Saque às empresas públicas: As boladas do fim de Mandato

DESTAQUE EXCLUSIVO
  • Celso Correia, através da sua empresa, Intellica, vai encaixar 33 milhões de meticais por vender empresas do Estado
  • A operação consiste em vender imagem de empresas falidas para a nova elite assaltá-las
  • EMOSE lidera mercado e paga dividendos, possui 72 prédios e um vasto património

 

Por detrás da intenção do Governo, de vender quatro empresas dos ramos de seguros, comunicações, imobiliária e combustíveis, pode haver interesses ocultos. Se, por um lado, há o risco de as empresas irem parar nas mãos da nomenclatura, ligada à actual elite liderada por Filipe Nyusi, por outro, a empresa Intellica, que irá embolsar perto de 33 milhões de meticais para apoiar o Instituto de Gestão de Participações do Estado (IGEPE), na negociação e venda de participações do Estado naquelas empresas públicas consideradas não estratégicas tem fortes ligações com o actual ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural, Celso Correia e foi através dela que “mamou” algumas comissões no processo de reversão da barragem da Cahora Bassa. E a desconfiança cresce ainda de tom quando evidências mostram que, afinal, empresas como a EMOSE não estão financeiramente tão mal como se procura fazer entender. Para além de ser líder de mercado, tem lucros e reparte, inclusive, dividendos com o Estado.

Texto: Nelson Mucandze e Reginaldo Tchambule

O anúncio da venda de cinco empresas do sector empresarial do Estado, nomeadamente:a Empresa Moçambicana de Seguros (EMOSE), Correios de Moçambique, Sociedade de Gestão Imobiliária (DOMUS) e a Silos e Terminal Graneleiro da Matola (STEMA), com contornos um pouco nebulosos está a gerar algum alarido na praça pública.

É que parte das empresas que são hoje apresentadas como sendo menos estratégicas (pelo menos a EMOSE e a sua subsidiária de gestão do seu património imobiliário Domus), mesmo com uma gestão que permite delapidação por parte do partido no poder, apresentam-se com resultados positivos.

No caso da EMOSE, nos últimos três anos é das poucas que partilha dividendos com o Estado, sinal de que tem tido lucros. Por essa razão, a notícia da sua alienação está a causar uma certa estranheza, não só aos trabalhadores e gestores como também a vários sectores da sociedade moçambicana, que suspeitam que pode tratar-se de uma estratégia da actual elite política para se apoderar das empresas públicas e seus activos a preço de banana.

Por outro lado, o valor de perto de 33 milhões de meticais envolvidos na consultoria para negociação e venda das participações, levanta outro alarido, que ganha outros contornos pelo facto de a empresa Intellica, a qual foi adjudicada a empreitada, ter ligações com Celso Correia, actual ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural, um dos mais influentes membros do Governo e, como ele próprio diz, com poderes sobre o Presidente da República.

Ligação Celso Correia, Intellica e Ana Coanae

A Intellica foi a empresa usada por Celso Correia na mediação da reversão da barragem de Cahora Bassa, onde ele próprio reconheceu, num áudio clandestinamente gravado por Inês Moiane, que recebeu “luvas”, que chamou de uma “comissão limpa”.

Na verdade, a Intellica pertencente ao Grupo INSITEC fundado por Celso Correia e assaltou os negócios do IGEPE, sobretudo ligados à consultoria das participações do Estado em empresas Públicas, quando a empresa mãe comprou uma parte da ERNEST & YUONG.

Celso Correia, que chegou a ser PCA de um dos maiores bancos comerciais da praça pelo braço da INSITEC, desde que se tornou ministro mantém-se estrategicamente afastado da gestão das empresas e chegou a simular a venda de algumas para evitar qualquer associação com algum tráfico de influências.

Mas, o Evidências sabe que apenas colocou testas de ferro para continuar a “mamar” das tetas do Estado e do Governo, sem levantar suspeições. Todas as suas empresas foram misteriosamente parar nas mãos de seus antigos trabalhadores.

A TIM foi vendida a um grupo de trabalhadores, a CETA foi comprada por seu antigo colaborador Nelson Muiana, através da NEF, empresa que também detém a Intellica e cujos quadros todos tem um passado ligado a empresas de Celso Correia e são tidos como simples testas de ferro.

Como tal, engana-se quem pensa que a farra do IGEPE e Intellica é obra do acaso. Com mais de 10 anos no mercado, aquela firma tem no seu portefólio o braço empresarial do Estado como seu principal cliente.

A disponibilidade de negócios para a empresa de Celso Correia aumentou significativamente depois da chegada da actual PCA do IGEPE, Ana Coanae, antiga vice-ministra deste no extinto Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural. No IGEPE, segundo alguns corredores, funciona como focal point para viabilizar algumas boladas.

Intellica é cliente assíduo do IGEPE

A Intellica apresenta-se como uma empresa de capital 100% nacional com mais de 10 anos no mercado, fruto do spinoff das linhas de Negócio de Consultoria de Gestão/ Corporate Finance e Sistemas e Tecnologias de Informação duma Consultora Global em 2006. É uma referência na provisão de serviços de consultoria para o sector público e possui experiência comprovada também nos sectores financeiros, serviços, utilities, media e telecomunicações.

Esta não é a primeira vez que a Intellica se serve dos fundos do Estado para mediar a venda de activos ou reestruturação de empresas públicas. Aquela empresa é um cliente preferencial do IGEPE, sobretudo neste ciclo de governação, em que tem ao leme, Ana Coanae, tendo inclusive sido encarregue a elaboração da Estratégia de Investimento do Sector Empresarial do Estado. Há anos, foi confiada, sem nenhum concurso público, a responsabilidade de elaborar o Plano Estratégico do IGEPE

Esteve também na avaliação para Alienação de Empresas Participadas pelo Estado também consideradas não Estratégicas, com destaque para a CEGRAF, TTA, MEXTUR, Motel do Mar, onde encaixou um valor não especificado.

O que salta a vista neste caso é o valor da presente empreitada. É que, há alguns anos a Intellica ficou encarregue de reestruturar 10 participações do Estado e cobrou menos de 10 porcento dos 33 milhões que vai agora encaixar para vender apenas quatro participações.

Na referida ocasião, o IGEPE pagou à Intellica apenas 3,7 milhões de meticais pela consultoria, visando a dissolução e liquidação de 10 empresas, mais 2.6 milhões de meticais pelas vendas das mesmas 10 participações do Estado em empresas consideradas não-estratégicas. As referidas empresas foram parar nas mãos de privados em geral.

Numa outra ocasião, o IGEPE contratou a Price Water House Coopers pelo valor de 1,3 milhões de meticais, para o serviço de consultoria para a venda de 14 participações do Estado reservadas aos gestores, técnicos e trabalhadores.

O Centro para o Desenvolvimento da Democracia (CDD) é dos movimentos que logo à primeira hora lançou um mau olhar ao negócio. A organização dirigida por Adriano Nuvunga questiona a razoabilidade de o IGEPE gastar 33 milhões de meticais para vender acções de quatro empresas.

“Quanto é que o IGEPE espera ganhar com esse negócio? Com 20 anos de existência, o IGEPE não tem capacidade técnica para negociar a venda de participações de empresas públicas ou participadas pelo Estado? Um instituto público criado para gerir as participações financeiras do Estado não dispõe de recursos humanos com capacidade técnica para negociar a venda de acções? Precisa mesmo de gastar 33 milhões de meticais com serviço de apoio nas negociações? A proposta da Intellica foi a melhor?”, questiona o CDD.

“É uma estratégia de saque típica de fim de mandato”

O Evidências entrou em contacto com os representantes das três bancadas parlamentares. Enquanto a bancada da Frelimo entende que a decisão de alienação das empresas é a mais acertada, a bancada da Renamo diz tratar-se de uma estratégia de saque típica do fim do segundo ciclo de governação. O porta-voz do MDM, Fernando Bismarque mostrou-se indisponível para comentar sobre o assunto.

Arnaldo Chalaua, porta-voz da bancada parlamentar da Renamo, considera que é uma estratégia para a elite política, com influência no xadrez actual, dividir-se entre si as empresas públicas, tal como aconteceu no passado.

“É mais uma oportunidade para saquear o património público para benefício de indivíduos ligados à nomenclatura, mas a história mostra claramente que os mesmos, depois ficam numa situação de insolvência. Tem que se fazer uma ginástica muito grande, fazer-se uma inventariação para se saber por que é que essas empresas não produzem, entre outros aspectos”, destacou Chalaua.

O porta-voz da bancada parlamentar da Renamo desconfia que mesmo que haja um concurso público para alienação das empresas, será uma simples formalidade, pois já existem pessoas posicionadas para assaltar as empresas e seus activos.

“É tudo uma estratégia de saque de uma elite que está no fim de mandato. Constitucionalmente, o Presidente da República só pode ser eleito duas vezes e já se sabe de antemão que o próximo candidato será diferente e os membros do actual Governo estão numa situação de: ‘já que nós não voltamos a ter a mesma confiança porque serão confiadas as novas figuras, vamos nos dividir essas empresas, se vierem os outros, que se arranjem’. É uma questão de precaução. Isto vai piorar quando restar apenas um ano para o fim do mandato”, destacou.

Sobre o pagamento de uma comissão astronómica a uma empresa que pertence a Celso Correia, Chalaua é peremptório: “trata-se de gangsterismo, porque as pessoas fazem tudo por tudo para lograrem proveito através de uma simulação. São negócios simulados em que no fim há benefícios financeiros. Isto é roubar o povo. Esperava que fosse uma acção de boa vontade, mas o passado ensinou-me a ser receoso”.

“É legítima a venda destas empresas para modernização e competitividade” – F. Sílvia

Por seu turno, o porta-voz da bancada parlamentar da Frelimo, Feliz Sílvia começou por dizer que o Estado criou o sector empresarial para poder alimentar o próprio Estado em termos de recursos  e garantir e mobilizar a concorrência de mercado e, não estando a produzir, houve uma formulação da política de investimento, e esta também, não estando a corresponder, é normal que se privatize as empresas para garantir sua maior dinâmica e manutenção dos postos de trabalho.

“Eu acho que é legítima a venda destas empresas, naturalmente que o Estado precisa ter um sector empresarial, mas também se não está a corresponder as expectativas não podemos continuar, porque estas empresas vêm mostrando a cada dia que precisam de modernização e o Estado tem suas políticas internas que podem não permitir que as empresas avancem do ponto de vista concorrencial”, sublinhou.

Questionado sobre o caso concreto da EMOSE que tem registado um desempenho positivo e a repartir, inclusive dividendos com o Estado, Feliz Sílvia, eleito pelo circo eleitoral de Gaza, diz que é preciso ver se esta empresa consegue estar ao mesmo nível em termos de concorrência com as outras emergentes do ramo.

“É a maior seguradora do país, não há dúvidas, mas será que está a evoluir em termos de busca de oportunidades de clientes. Pode estar estática, por isso é preciso que ela se liberte das amaras do Estado para poder entrar na concorrência em pé de igualdade com as outras, porque nós hoje estamos a fazer actualização legislativa para o Governo rever o código comercial, por forma a garantir que a concorrência seja leal. O Estado não pode fiscalizar, promover, enquanto também é concorrente. O Estado tem que libertar as empresas”, sublinhou Sílvia.

Em relação a vozes que acreditam que estas alienações não passam de uma estratégia para a elite ligada ao partido no poder assaltar as empresas públicas, seus activos e património, o porta-voz da bancada da Frelimo afasta peremptoriamente esta possibilidade.

“Isso não constitui verdade, nós temos que acreditar que temos um Estado que se funda na legalidade. Nós não podemos olhar para as amarras do passado e continuarmos a pensar nisso. O processo é transparente, tanto mais que contratou-se uma empresa de consultoria para poder assessorar o IGEPE na venda destas empresas”, disse, para depois desdramatizar o barulho sobre os valores envolvidos “eu penso que não há valores que estejam acima dos interesses do Estado. Esta consultoria, pelo que pude ver no debate da TVM, é praticamente gratuita. Nós sabemos que neste processo de venda há ganhos para o Estado e para garantir transparência foi se contratar uma empresa de consultoria. Se tu queres transparência, tens que pagar e é o que o Estado está a fazer”.

Património e balanços financeiros da EMOSE desmentem tese do IGEPE

Contrariamente à percepção do IGEPE, com um activo total avaliado em 13,8 mil milhões de meticais e um património de 6,4 mil milhões de meticais (dos quais 6 mil milhões de MT correspondem a 72 edifícios espalhados pelo país, de entre os de uso próprio e de rendimento), a EMOSE continua líder destacado do mercado de seguros em Moçambique.

Em 2019, apesar da conjuntura, a empresa manteve um resultado positivo aplausível. No relatório de contas de 2019, lê-se que o resultado líquido do exercício foi positivo de 75,3 milhões de meticais contra um resultado de 297,2 milhões de meticais registados em 2018, representando uma diminuição de 75 por cento, como destaca o parecer do Conselho Fiscal.

Apesar do seu histórico de má gestão e uso de empresas públicas como sacos azuis, na EMOSE, diferentemente do que acontece nas Linhas Áreas de Moçambique (LAM), Aeroportos de Moçambique (AdM), STEMA, entre outras, o Governo nunca precisou de tirar qualquer centavo do Orçamento do Estado (OE) para garantir o seu funcionamento.

É que aquela empresa que lidera o mercado de seguradoras no País nos últimos 30 anos, num intervalo que deixa de longe outras seguradoras, tem conseguido pagar anualmente os seus dividendos, desde 2018, ou seja, tem lucros.

Longe dos argumentos políticos, vozes atentas, traçam um cenário dramático das empresas públicas, destacando as implicações de se confiar a privados uma empresa estratégica como EMOSE.

Tirando o facto de ser usada como saco azul, inclusive para financiar actividades do partido Frelimo, a EMOSE tem tido bons resultados financeiros e os lucros seriam ainda maiores se não fosse por causa do Estado, que não paga as suas dívidas. Neste momento, a única mancha da EMOSE é das dívidas, dos prémios não cobrados e o maior devedor é o Estado, que fez seguros e não paga.

No entanto, segundo um especialista do ramo, ouvido pelo Evidências, em seguros, uma dívida de prémios não cobrados não é grande problema, porque a seguradora tem provisão para prémio não cobrado. “Na declaração de lucros, a empresa já tirou a provisão do prémio não cobrado. Uma espécie de reservas”, explica.

O especialista que temos vindo a citar, aponta o risco da EMOSE cair em mãos erradas e ser usada para tirar dinheiro do país para o estrangeiro de forma ilegal. “É que a actividade seguradora, na sua essência, é propícia à colocação do dinheiro no exterior, na medida em que os grandes riscos são reassegurados no exterior, com as companhias que não fazem seguros directos”, aclara.

Esta é uma das razões para não se vender, por ter um potencial enorme de colocação de dinheiro fora do País, e foi nacionalizado justamentepor esse motivo. Outra razão é que com o Estado, faz seguros directos, sem envolvimento de corretor, poupando dinheiro. Apesar de existirem, instituições de Estado que não correm para outras seguradoras.

Uma outra razão que pode representar uma perda para o Estado e para os Moçambicanos com a venda da EMOSE tem a ver com as propriedades que esta tem, que rondam a volta de 72 edifícios distribuídos entre Moçambique e Portugal. Ademais, a empresa detém participações diversificadas na economia (Cimentos de Moçambique; Sociedade Notícias; Sociedade de Desenvolvimento do Corredor de Maputo e a resseguradora MozRe), sendo preponderante nos seguros de sectores onde o Estado está presente como infra-estruturas, transporte aéreo e actividade marítima.

O relatório anual do Instituto de Supervisão de Seguros de Moçambique (ISSM), publicado em 2020, coloca a Emose na liderança, com 28 porcento de quota (mais 8,1 pontos percentuais em comparação com 18), logo seguida da sul-africana Hollard com 10,3 por cento de quota (- 4,7 pp face à parte que detinha um ano antes).

Desde 2013, a empresa detida em 49 por cento pelo Estado, outros 31entregues a IGEPE e mais 20 porcento atribuídos à GETCoop (uma cooperativa de quadros, técnicos e trabalhadores da estatal), dispersou 10 por cento do seu capital social na bolsa de valores de Maputo, revela o prospeto de OPV dirigida a institucionais, na qual o Estado moçambicano foi a entidade oferente.

O dito pelo não dito que expõe contornos de máfia

Após a repercussão negativa que a venda das quatro empresas teve na opinião pública, o IGEPE, através do administrador executivo do pelouro de Controlo de Empresas, Raimundo Matule, numa entrevista recente ao matutino notícias, para sacudir a pressão pública, lançou arreia nos olhos dos moçambicanos, alegando que nem sempre a reestruturação significa que o que se pretende é a privatização.

“Já tivemos reestruturações nas Linhas Aéreas de Moçambique (LAM), Petróleos de Moçambique (Petromoc) e nas Telecomunicações de Moçambique e Mcel, culminando com a fusão das duas últimas”, explicou ao Notícias a fonte, acrescentando que no caso concreto da EMOSE, STEMA, DOMUS e Correios de Moçambique, o estudo a ser conduzido pela Intellica é que vai determinar o tipo de intervenção que deverá ser feita em cada uma das unidades.

Matule explicou que em função dos resultados e recomendações do estudo, a reestruturação pode ser feita na área dos recursos humanos, finanças ou mesmo na parte operacional.

“Mas o Estado também pode decidir vender parte da participação ou a totalidade dessa participação. Pode ainda decidir pela liquidação da empresa”, sustentou tentando desdramatizar o assunto.

No entanto, o anúncio de adjudicação publicado no Jornal Notícias, no passado dia 04 de Março corrente, o IGEPE deixa clara a sua intenção de vender as quatro empresas e que vai pagar 33 milhões de meticais à empresa Intellica com ligações a Celso Correia para “apoio na negociação da venda de participações sociais” em quatro empresas.

Agora o dito pelo não dito é interpretado por alguns sectores como uma tentativa de sacudir a pressão, mas também como um indicador de que o negócio pode ser duvidoso.

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