Nyusi acusado de declaração “infeliz” e de ameaça à estabilidade social da Guiné Bissau

DESTAQUE POLÍTICA
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  • Bissau activa operação embate a quem não alinha com encenação
  • Entre contradições eleitorais e silêncios ruidosos: Nyusi irrita Embaló com verdade incómoda
  • Pecado de Nyusi como chefe de missão da UA foi ter dito que os resultados existem
  • “Um militar não toma o poder e deixa o Presidente deposto a fazer conferências de imprensa” – Goodluck Jonathan

A crise política e eleitoral na Guiné-Bissau voltou a expor uma velha ferida da democracia africana, a dificuldade em aceitar a transparência quando o poder sente que pode escapar-lhe do controlo. No centro desta tensão emergem três figuras incontornáveis, Filipe Nyusi, Umaro Sissoco Embaló e, de forma quase irónica, o antigo presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, cada uma representando uma leitura distinta do mesmo acontecimento, mas nem todas com o mesmo grau de coerência. Tudo começa quando a Comissão Nacional de Eleições (CNE) da Guiné-Bissau anunciou a sua incapacidade de divulgar os resultados das eleições de 23 de Novembro de 2025, invocando a apreensão de actas regionais e danos no software de apuramento nacional. A justificação, longe de acalmar os ânimos, lançou o país num novo ciclo de suspeitas e incertezas que evoluíram para instabilidade política, golpes e contragolpes, além do silêncio institucional que levou os aliados da candidatura de Sissoco Embaló a convocar a imprensa para classificar a declaração de Nyusi de “infeliz” e “ingerência”.

 Evidências

É neste cenário que surge Filipe Nyusi, antigo Presidente de Moçambique e chefe da missão de observação eleitoral da União Africana (UA). Nyusi afirmou, de forma clara, que existem resultados e que estes devem ser publicados, sublinhando que o processo eleitoral decorreu de forma pacífica, ordeira e transparente até ao fecho das urnas. As suas declarações, feitas à Rádio Moçambique, não proclamam vencedores, mas insistem num princípio essencial de que sem resultados publicados, não há democracia funcional, talvez baseado na experiência do lado índico.

A reacção de Bissau foi imediata e reveladora. A candidatura de Umaro Sissoco Embaló, paradoxalmente apresentada como vencedora, insurgiu-se contra Nyusi, acusando-o de ingerência nos assuntos internos da Guiné-Bissau e de atentado à soberania nacional. O representante da candidatura, José Paulo Semedo, afirmou que Nyusi não poderia testemunhar factos que não viu e classificou as declarações como “infelizes e perigosas”, capazes de criar expectativas que ameaçariam a paz social.

É aqui reside a primeira grande contradição. Afinal, se Umaro Sissoco Embaló venceu efectivamente as eleições “de acordo com as actas” a que diz ter acesso, por que razão se opõe com tanta veemência à divulgação oficial dos resultados? Em democracias maduras, a publicação dos resultados é um acto de legitimação, não de ameaça. Apenas regimes inseguros ou projectos de poder frágeis temem a luz.

Umaro Sissoco Embaló não é um actor isolado neste teatro político. O seu percurso revela um padrão de proximidade com líderes que, em momentos de eleições conturbadas, privilegiam a estabilidade do poder em detrimento da transparência democrática. A sua presença em Moçambique e em Tanzânia para testemunhar a tomada de posse, países onde processos eleitorais recentes foram marcados por denúncias de irregularidades e repressão da oposição, não é casual. Embaló cultiva alianças com regimes que entendem eleições como um ritual de confirmação do poder, e não como um mecanismo de escolha popular.

Neste ponto, a figura de Filipe Nyusi torna-se particularmente desconfortável para Bissau. Durante os seus mandatos, Nyusi foi frequentemente criticado pela forma como lidou com processos eleitorais disputados, pelo enfraquecimento progressivo das instituições e pela intolerância face ao contraditório político. O facto de ser precisamente Nyusi a exigir transparência na Guiné-Bissau coloca Embaló numa posição delicada, aceitar o princípio significaria abrir mão de um controlo que parece desejar manter enquanto rejeitá-lo expõe uma contradição evidente.

A crise agrava-se após os acontecimentos de 26 de Novembro, quando um golpe militar interrompeu abruptamente o curso institucional do país. Foi neste contexto que as palavras de Goodluck Jonathan, antigo presidente da Nigéria e observador das eleições, ganharam um peso inesperado. Jonathan afirmou, em conferência de imprensa, que não chamaria ao ocorrido um golpe clássico, mas antes um “golpe cerimonial”. A razão é perturbadora, afinal ele argumenta que foi o próprio presidente Embaló quem anunciou o golpe antes mesmo de um representante militar surgir para declarar que as forças armadas estavam no controlo.

Este detalhe, aparentemente anedótico, é profundamente revelador. Num Estado de Direito, golpes anunciam-se pela força das armas, não pela palavra do Presidente. O gesto de Embaló sugere não apenas conhecimento prévio, mas uma encenação cuidadosamente gerida para legitimar uma ruptura constitucional sob a capa da normalidade. A leitura de Jonathan, vinda de alguém que aceitou publicamente a sua derrota eleitoral em 2015 em nome da estabilidade democrática da Nigéria, carrega uma autoridade moral difícil de ignorar.

 Mais um detalhe que sugere encenação

Entretanto, as acusações de ilegalidade multiplicam-se. A Direcção Nacional de Campanha do candidato independente Fernando Dias da Costa contestou a decisão do secretariado executivo da CNE, acusando-o de usurpação de competências e de agir à margem da lei. Segundo o comunicado, o secretariado não tem mandado para declarar impossível a conclusão do processo eleitoral, uma prerrogativa que pertence exclusivamente ao plenário da comissão. Trata-se de mais um indício de que o bloqueio institucional não é técnico, mas político.

No meio deste emaranhado de versões, a pergunta essencial permanece sem resposta: por que razão se evita a divulgação dos resultados? Como sublinhou Nyusi, se não houve problemas até ao fecho das urnas, se as eleições foram amplamente elogiadas pela participação popular e pela organização, o que justifica o silêncio agora?

A história nesta região de África mostra que a recusa em publicar resultados raramente protege a paz; pelo contrário, alimenta a desconfiança, radicaliza posições e abre espaço à violência. A Guiné-Bissau encontra-se novamente num desses momentos críticos em que a escolha não é entre vencedores e vencidos, mas entre a transparência e a regressão.

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