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- TA com novos elementos sobre o saque reportado no relatório sobre CGE de 2023
- A suspeita transformou-se numa grave confissão de irregularidade institucional
- Durante dois anos, Executivo apresentou deliberadamente informações enganosas na CGE
- Executivo de Nyusi abusou de Bilhetes e Títulos do Tesouro e foi “zerar” reserva do Banco de Moçambique
- Ultrapassou todos os limites de endividamento interno e externo, deixando o país a deriva
- Uma parte considerável dos mapas da CGE continua a ser feita fora do sistema
O Governo admitiu formalmente perante o Tribunal Administrativo (TA) o desvio de 33,65 milhões de dólares das receitas do gás natural que, por lei, estavam destinados ao Fundo Soberano. Esta admissão, contida na sua resposta ao relatório e Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2024, representa uma capitulação perante as provas irrefutáveis apresentadas pelo TA e confirma uma violação grave e consciente das normas de gestão financeira pública, depois de uma tentativa deliberada de tentar ocultar. Na sessão parlamentar que tem início esta semana, os deputados da Assembleia da República deparam-se com um dos documentos mais graves e reveladores da crise de governação que consome Moçambique. Trata-se de um retrato impiedoso de um Executivo que actua à margem da lei, da transparência e de qualquer lógica de planeamento estratégico, convertendo a gestão da coisa pública num espaço de opacidade e irregularidades. O auditor do Estado demonstra que o executivo de Filipe Nyusi fez uso abusivo dos Bilhetes do Tesouro, e recorreu de forma indevida ao fundo de reserva do Banco de Moçambique, ultrapassando todos os limites de endividamento interno e externo, deixando o país profundamente endividado e em situação crítica de liquidez financeira.
Evidências
No capítulo sobre o movimento dos fundos, a nova justificação sobre os fundos que deviam ser canalizados ao Fundo Soberano surge depois de o TA ter desvendado o intricado mecanismo de desvio. A auditoria confirmou que, entre 2022 e 2024, a concessionária Mozambique Rovuma Venture pagou 33,6 milhões de dólares em Imposto sobre a Produção de Petróleo à Autoridade Tributária (AT). No entanto, em vez de seguir para a Conta Transitória do Fundo Soberano, criada precisamente para capitalizar essas receitas, o dinheiro foi encaminhado para a Conta Única do Tesouro (CUT) e consumido no Orçamento Geral do Estado. Não devia ser este o procedimento.
Lembre-se de que no relatório anterior de TA, o de 2023, o Governo não conseguiu comprovar o paradeiro de 9,04 milhões de dólares deste montante, devido à “ausência das Guias de Recolhimento e respectivos Modelo 51”, documentos essenciais para rastrear o dinheiro. Esta lacuna levantou sérias questões sobre a integridade de todo o processo, sugerindo que nem mesmo o Executivo tinha controlo sobre o dinheiro que desviara.
Perante a pressão factual do Tribunal, a estratégia do Governo mudou. No exercício do seu direito de contraditório para o relatório de TA, finalizado em Setembro passado, o Executivo foi forçado a rectificar a sua posição inicial. Já não nega o facto, pelo contrário, assume-o. Afirmou que “a diferença no montante de USD 33.65 milhões (…) é referente às receitas cobradas e receitadas pela AT no período de Dezembro de 2022 a Março de 2024”. Para tentar salvar a sua credibilidade, apresentou, finalmente, a documentação que faltava para comprovar a transferência dos 9,04 milhões de dólares para a CUT.
A admissão transforma o que era uma suspeita grave numa confissão de irregularidade institucional. O Governo não só violou a lei ao não canalizar as receitas para o Fundo Soberano, como, durante dois anos, apresentou informações enganosas na CGE, afirmando que o valor total das receitas do gás (164,69 milhões de dólares) tinha sido depositado na conta transitória, quando tal não era verdade.
Perante a evidência de AT, a única saída foi o mea culpa e uma promessa. O Governo, no relatório a que o Evidências teve acesso, “comprometeu-se, ainda, a proceder à regularização dos montantes não canalizados à conta transitória”. Este compromisso, que será acompanhado pelo TA, é um reconhecimento tácito da ilegitimidade do acto. No entanto, a promessa de corrigir no futuro um desvio do passado não apaga a gravidade do que ocorreu: a apropriação indevida de um capital estratégico, pertencente a todas as gerações de moçambican, para financiar as despesas correntes de um governo que demonstrou, mais uma vez, que a lei é um mero detalhe na sua gestão da coisa pública.
Lembre-se que, de acordo com o relatório e Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2023, emitido pelo Tribunal Administrativo, até Março de 2024, a Conta Transitória, a sub-conta da Conta Única do Tesouro onde é depositado o valor das receitas do Gás Natural da Bacia do Rovuma – antes da sua transferência para o Orçamento do Estado (60%) e para o Fundo Soberano (40%) –, tinha um saldo de 60.589.023,82 USD, dos quais, 47.582.992,19 USD depositados em 2023 e 13.006.031,63 USD canalizados nos primeiros três meses do ano passado.

No entanto, o Tribunal Administrativo revela que o valor apresenta uma diferença de 33,65 milhões de USD em relação ao montante declarado pelo Governo no Relatório de Execução do PESOE (Plano Económico e Social e Orçamento do Estado). Segundo o auditor das contas públicas, o Relatório do Governo refere que, de 2022 a Março de 2024, foram cobrados 94,2 milhões de USD.
Um retrato de um Estado que se saqueia a si próprio
Não são apenas os desvios que mancham a gestão dos fundos públicos. O auditor das contas das finanças públicas expõe um retrato disfuncional e opaco. Constata que apesar de existir um sistema electrónico de gestão (e-SISTAFE), uma parte considerável dos mapas da CGE continua a ser feita fora do sistema.
Isto não é um mero detalhe técnico. Significa que o governo deliberadamente escolheu trabalhar com um sistema paralelo e opaco, “comprometendo a fiabilidade, rastreabilidade e integridade da informação financeira”, e aumentando o risco de “erros materiais, omissões e até manipulação de dados”. É a semente da fraude plantada no coração do Estado.
Esta opacidade serve para camuflar operações financeiras gravíssimas. O TA confirma que parte significativa do dinheiro do Estado não está na Conta Única do Tesouro (CUT), estando dispersa por contas bancárias não controladas pelo Tesouro. Pior ainda, é que há “movimentação de fundos públicos fora do circuito normal de execução orçamental”, tornando estes recursos “vulneráveis à utilização indevida”. É a legalização do desvio. O Fundo de Estradas e o Serviço de Migração, sozinhos, detinham um saldo quase o dobro do valor da CUT, demonstrando o total descontrolo da Direcção Nacional do Tesouro sobre o erário público.
Uso abusivo dos Bilhetes de Tesouro até duplicar a dívida e saque aos fundos de reserva
O novo Governo de Daniel Chapo, em funções desde 15 de Janeiro, herdou das mãos do anterior executivo de Filipe Nyusi uma situação financeira crítica, com fontes governamentais a descreverem, sob anonimato, “cofres vazios(?)”. É para estes que o cenário retratado pelo relatório do Tribunal Administrativo apenas confirma a suspeita. Neste período, de acordo com relatório, a dívida pública total atingiu o valor mais elevado de todo o quinquénio de Nyusi, fixando-se em 1.043.544 milhões de meticais (cerca de 16,3 mil milhões de dólares).
A situação é particularmente alarmante no capítulo da dívida interna, que registou um crescimento de 29,7% num único ano. O stock da dívida contraída junto do Banco de Moçambique explodiu 58,2% entre o início e o fim de 2024, passando de 42.064 milhões para 66.564 milhões de meticais.
Contrariamente aos donativos Externos e Empréstimos Externos, os quais evidenciam uma tendência decrescente, os empréstimos internos registaram um aumento significativo e quase duplicaram no ano de 2024, em relação a 2023. Esta subida foi fortemente influenciada pelo aumento da emissão de Bilhetes do Tesouro (BTʼs), como principal instrumento de financiamento interno utilizado pelo Estado, durante o presente exercício. Hoje, como pode se ler na edição 229 do Jornal Evidências, os Bilhetes de Tesouro não são mais atractivos para os bancos comerciais.
Este forte aumento é o reflexo directo do desespero financeiro que marcou os últimos meses da administração Nyusi, forçada a recorrer em quatro ocasiões distintas aos fundos de reserva do Banco Central para fazer face a despesas básicas.
A cronologia destes recurso, detalhada pelo TA, mostra um padrão de gestão de crise. Em Fevereiro de 2024, um primeiro empréstimo de 5.000 milhões de meticais para pagamento de salários; em Março, um novo de 6.000 milhões; em Abril, mais 6.500 milhões; e em Junho, um último empréstimo de 7.000 milhões de meticais. No total, somam 24.500 milhões de meticais que, nos termos da Lei Orgânica do Banco de Moçambique, deveriam ter sido integralmente devolvidos até 31 de Dezembro de 2024. O Governo anterior não cumpriu este requisito legal, incorrendo agora numa dívida que gera juros à taxa de redesconto, actualmente situada em cerca de 13,25% ao ano.
A situação de fragilidade financeira é agravada pelo facto de Moçambique ter terminado o ano de 2024 a violar os parâmetros de sustentabilidade da dívida estabelecidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial. Três indicadores críticos encontram-se fora dos limites considerados seguros, são a rácio Dívida Externa/PIB situou-se nos 33,1% (contra um limite de 30%); o Serviço da Dívida Pública Externa/Exportações ficou em 10,4% (limite de 10%); e o Serviço da Dívida Externa/Receitas Correntes atingiu os 15,8% (limite de 14%).
“Estes números impactam negativamente nos esforços visando ao desenvolvimento económico e social do País”, sublinha o relatório do TA, utilizando uma linguagem invulgarmente dura para um documento desta natureza.



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