Assassinaram o Francisco David, o afável

OPINIÃO
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Arão Valoi

Na última quinta-feira, os amigos e familiares de Francisco David foram colhidos de surpresa com a notícia mais cruel que se pode receber: Francisco David foi assassinado. Não foi uma dessas mortes calmas, anunciadas pela fragilidade do corpo ou pela passagem natural do tempo. Foi uma morte brutal, premeditada e silenciosa, que age nas sombras, que chega de forma covarde e deixa atrás de si apenas desolação e perplexidade. Mataram-no à traição, amordaçado, dentro da sua própria casa em Moamba — o espaço que deveria ser o seu abrigo, o seu último reduto de segurança. A notícia espalhou-se como um raio, carregada de espanto e incredulidade. Ninguém queria acreditar. Não se mata assim um homem como Francisco David — ou “Francisquinho”, como a Soninha carinhosamente o tratava — porque homens assim, de alma leve e coração largo, não parecem feitos para morrer de forma tão vil.

Para mim e mais alguns, como Paulo Jorge, Dilária Marenjo, Nevasse Mabota, Elsa Bayete, Ernesto Nhanale, Argentino Paulo, Anísia Manhiça, Fátima Taquidir, Jerónimo Tamele, Vicente Marques, Jacinta Saica entre outros, Francisco foi mais do que um amigo. Foi irmão, conselheiro, companheiro de jornadas difíceis e cúmplice de alegrias. Eu conheci-o no longínquo ano de 2010, nas terras quentes de Monapo, no então Projecto Fosfato Evate, quando a Vale Moçambique ainda soprava promessas de prosperidade e desenvolvimento. Ele trabalhava na área de Saúde & Segurança e era o rosto sereno que caminhava entre máquinas e riscos industriais com a tranquilidade de quem carrega não apenas normas e procedimentos, mas também valores humanos profundos. Era responsável por garantir que cada operação decorresse com rigor, zelo e responsabilidade, para que todos regressassem a casa com vida. Mas a sua função ultrapassava números e relatórios. Era ele quem, nos momentos de tensão, soltava o sorriso que desarmava tempestades. Tinha sempre uma palavra leve, uma brincadeira oportuna, uma presença que tranquilizava. Não foi por acaso que a colega Sónia Gonçalves lhe deu o apelido que o eternizou: “o afável”.

Lembro-me com nitidez de um dos dias mais marcantes da minha vida profissional. Era 2013 e, em missão de trabalho para Nacala-a-Velha, sofri um grave acidente de viação. O carro em que seguia, uma Ford Ranger praticamente nova, capotou e embateu contra uma árvore. Saí ileso, por milagre, como a própria polícia reconheceu ao chegar ao local. A primeira pessoa a quem liguei foi Francisquinho. Não foi um acto protocolar — foi instintivo. Sabia que, do outro lado da linha, estaria alguém que não só saberia o que fazer, mas que me ampararia. Pediu-me calma, prometeu que chegaria em breve, e assim o fez. Chegou com o mesmo sorriso de sempre, um sorriso que, mesmo em meio ao caos, dizia sem palavras: “estás seguro agora”. Tomou conta de tudo, da perícia ao relatório, da polícia à empresa, e mandou-me descansar. Eu, ainda com o coração apertado, temia pelo emprego. Ele, sereno, garantiu-me: “Não te preocupes, Arãozinho. Estavas em missão. Fizeste tudo certo.” E assim foi. Não perdi o emprego, não perdi a dignidade. Ganhei um irmão. Era essa a essência de Francisco: fazer-se presente sem que fosse preciso chamá-lo. A sua bondade não era exibida, era natural, silenciosa e profundamente humana.

Com o passar dos anos, a vida levou-me para Nacala-a-Velha e levou-o a dividir-se entre Nampula e Maputo, mas Francisquinho continuou o mesmo. Era inquieto, visionário, homem de sonhos plantados na terra. Adquiriu um terreno em Chocas-Mar, no Distrito de Mossuril, e mais tarde lançou-se num empreendimento em Moamba, ligado à restauração e à agricultura. Produzia feijão, milho, alface e couve, com o entusiasmo sereno de quem acredita no trabalho honesto como caminho de vida. Tinha planos, tinha horizontes largos, acreditava num futuro que a morte, cruel e traiçoeira, interrompeu de forma abrupta. Na noite fatídica, regressava do Complexo Zunguza por volta das 19h30. Entrou em casa convencido de que o guarda o esperava. Não sabia que o guarda já estava rendido e que os malfeitores, como chacais famintos, o aguardavam na escuridão. Amarraram-no, amordaçaram-no, tiraram-lhe a respiração. Levaram apenas a sua bolsa com documentos e cartões bancários. Não foi um grande roubo — foi apenas uma grande crueldade. Por volta das 23h30, a polícia foi informada. Como em tantos outros casos, chegou tarde, quando já não havia nada a fazer. E, como em tantos outros casos, virão inquéritos formais, promessas protocolares, investigações inconclusivas e, por fim, o esquecimento.

Francisco David morreu num tempo em que a violência deixou de ser excepção e tornou-se rotina e num país onde assassinatos, raptos e desaparecimentos alimentam as páginas dos jornais e as conversas quotidianas, mas raramente resultam em justiça. Há dias, foi Egas Bié, motorista de Yango, encontrado morto, amarrado, espancado. Antes dele, inúmeras mulheres foram violadas e mortas, somando números frios nos relatórios do Observatório das Mulheres. Entre Janeiro e Setembro deste ano, mais de quarenta feminicídios foram registados. Quarenta vidas caladas. Quarenta famílias destroçadas. Quarenta feridas abertas. E o Estado? Silencia. O silêncio do Estado é ensurdecedor, pesado, cúmplice. Não há justiça célere, não há investigações exemplares, não há acção proporcional ao horror. Esta omissão não é neutra. É uma forma de violência institucional, que legitima o crime, encoraja os criminosos e abandona os cidadãos à própria sorte.

O assassinato de Francisco não é um caso isolado. É mais um capítulo de uma narrativa maior e mais sombria: a de um País que se desumaniza a cada novo crime não esclarecido. Hoje, tememos sair de casa, mas tememos não regressar. Cercas, muros, câmaras e alarmes tornaram-se símbolos de uma sociedade desconfiada de si própria. Já não confiamos nos vizinhos, nas ruas, nas instituições, no próprio chão que pisamos. O mais trágico é que, diante deste colapso, muitos já se habituaram. A barbárie foi normalizada. Choramos um dia, indignamo-nos no outro e, no terceiro, retomamos à rotina resignados. Este ciclo perverso de dor, revolta e esquecimento é o terreno fértil onde germina a violência.

Francisco não merecia terminar assim — não ele, que foi farol para tantos, que carregou a leveza de um sorriso em tempos pesados. Mas mais grave do que a sua morte seria permitir que a sua memória fosse engolida pelo esquecimento burocrático que caracteriza tantos outros casos. A sua morte exige mais do que lágrimas: exige respostas, exige acção, exige justiça. Um país que não protege os seus cidadãos não é uma nação: é apenas um território, um pedaço de terra à deriva.

Que a morte de Francisco David e de tantos outros não seja mais uma estatística. Que seja um ponto de ruptura, um grito que não se apague com o tempo. Que obrigue as autoridades a agir, a investigar, a punir. Que desperte consciências adormecidas e obrigue a sociedade a exigir segurança como um direito e não um privilégio. Porque, se nada for feito, amanhã será outro nome, outro rosto, outra vida ceifada, outro grito abafado. E nós, os vivos, estaremos a morrer com eles — não de tiros ou facas, mas de medo, de indiferença e de vergonha. Francisco foi assassinado, sim, mas não pode ser esquecido. A sua história é o retrato cruel de um país que precisa, urgentemente, de reencontrar a sua humanidade.

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