Severino Ngoenha diz que a Frelimo deve abandonar o conceito de regionalismo

POLÍTICA
  • Para evitar que o país seja governado por um “maltrapilho”
  • Em pleno ensaio da vez do Centro, filósofo desafia Frelimo a reinventar-se
  • “Nós temos um Presidente que tem mais poderes que o Luís XIV”
  • “É indispensável a descentralização física dos poderes de Maputo

Moçambique comemora, no próximo dia 04 de Outubro, o 30º aniversário dos Acordos de Paz numa altura em que a luta contra os grupos armados que semeiam luto e terror na zona norte do país parece longe do fim. Falando sobre os constrangimentos e desafios para o futuro da paz em Moçambique, o filósofo Severino Ngoenha referiu que a Frelimo, que se encontra reunida em XII Congresso até Quarta-feira próxima, deve abandonar o conceito de regionalismo para evitar que o país seja governado por maltrapilho, numa altura em que se fala de uma possível deslocação do septo do poder para se cumprir “a vez do Centro”. Por outro, para além de comparar o actual Presidente da República com Luís XIV, Severino Ngoenha instou a sociedade a lutar para diminuir os poderes do Chefe do Estado e defendeu que o país precisa de uma justiça costureira para recozer as relações sociais entre moçambicanos.

Duarte Sitoe

Embora não conste dos estatutos da Frelimo, nos últimos anos, tem se estado a consolidar o factor regional na escolha do líder do partido e consequente candidato para as eleições presidenciais, havendo já quase que um consenso de que o próximo candidato da Frelimo deve vir do Centro do país, naquilo que é conhecido como “a vez do Centro”, depois do Sul com Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza; e agora com a vez do Norte, com Filipe Nyusi, sobrinho do patriarca dos Macondes, Alberto Chipande, a dirigir os destinos do país e do partido.

Severino Ngoenha, que recentemente deu uma verdadeira aula de sapiência aos que marcaram presença no terceiro e último dia da III Conferência Internacional do IESE, defende que a Frelimo deve se reinventar e acabar com o regionalismo e tribalismo para evitar que o país seja governado por “incompetentes”.

Partindo do regionalismo e tribalismo adoptado pela Frelimo, presume-se que o candidato para as eleições gerais agendadas para 2024 seja da zona Centro. Para Severino Ngoenha, os frelimistas deviam anular esse pressuposto porque Moçambique corre o risco de ser governado por um “maltrapilho”.

“Vivemos neste dito e não dito do terceiro mandato. Neste momento, há candidatos que se perfilam em todo Moçambique, esses candidatos não podem ser do Sul, porque o Sul já governou, nem do Norte porque o Norte está a governar, tem de ser alguém do Centro. Fazendo isso nos abdicamos de uma coisa essencial, é que o país deveria ser governado por aqueles que têm condições de levar a cabo, de ponto de vista político, técnico e moral os interesses de uma comunidade. Se não encontramos uma pessoa certa, será um maltrapilho a governar Moçambique”, declarou Ngoenha.

Na sua alocução, Ngoenha instou a sociedade civil a mudar de paradigma, ou seja, lutar para diminuir os poderes do Chefe do Estado. É que, no entender de Ngoenha, Filipe Nyusi tem poderes que se assemelham aos do Nabucodonosor e superam de longe os de Luís XIV.

“Precisamos de instituições fortes, robustas e competentes para evitar todas as trafulhices que cometemos nos últimos 30 anos e que precipitaram conflitos políticos – militares que facilitaram as dívidas ocultas, que facilitam até hoje o que assistimos no Norte de Moçambique. Nós temos um presidente que tem mais poder que Luís XIV. Nomeia reitores, procuradores. Nomeia tudo, é um super-homem. Pensamos que temos que confluir tudo nas mãos de um indivíduo e por quanto ele ser Nabucodonosor não seria de nenhuma maneira garantir justiça e democracia e participação dos seus próprios sujeitos”, disse.

Diminuir os poderes concentrados num só homem

Na ocasião, instou a sociedade civil a lutar pela redução dos poderes do Presidente da República e fortalecer as instituições, com destaque para a Assembleia da República e os órgãos de administração da justiça.

“Nós moçambicanos nos preocupamos em demasia com o Presidente ou com Presidentes. Estamos preocupados em saber quem vai ser o Presidente. Nós temos que mudar a sociedade civil. Como intelectuais e académicos temos que lutar para fortalecer as instituições. Temos que lutar para diminuir o poder de um só homem por quantas qualidades que ele possa ter. A verdadeira batalha que os moçambicanos têm neste momento é a batalha das instituições, precisamos de um parlamento cuja eleição obedeça critérios objectivamente de representatividade e de capacidade de representação, uma justiça que seja verdadeiramente independente”, sustenta.

Nas entrelinhas, Severino Ngoenha aponta, por outro, que para além de fortalecer as instituições, Moçambique precisa de meios de comunicação que pautem por uma luta renhida para conservar o seu espaço de liberdade, não só da política, mas dos interesses económicos, como acontece em muitos países ocidentais.

Prosseguindo, o conceituado académico defendeu a descentralização física dos poderes de Maputo e falou da necessidade do país adoptar uma justiça costureira para evitar futuros conflitos.

“Os poderes moçambicanos estão todos concentrados entre a estátua de Eduardo Mondlane e a avenida Julius Nyerere, não estão em Maputo, num país que é grande e longo. Não há nenhuma razão para que todas instituições estejam fechadas entre a estátua de Eduardo Mondlane e a avenida Julius Nyerere. É indispensável a descentralização física dos poderes de Maputo. Há um elemento indispensável para evitar conflitos no futuro e este elemento chama-se justiça. Precisamos de uma justiça costureira para recozer as relações sociais entre moçambicanos”, aconselhou.

“Moçambique ainda não conseguiu cozer o tecido social devastado pela guerra”

Na sua apresentação, Ngoenha falou do histórico de guerras de Moçambique nos últimos 100 anos e observou que o país saiu apenas vitorioso na guerra contra o colonialismo.

“Os acordos de Roma, celebrados há 30 anos, vinham imediatamente depois de duas guerras que historiograficamente separamos, mas que estão intrinsecamente ligadas, ou seja, a guerra dos 10 e dos 16 anos. A guerra dos 10 anos é a guerra de libertação que nós moçambicanos ganhamos, é a única guerra que do ponto de vista moçambicano podemos considerar, porque era pela liberdade e independência. A segunda guerra, a dos 16 anos, nós perdemos. Ganhamos a primeira, ficamos independentes, mas perdemos a segunda guerra. A Frelimo não ganhou, a Renamo não ganhou e o povo moçambicano não ganhou”, sustenta.

De acordo com Severino Ngoenha, apesar dos 30 anos dos acordos de paz que se assinalam no próximo dia 04 de Outubro, Moçambique ainda não conseguiu cozer o tecido social devastado pela guerra.

“Na guerra dos 16 anos, as instituições moçambicanas foram destruídas e o número de mortos foi incrível. A tribalização do país subiu ao topo, a fragmentação regional ganhou dimensões que não conhecíamos antes. Ainda hoje, na nossa linguagem, continuam a dizer que estamos a reconstruir, não estamos a reconstruir o que foi destruído na guerra dos 10 anos, estamos a construir o que foi destruído na guerra dos 16 anos e ainda não cozemos o tecido social para que os moçambicanos voltem a ser uma comunidade e que se identifiquem, que tenham um futuro e um destino comum”, sustenta.

O conceituado académico entende que ao abrir espaço para a comunidade internacional depois da guerra dos 16 anos, a Frelimo sustentou o crescimento das oposições democráticas, uma vez que depois dos acordos de Roma a Renamo ficou sem espaço e sem apoio da comunidade internacional, o que de certa forma contribuiu para a eclosão de conflitos no centro do país.

“A Frelimo abriu espaço para a comunidade internacional e fechou espaço a oposição interna. Abriu-se mão do ponto de vista social e económico aos interesses da comunidade internacional em detrimento da abertura de portas daquilo que se assinou em Roma, que era a abertura do espaço democrático a nível nacional, esta táctica da Frelimo e está ambiguidade chamada comunidade internacional está na origem da primeira ruptura dos acordos de paz e primeiros conflitos no centro”, revela.

Frelimo colocou o Estado em risco quando começou a caçar votos nas igrejas

Para explicar as razões do conflito na província de Cabo Delgado, Severino lembrou que na primeira República em Moçambique criou-se um Estado Laico, uma vez que havia separação entre a política e a religião. Contudo, observa que quando a nata política apercebeu-se que a maioria dos eleitores vinha das congregações religiosas começou a frequentar as igrejas.

“O que se fazia era a caça daqueles que representavam a capacidade de voto e era a garantia de vitória nas eleições. Enquanto isso, fomos abrindo portas para que o norte de Moçambique, onde as pessoas conviviam de uma maneira equilibrada e pacífica, fosse penetrado por certos radicais que, se aproveitando da falta de guarnição das nossas fronteiras, começaram a pregar e disseminar um radicalismo cujas consequências, em parte, nós tocamos hoje com os dentes”, critica.

Para além do radicalismo islâmico, Ngoenha aponta ambições imperialistas ligadas às grandes corporações e a marginalização social como sendo condições que criaram campo fértil para o terrorismo.

“Este radicalismo não pode explicar tudo, é preciso entender este novo radicalismo com a caça de recursos de uma certa comunidade internacional. Com a marginalização social de uma parte da sociedade que não se viu contemplada no novo liberalismo económico que nós criamos depois dos acordos de paz. Esses ingredientes, juntos numa mistura difícil de explicar, em termos de hierarquia, desorganizaram o tecido social e fragilizaram a nossa moçambicanidade e nos fizeram passar da guerra ideológica do século XX, que a guerra Renamo–Frelimo representava, para uma nova guerra moderna, que é representada pelos conflitos religiosos como assistimos em Cabo Delgado”, sustenta.

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