Conversas difíceis com a minha filha adolescente

OPINIÃO

Rui Lamarques

Historicamente, a mulher vive num lugar de opressão e, ainda assim, é comum questionarmos ou apelidarmos qualquer reivindicação sobre igualdade de direitos como ideologia de género pelo seu propósito de poder. Há, implicitamente, uma tentativa de olhar para esse propósito de poder emancipatório como algo negativo e anti-natural. Curiosamente, não se visualiza, por conta da cultura falocêntrica, negativamente o sentido comum hegemónico que sempre devotou esse papel subsidiário à mulher.

Vai este intróito para explicar parte dos diálogos que estabeleço, nos últimos dias, com a minha primeira filha, quando ela diz que sente das mulheres – mais velhas sobretudo – que tal é encarado como uma espécie de revolta injusta e irreal que distorce as coisas em função da apropriação dum poder indevido. É complicado, para mim, ter esse tipo de conversas, pois sou pai de meninas e, por isso, sou parte interessada aos olhos de muitos nesse tipo de discussão. Essa acusação tem muitos problemas.

Primeiro, é preciso discutir largamente o que é apropriação de poder indevido, que parte da responsabilidade que se atribui à mulher na perpetuação da espécie, quando se diz que se ela nasceu com ventre para ter filhos e por alguma razão tal sucede. Ou seja, não se pode – defendem muitas vozes – lutar contra a natureza. Engraçado é que a nossa sociedade, que não permite que a mulher seja dona do seu corpo, funda os seus valores no direito romano, cuja sociedade atribuía ao homem o papel de decidir se uma criança poderia viver ou morrer em função das necessidades produtivas da família.

Segundo, qualquer livro de qualquer ramo do saber parte da premissa de que a natureza é mudança permanente. Neste ponto, a minha filha mais velha – do alto dos seus 14 anos – questiona-me como justificar que há questões naturais no papel subsidiário da mulher se a mesma natureza está num permanente estágio de transformação? Entende ela, nas suas palavras de adolescente em permanente estágio de questionamento, que só se pode admitir que há predestinação natural para procriar se colocamos o peso no termo predestinação em prejuízo da questão natural.

Portanto, se falamos de predestinação estamos no campo da metafísica, pois o que a natureza demonstra é que nem sempre fomos assim. Isso que se pretende defender como papel último e definitivo da mulher é um processo aberto de mutações infinitas que não sabemos quando começou e nem sabemos até onde chegará.

Hoje, pelos avanços da ciência, a continuidade da reprodução humana já não depende exclusivamente da relação sexual. Essas formas de reprodução alheias à prática sexual concreta na qual se baseia muito conservadorismo metafísico para arvorar a bandeira segundo a qual a presença da mulher, no mundo, justifica-se somente pela necessidade de procriar, possui muitas fragilidades.

A associação da prática sexual à reprodução da espécie é um elemento a desconstruir se queremos salvar tanto a prática sexual como a reprodução. Falta muito pouco para que a reprodução seja puramente tecnológica. Isso não significa que vamos tocar num botão e que irá automaticamente nascer uma criança.

Diante dessa colocação sobre a reprodução pergunto-me que possibilidades poder-se-iam abrir no dia que ter filhos não dependa do coito e que seja socialmente aprovado pela sociedade? Isso poderia gerar muitíssima liberação sexual, mas também deixaria sem bases a convicção de que as mulheres vieram ao mundo para ser mães como a minha filha questiona.

É um desafio para mim, como pai, abordar questões tão melindrosas. Contudo, que essas questões sejam colocadas já representa um avanço e um sinal de que certas crenças, que restringem o papel da mulher ao acto de procriar para assim perpetua-la como cidadã de segunda, começam a ser discutidas cada vez mais cedo.

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