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- Ministério da defesa descobriu um ano depois que tinha 300 militares ilegais nas fileiras
- Estado marginaliza capital humano próprio e legaliza as lucrativas “botas” ruandesas
- Há moçambicanos que lucram com “negócios” ruandeses em Cabo Delgado
A recente decisão de afastar mais de 300 militares moçambicanos das fileiras das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) em Cabo Delgado, por alegados problemas burocrático-administrativo, ao mesmo tempo que se dá conforto à presença das tropas ruandesas, através do acordo recém assinado, levanta sérias interrogações sobre a coerência da estratégia de segurança nacional e os reais interesses em Cabo Delgado. Esta abordagem parece contraditória e pode ter consequências significativas, pois, começa a se cristalizar a ideia de que alguns grupos podem estar interessados em aniquilar a capacidade nacional, para lucrarem por via do lucrativo negócio de guerra que envolve uma relação incestuosa entre a França, através do seu braço empresarial, o Ruanda e alguma elite moçambicana, provavelmente que lucra com comissões e parcerias com o conglomerado empresarial ruandês que tomou de assalto as principais oportunidades de negócios em Afungi.
Evidências
Na semana passada, cerca de 300 militares moçambicanos procuraram a imprensa para denunciar que estão a ser vítimas de marginalização, depois de terem sido recrutados e colocados em posições avançadas de combate ao terrorismo e defesa da pátria em Cabo Delgado por mais de um ano, período em que não receberam um pagamento sequer.
Alegadamente por o seu enquadramento não ter sido regular, os 300 homens que responderam ao chamado da pátria e estavam dispostos a lutar e morrer pela soberania do País, foram enviados de volta para casa com uma mão a frente e outra atrás. O grupo, composto maioritariamente por jovens, acusa o Estado de abandono e relata graves dificuldades logísticas e financeiras durante o ano que permaneceram aquartelados no Teatro Operacional Norte (TON).
Trata-se de antigos soldados que cumpriram o Serviço Militar Obrigatório e que, após a desmobilização, responderam a um chamamento para reforçar as fileiras das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM). Segundo os militares, aceitaram regressar ao serviço motivados pelo dever de defender a pátria e pela promessa de reintegração.
“Nós seguimos as instruções e fomos enviados para Macomia, em Cabo Delgado. Quando chegámos, disseram-nos que a reintegração seria em Catupa”, contou um dos militares, revelando que a missão teve início em agosto do ano passado.
Sem salário, sem apoio e agora sem enquadramento, os militares dizem sentir-se usados e descartados. “Demos a vida pelo país, mas fomos abandonados”, lamenta outro combatente.
O caso levanta sérias questões sobre a gestão de recursos humanos no sector da defesa, num momento em que o País continua a enfrentar ataques armados no Norte e depende cada vez mais da cooperação de forças estrangeiras para garantir segurança na região.
Em comunicado enviado na nossa redação, o Estado Maior-General alegou que os militares estavam a tentar reintegração nas Forças Armadas, mas o processo não cumpriu o procedimento administrativo e legal exigido.
“Trata-se de ex-militares em diferentes situações que incluem os que passaram à Reserva de Disponibilidade, que, de forma voluntária, manifestaram o seu interesse em sair das fileiras, tal como a lei os assiste, findo o período estabelecido para o cumprimento do Serviço Militar (…), e outros na condição de expulsos por diversos actos de indisciplina, incluindo a deserção (…)”, lê-se na nota.
O desperdício de homens dispostos a lutar e dar sua vida pelo País que os viu nascer, acontece numa altura em que se regista uma intensificação de ataques terroristas em alguns distritos de Cabo Delgado, com particular destaque para Macomia, onde estavam empenhados.
Ademais, acontece na mesma semana em que o Governo assinou um Acordo sobre o Estatuto das Forças (SOFA) que dá conforto para a continuação da missão militar ruandesa em Moçambique por tempo indeterminado. Apesar de o Presidente da República ter dito que não representa a criação de um novo acordo militar nem de uma aliança militar, permanecem os receios na sociedade sobre este acordo que se mantém oculto e não teve a chancela do parlamento.
Enquanto militares moçambicanos são dispensados, Ruanda cimenta sua presença
O facto de militares moçambicanos estarem a ser afastados, mesmo que por razões administrativas e de legalidade questionáveis, sugere uma falta de confiança nas próprias forças de segurança nacionais para lidar com a insurgência. A justificação oficial do Estado-Maior-General, que aponta para ilegalidades no processo de reintegração, não esconde a realidade de que Moçambique depende cada vez mais de apoio externo para garantir a sua segurança interna.
Analistas questionam se esta opção não representa um enfraquecimento deliberado da capacidade militar moçambicana, abrindo espaço para a consolidação de interesses externos no conflito, com cobertura de alguma elite que pode estar a lucrar com o conflito e negócios adjacentes.
“A mensagem que passa é perigosa: em vez de se investir na capacitação interna, o País parece optar por entregar a defesa do seu território a forças estrangeiras”, afirma um especialista em segurança ouvido pelo Evidências.
No terreno, começa a cristalizar-se a ideia de que a guerra em Cabo Delgado não é apenas uma batalha contra o terrorismo, mas também um “negócio lucrativo”, onde a França, através de interesses ligados ao seu sector energético, o Ruanda e segmentos da elite moçambicana, surgem como beneficiários indiretos.
Há moçambicanos que lucram com “negócios” ruandeses em Cabo Delgado
No ano passado, a ISCO, empresa com ligações ao regime de Kagamé e ao partido no poder no Ruanda, ganhou um multimilionário contrato para prestar serviços de segurança não armada ao acampamento da multinacional TotalEnergies em Afungi, na província de Cabo Delgado.
A empresa é associada a figuras ligadas a partidos políticos no poder em Moçambique e no Ruanda. Vários setores da sociedade moçambicana classificam o negócio de corrupto e ilegal. Entretanto, as autoridades moçambicanas disseram que a empresa ISCO Segurança ganhou o concurso porque apresentou a melhor proposta.
O Evidências fez uma grande reportagem em 2023, disponível no link (https://evidencias.co.mz/2023/11/21/em-tres-anos-de-operacao-kagame-passou-a-controlar-todos-negocios-de-palma/#google_vignette) que mostra o emaranhado de interesses empresariais do ruanda em Cabo Delgado, onde tem estado a ganhar lucrativos contratos.
Na altura o Evidências já destacava que em três anos de operação, a principal holding da RPF, sigla inglesa do partido Frente Patriótica de Ruanda, a Crystal Ventures, através da Macefield Ventures, seu braço internacional, passou a controlar as principais linhas de negócio em Palma, ao assumir, através de sucursais e participadas, os principais negócios dentro e fora de Afungi. São empresas que entraram na construção civil, na segurança e com interesses na exploração de minerais.
O Evidências confirmou que pelo menos quatro empresas deste grupo controlado pelo partido liderado por Paul Kagame estão a facturar milhões em contratos e subcontratos, em meio ao alarido do sector privado moçambicano, que depois de se sentir excluído no processo anterior aguarda agora pela retoma da TotalEnergies para correr atrás de oportunidade. Coincidentemente, as empresas de Kigali conseguiram negócios no mesmo perímetro cuja segurança é garantida pela força ruandesa. Ainda não está claro se essa conquista ruandesa é produto das relações entre os dois países ou de acordos secretos entre os presidentes de Moçambique e Ruanda, numa amizade apadrinhada pela França, através da TotalEnergies.
A exploração de gás em Afungi é apontada como um dos principais motores desta aliança, com o conglomerado empresarial ruandês a ocupar espaço crescente nas oportunidades de negócio criadas pelo conflito.
Mais do que um simples problema de gestão militar, o afastamento de centenas de soldados nacionais lança sérias dúvidas sobre a transparência e os reais interesses por detrás da estratégia adotada. Para muitos observadores, a medida expõe fragilidades na política de defesa e levanta questões sobre soberania, governança e responsabilidade perante os cidadãos.
Enquanto isso, em Cabo Delgado, as populações continuam a viver sob ameaça constante, sem clareza sobre quem, de facto, está comprometido com a sua segurança.



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