Machismo e fraca escolaridade contribuem para que mulheres estejam excluídas na governação da terra

SOCIEDADE
  • Terra continua herança dos homens em Moçambique

Apesar da Constituição da República estabelecer a igualdade de direitos entre homem e a mulher e a Lei de terras reconhecer e estimular a posse de terra por parte das mulheres, ainda persistem restrições e descriminação na propriedade e uso da terra em Moçambique. Esta situação deve-se, em grande medida, a práticas costumeiras nocivas, atitudes sociais negativas e fraca escolaridade, que fazem com que as mulheres desconheçam os seus direitos e não participem na governação da terra.

Neila Sitoe

A Política Nacional de Terras define os princípios fundamentais que regem o uso da terra em Moçambique, e no artigo 17° garante o acesso à terra para toda a população moçambicana e prevê o acesso à terra para as comunidades locais, incluindo as mulheres, e no artigo 20°, garante o direito da família de usar e se beneficiar da terra sem discriminação contra mulheres e meninas.

Esses direitos estão também consagrados na Lei de Família e Sucessões (Lei n° 22/19 de 11 de Dezembro e Lei n° 23/11 de 23 de Dezembro), que estabelecem a igualdade entre homens e mulheres e o direito de mulheres e raparigas a herdar de seus pais (ou maridos para o caso de viúvas).

Ainda de acordo com o artigo 12° da Lei de Terras, na alínea a) e alínea c) o direito de uso e aproveitamento de terras adquire-se pela ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, de acordo com as normas e práticas consuetudinárias que não contrariem a Constituição e autorização de pedido apresentado por pessoas singulares ou colectivas na forma legalmente estabelecida.

Mas a Constituição da República, no artigo 34, é mais expressivo ao postular que “todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, perante a lei, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, naturalidade, religião, grau de instrução, posição e estado civil dos pais, profissão ou opinião política”.

Apesar deste quadro normativo que reconhece e estimula a posse de terra por parte de mulheres, as mulheres ainda enfrentam descriminação no acesso à terra e mesmo em contextos matrilineares o acesso à terra é confiado aos homens.

Para Adriano Nuvunga, director do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD), as maiores barreiras no acesso aos direitos à terra para as mulheres, sobretudo rurais, estão relacionadas com a prevalência de práticas costumeiras nas comunidades locais, que desrespeitam os interesses das mulheres, o desafio no acesso à justiça, a violência baseada no género e a fraca escolaridade das mulheres.

“O CDD fez uma consulta no contexto da actual revisão da lei de terras em algumas províncias, principalmente nas zonas rurais, e as mulheres reclamam que não são inclusas na governação da terra e mesmo em contextos matrilineares o acesso à terra é confiado aos homens, nesse caso os tios, irmãos, filhos ou sobrinhos”, explicou.

Mulheres excluídas das consultas públicas na concessão de terra a Mega projectos

Para Nuvunga, desde o início dos mega projectos em Moçambique, a terra é expropriada dos donos e as primeiras vítimas são mulheres, que devido a vários factores não participam na realização das consultas que sempre privilegiam a terra aos homens.

“As mulheres reclamam que desde a implementação da Lei de Terra o que se viu é a governação da terra, e não se olhou para questões evidentes, como as estatísticas que mostram que elas estão em maior número que os homens e há mais mães solteiras a dirigirem famílias, o que devia constituir uma vantagem para que estas tenham acesso à terra, mas quando se trata do acesso à terra, por mais que elas sejam as donas da terra, o registo é feito no nome do filho homem”, afirmou.

O director do CDD explica que esta desigualdade no acesso à terra por parte das mulheres é mais notória nas mulheres adultas e que se encontram no contexto rural, visto que nesses locais sempre há distinção e preferências pelo sexo masculino quando se trata da educação formal. 

“As mulheres mais crescidas são as que mais sofrem as adversidades da governação, no contexto rural, a educação privilegia os meninos e não as meninas, as famílias preferem investir na educação dos meninos, e o acesso à educação determina as possibilidades de participação na governação da terra, visto que o acesso à educação é fundamental na participação do processo de governação da terra”, frisou.

No entender de Nuvunga, as mulheres de hoje são as meninas de ontem que não tiveram acesso à educação, o que faz com que não estejam em condições de defender a sua posse da terra.

“Há falta de clareza sobre o que deve ser revisto na lei de terras, a hora em que se marcam as consultas para a governação da terra não lhe é favorável, porque geralmente  as consultas são marcadas para às 17:00 horas, e a essa hora as mulheres não podem estar com os homens a debater sobre terras porque tem afazeres domésticos como cozinhar e cuidar das crianças”, lamentou.

Mas o drama das mulheres não pára por aí. Mesmo havendo clareza sob o ponto de vista legal, alguns juízes preferem fazer vincar as práticas costumeiras.

“Várias mulheres reclamaram que mesmo quando se trata de conflitos de terras, a entidade que dirime os conflitos na ausência do ordenamento territorial e os tribunais recorrem às pessoas que na posição de poder forçam o acesso a terra, e elas não tem nada se não o seu testemunho, o que as coloca na posição de impunidade e daí reside o centro da violência baseada no género no acesso à governação da terra”.

O homem é titular preferencial da terra  

Por seu turno, Armindo Chaúque, membro da Comissão de Revisão da Política Nacional de Terras, diz que é importante se reconhecer os hábitos e costumes na questão da gestão de terra, visto que no artigo 4°, da actual Constituição moçambicana, se reconhece os vários mecanismos de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, desde que não contrariem os princípios constitucionais.

No entanto, reconhece que apesar da lei estabelecer o papel das instituições tradicionais e consuetudinárias na resolução de disputas, especialmente no nível comunitário, a decisão sempre desfavorece as mulheres.

“Na gestão do uso e aproveitamento da terra, a Constituição diz que reconhece os usos e costumes da sociedade, e em termos práticos os hábitos e costumes que estão em vigor na sociedade dizem que o homem é que é titular preferencial da terra, e em caso da morte do homem, os outros homens vem suceder o uso da terra, e consideram a mulher como mera beneficiária e não titular máximo da terra, e diz que numa família se há dois homens e cinco mulheres, os dois homens é que dirigem o acesso a terra”, explanou.

Quando o direito costumeiro se sobrepõe à Constituição

Chaúque explica que, ainda no artigo 4°, a Constituição diz que em caso de contradição das normas costumeiras à Constituição, o que deve permanecer é o que está plasmado na Constituição, mas infelizmente o grande problema é que as comunidades querem que seja reposto o direito costumeiro, este que é discriminatório.

“Há uma necessidade de se mapear os hábitos e costumes e selecionar aqueles que são válidos e não discriminatórios para serem usados e os que devem ser revogados para entrarem em desuso. E a relação entre os tribunais formais e os tribunais informais na solução de conflitos sobre a terra apresentam grandes problemas, onde o direito legal acha-se superior ao direito costumeiro e julga se aplica ou não uma certa sanção, contradizendo a Constituição”, apelou.

Outra fragilidade apontada por Chaúque é o facto dos tribunais distritais não conhecerem os hábitos e costumes, e quando se trata do acesso a terra, muitas das vezes as mulheres saem em desvantagem porque os tomadores de decisão não conseguem distinguir as boas práticas das nocivas e tóxicas.

“Os Juízes não aprendem nas universidades os direitos costumeiros, aprendem os direitos positivos ou legais e, por conseguinte, julgam segundo o conhecimento que têm e sem sequer aliar aos direitos costumeiros que são benéficos as comunidades, e muitas das vezes as mulheres que são pouco escolarizadas e pouco conhecem dos seus direitos saem lesadas. Há uma necessidade de se empoderar a mulher, principalmente a rural, intensificar os conhecimentos e incluí-la nas consultas sobre a gestão de terra para que ela também seja gestora da terra e obtenha riquezas”, sustenta.

Os posicionamentos foram apresentados, na passada quinta-feira (30 de Junho), durante o acto do lançamento dos manuais sobre Recursos Naturais e Direitos Humanos e o outro sobre os Direitos Costumeiros da Mulher à Terra em Moçambique. Os dois manuais (relatórios) têm por objectivo comum fornecer informação sobre o acesso e aproveitamento de recursos pelas mulheres e vão contribuir para a discussão do mega projecto de Política Nacional, e apresentam metodologias e linguagem simples, para permitir que várias entidades, particularmente as mulheres rurais e organizações da sociedade civil, tenham acesso fácil à informação.  

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