Luca Bussotti
Em muitos concursos públicos de cunho académico, desde o nível de mestrado até de pós-doutoramento ou de professor, a instituição que lança o edital pede entre uma a três cartas de recomendação. Não é uma regra fixa, mas trata-se de um hábito muito frequente, e quem estiver a concorrer tem de se virar, arranjando as ditas cartas. Sem as quais, geralmente, o candidato fica excluído do concurso.
É interessante ver que na Internet tem sítios – a maioria em língua inglesa – que trabalham no aconselhamento de como apresentar tais cartas: quem contactar, qual a sua função no interior da avaliação do perfil do candidato por parte do júri, como encaixar conteúdos de possível interesse e coerentes com o CV apresentado. Em suma, uma verdadeira “recomendologia” em que especialistas de língua, psicologia, gestão e outros âmbitos disciplinares se debruçam sobre o tema e que por vezes até são pagos como consultores por candidatos à procura de glória.
Em boa verdade, a “recomendologia” é uma arte antiga. Hoje, ela é praticada consoante cânones supostamente científicos, mas ela tem uma história que remonta a um passado bastante longínquo, sobretudo em países latinos e particularmente no meu, na Itália. Cresci mergulhado nessa cultura: por um lado, por ela constituir o cerne principal de acesso ao mercado de emprego, por outro porque na minha família ela foi sempre combatida, de frequente sem sucesso. A recomendação foi, na Itália, um sistema quase que institucionalizado, particularmente praticado pelo partido que governou o país durante mais de quarenta anos, a Democracia Cristã, embora mesmo do outro lado o Partido Comunista atuasse práticas similares. O sistema de poder da Democracia Cristã estava baseado na recomendação: quando a pessoa procurava emprego sempre se apresentava com a famosa “carta” deste ou daquele poderoso homem político local ou nacional, demonstrando a fidelidade à causa (que podia-se resumir no anticomunismo), geralmente dando certo. Não era importante se quem apresentava a candidatura com o acompanhamento da recomendação tinha ou não títulos ou habilidades para ocupar um certo cargo ou função. O que mais interessava era quem recomendava: diante de uma boa recomendação ninguém podia negar, pena a abertura de um conflito pessoal e até político com o redator da carta. Assim é que se criava uma clientela, especialmente utilizável como reserva de votos. E foi assim que o sistema continuou até o início da década de 1990, quando uma investigação da magistratura de Milão varreu todo este sistema político podre, que já não fazia sentido de existir, uma vez que o perigo comunista tinha acabado.
Hoje, com um país em que o voto é extremamente móvel e até volúvel, fora das ideologias esquerdistas ou da direita, a recomendação continua a funcionar. Num recente estudo levado a cabo por institutos especializados, emergiu que os jovens à procura de emprego (pelo menos na Itália) ainda confiam mais na recomendação do que em redes sociais profissionais tipo Linkedin.
Os anglo-saxónicos – mais organizados e sistemáticos do que os italianos – enalteceram este modelo a paradigma científico, mesmo com base em antigos hábitos em que um intelectual dos séculos XVIII-XIX enviava seus alunos a estudar fora, com o acompanhamento de uma carta de recomendação para o colega estrangeiro. Um hábito que na altura, em que as comunicações eram escassas e em que mesmo entre autores renomados muitas vezes reinava uma mútua ignorância científica, podia fazer sentido, mas de que hoje não se percebe a lógica. A “recomendologia” actual é uma praga, mesmo se de tipo supostamente científico. Ela foi difusa consoante o modelo anglo-saxónico que, depois, se tornou regra mesmo em universidades africanas, e até moçambicanas, segundo a colonização do saber e das práticas académicas assumidas acriticamente do Ocidente. Nem me lembro quantas cartas de recomendação assinei para que este ou aquele candidato pudesse concorrer para entrar num mestrado ou num doutoramento desta ou daquela instituição, nacional ou estrangeira.
Existem pelo menos duas razões para que tais cartas sejam abolidas das práticas académicas: a primeira assenta no princípio de exclusão. Segundo tal princípio, passa o candidato que apresenta a carta mais “pesada”. Uma coisa é ter uma carta de um catedrático de renome de uma universidade de renome e de um país de renome, outra é trazer uma carta de um professor meio desconhecido de uma instituição ou de província que nem está classificada no ranking internacional. Assim sendo, independentemente do CV e das habilidades do candidato, passa o mais recomendado, não o melhor. A segunda razão é de que o candidato pode não ter contactos académicos, por diferentes motivos, o que lhe impossibilita a apresentação da famosa carta. Assim sendo, o sistema vai promovendo os recomendados, e não os que merecem.
Mas tem mais: hoje em dia, praticamente todos os que concorrem para cargos académicos têm (ou podem ter) perfis pessoais actualizados em redes como Linkedin, Academia, Research Gate, ou até ORCID, Google Scholar e por aí fora. Além de apresentar o CV para o concurso, portanto, o júri terá todas as possibilidades de avaliar cada candidato com base nas suas experiências profissionais, académicas e produções científicas. O que é que mais queremos para avaliar um candidato? Será que continua necessária a carta de recomendação? Será que ela não vai continuar a promover a rede de clientelas e de amiguismos a nível académico de que, em Moçambique como fora, não temos nenhuma necessidade? Se o único objectivo da academia é promover o saber convinha, a partir de Moçambique, parar com o hábito das cartas de recomendação, olhando muito mais para o candidato do que para quem o recomenda. Seria um bom início para valorizar jovens fora das redes clientelares, mas se calhar com qualidades excelentes e que mereceriam avançar com a carreira académica.
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