial, corte de subsídio ou medida improvisada carrega um cálculo político e económico, frequentemente à custa de empresas escolhidas a dedo para amortecer os impactos da crise.

Evidências

Em Julho, diversas unidades da PRM, SERNIC, FADM e outros órgãos da Função Pública não receberam os seus salários a tempo. Os subsídios outrora assegurados foram sacrificados pela  tristemente célebre Tabela Salarial Única (TSU), sem aviso prévio. O sentimento generalizado entre oficiais e agentes é de frustração, abandono e humilhação.

“Estamos a trabalhar sem motivação. As nossas famílias estão a sofrer. E há quem se aproveite deste cenário para semear a instabilidade”, revela um oficial da PRM, sob anonimato.

Nos quartéis e esquadras, os murmúrios de insubordinação e boicote passivo aumentam. Num contexto de aumento de instabilidade em Cabo Delgado, um retrato que sustenta a percepção de que se está diante de um descontentamento que está a ser instrumentalizado por actores políticos que aspiram capitalizar o caos.

Em paralelo, figuras da oposição como Venâncio Mondlane têm intensificado o discurso de ruptura institucional. Mondlane reforça contactos internacionais com partidos extremistas na Europa.

A sua estratégia é clara, explorar o descontentamento nas forças de segurança e no seio da juventude urbana para incendiar a rua e ganhar legitimidade como “voz da resistência”.

O risco é real, e as instituições sabem disso. Mas também se fala, nos bastidores da Frelimo, de figuras internas ligadas ao antigo Presidente, Filipe Nyusi, que estariam a encorajar silenciosamente a instabilidade, para desgastar o novo ciclo presidencial.

A TSU: Herança envenenada?

Na semana passada, estava previsto o início das atividades da Terceira Comissão da Assembleia da República, o que não aconteceu, presume-se, devido à falta de orçamento. A situação ganhou novos contornos com a recente decisão da LAM (Linhas Aéreas de Moçambique), que deixou de aceitar a emissão de bilhetes a crédito, em virtude das avultadas dívidas acumuladas por várias instituições do Estado.

A indisponibilidade financeira, agora agravada, tem efeitos directos e imediatos sobre o funcionamento de quase todos os órgãos públicos. No sector judiciário, por exemplo, um representante do Tribunal Provincial explicou à nossa reportagem que, embora se soubesse que este seria um ano atípico, marcado pelo início de um novo ciclo governativo, havia a expectativa de alguma flexibilidade orçamental após a aprovação do Orçamento do Estado e do Plano Quinquenal. No entanto, segundo a mesma fonte, os valores atribuídos a cada rubrica “existem apenas no sistema”, ou seja, estão registados, mas não disponíveis para execução.

Essa limitação tem comprometido não só a implementação de actividades programadas, mas também a realização de tarefas básicas do dia-a-dia. O elevado volume de dívidas acumuladas com fornecedores é apontado como um dos maiores sinais da incapacidade de as instituições estatais honrarem os seus compromissos. No entanto, é a instabilidade no pagamento de salários que mais afecta, de forma constante e sentida, a administração pública.

Implementada no último mandato de Nyusi, a Tabela Salarial Única foi aclamada como uma promessa de equidade e modernização salarial na função pública. Mas internamente, muitos técnicos alertaram: a TSU é insustentável sem reformas profundas na máquina do Estado.

A TSU foi uma bomba-relógio, deixada intencionalmente para explodir no colo de Daniel Chapo. Ao herdar uma folha de salários inflacionada, sem cobertura orçamental real e com subsídios irregulares, o novo Presidente vê-se obrigado a cortar ou atrasar pagamentos, assumindo o custo político de um erro que não é seu.

“Foi um acto de sabotagem política elegante. Criou-se um modelo irreal, empurrado por clientelismo e propaganda, com a certeza de que o próximo presidente ficaria acorrentado”, afirma um antigo quadro sénior do Ministério das Finanças.

Tractores, Boladas e a “Gang de Estado”

Enquanto os salários falham, o governo, ou melhor, figuras com influência residual sobre ele, ensaiam soluções “absurdas”. O mais recente escândalo envolve a proposta de usar tractores para transporte de pessoas em zonas urbanas e periurbanas, sob o pretexto de “resolver a crise de transporte”.

Por trás da ideia, escondem-se nomes já conhecidos: Amélia Muendane, ex-presidente da Autoridade Tributária, Constantino Bacela, ex-ministro do na Presidência para Assuntos da Casa Civil e Filipe Nyusi, ex-presidente da República. Segundo fontes dentro do próprio executivo, este trio mantém controlo sobre segmentos estratégicos dos negócios do Estado, incluindo importação de tractores, adjudicações directas e esquemas de “emergência orçamental”.

“O projecto dos tractores é uma bolada mal disfarçada. Veículos que não passam dos 30km/h foram adquiridos a preços inflacionados, por empresas-fantasma, com recursos públicos. Não é solução. É saque institucionalizado”, denuncia um antigo consultor do Ministério dos Transportes e Logística.

Face a este cenário, o Presidente Daniel Chapo tenta consolidar autoridade, reorganizar o Estado e neutralizar focos de sabotagem institucional. Mas o terreno é escorregadio. Governadores nomeados ainda respondem a antigos padrinhos. Ministérios continuam infiltrados por redes que servem interesses paralelos. E cada tentativa de reforma profunda encontra resistência feroz dos beneficiários do sistema anterior.

O país está à beira de uma crise institucional disfarçada de crise económica. E a verdadeira pergunta é: o Presidente Chapo conseguirá desarmar esta teia de sabotagem, corrupção e oportunismo político, antes que o Estado entre em colapso funcional?

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