Corrupção e desastres naturais

OPINIÃO

Luca Bussotti

Ao longo dos últimos dias temos assistido a pelo menos dois eventos desastrosos de proporções consideráveis. Incomparáveis entre eles, devido a sua gravidade e ao número muito diferente de vítimas, os dois eventos extremos partilham características comuns. Os eventos a que me refiro são, por um lado, o terrível terramoto que destruiu boa parte da Turquia e da Síria e, por outro, as cheias que inundaram uma larga porção do Sul de Moçambique, inclusive a capital, Maputo.

Na sua diversidade, os dois eventos climáticos extremos oferecem chaves de leitura que vão dá comoção humanitária para as vítimas inocentes até o castigo divino, como sempre incompreensível, desde a falta de melhores condições habitacionais até um ordenamento territorial e habitações que deviam ser de melhor qualidade e mais regulamentadas por parte das autoridades, finalmente em focar a atenção nos primeiros socorros.

Todas interpretações legítimas, algumas das quais terão de ser investigadas do ponto de vista técnico, sugerindo melhorias necessárias quer no caso do terramoto sírio-turco, quer no que diz respeito às inundações em Moçambique.

Entretanto, existe mais um elemento comum que a discussão desses dias não está a destacar: os três países envolvidos nestas tragédias climáticas são todos eles altamente corruptos. Ora, a natureza não olha muito para este aspecto, quando, de forma imponderável, decide de jogar a sua força contra este ou aquele território; porém, o facto de haver altos índices de corrupção representa ao mesmo tempo uma causa e uma consequência não tanto do evento em si – salvo as mencionadas leituras escatológicas -, quanto dos rastos de mortes e destruições que tais eventos deixam.

Este dado, em Moçambique, parece não ter uma grande consideração, mas estudos consolidados explicam muito bem qual seria a relação entre corrupção e gestão de eventos naturais extremos.

Por exemplo, o Presidente do Council of Europe’s Group of States against Corruption (GRECO), Martin Mrčela, em várias circunstâncias tem alertado para que os desastres naturais e sua gestão não se transformem em oportunidades de enriquecimento ilícito de quem, pelo contrário, deveria prestar ajuda humanitária. Em tais casos países mediamente pobres – como Moçambique – costumam receber imensos valores para dar assistência imediata, assim como para reconstruir quanto a natureza tem destruído. Entretanto, o cocktail formado por fluxo exógeno de dinheiro, centralização do poder, escassa transparência do accountability e restrições dos direitos humanos das próprias vítimas – ameaçadas em denunciar comportamentos fora da lei -, constituem os elementos que fazem dos desastres naturais uma oportunidade ímpar de práticas corruptivas em larga escala.

Em Moçambique não faltam exemplos, mesmo recentes: em Cabo Delgado – cuja tragédia não foi causada pela natureza, mas que originou centenas de milhares de refugiados – tais práticas parecem presentes, segundo relata um investigador de grande experiência como João Mosca. O que – segundo ele – está a acontecer no terreno é de que as ONG devem entregar toda a ajuda humanitária ao exército e às autoridades locais, faltando, portanto, qualquer controlo na distribuição de alimentos e outros gêneros de primeira necessidade. E a falta de controlo é o primeiro requisito para o arbítrio …

O Presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, Prof. Bitone, está a investigar sobre esquemas que envolveriam os refugiados, numa lógica de “comida em troca de sexo”, denunciando assim outra forma de corrupção e abuso de poder.

No caso do ciclone Idai, que tocou as províncias de Sofala e Inhambane, entre outras, o projecto relativo a construção de um sistema de Irrigação para a Segurança Alimentar e Nutricional nas Zonas Semi-Áridas na Província de Inhambane e Sofala (PISAN) – segundo reportado pelo jornal “Evidencias” – deixou de ser financiado pela Cooperação Austríaca – na quantia de 10 milhões de euros – devido a claros indícios de corrupção.

Em suma, as oportunidades de corrupção e desvio de fundos de um país que está a enveredar pela via do autoritarismo e da restrição das liberdades fundamentais como Moçambique, são extremamente elevadas e dificilmente controláveis. No caso das recentes cheias, além da ajuda humanitária imediata, obras deverão ser feitas ou até refeitas, como a ponte que desabou em Boane, deixando milhares de famílias isoladas e sem as mínimas condições de viver, e como um sistema de escoamento das águas que terá de ser mais eficiente do actual, cujos resultados são evidentes a todos. Quem terá de controlar a qualidade dessas obras, para que pontes deixem de cair e a água deixe de entrar nas casas dos Moçambicanos, tornando-as verdadeiras piscinas, é uma partida importante que será jogada, como sempre, entre o governo e os doadores internacionais. Outros actores, como por exemplo a sociedade civil e as comunidades locais, serão deixados de fora. O contrário podia contribuir para limitar as práticas corruptivas que um tal mecanismo tem abundantemente demonstrado não apenas de não conseguir evitar, mas até de alimentar.

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