A pirâmide invertida da política africana

OPINIÃO

Luca Bussotti

O bispo nigeriano de Sokoto, dom Matthew Hassan Kukah, veio ao público lançar novas provocações em volta da política africana. Não é a primeira vez que isso acontece, como bem sabem os governantes nigerianos, assim como muitos observadores da política africana no seu todo. No passado, ele tinha focado a sua reflexão no dever que uma instituição como a Igreja Católica tem de exercer acerca da vida política do continente, sublinhando como esta instituição tenha de se manter “implacável” diante de quem exerce cargos públicos. Os pressupostos das análises de dom Kukah costumam assentar no facto de a política africana ser “tentadora e fragmentada” (como declarou ano passado num encontro virtual sobre igreja e política em África) e, por isso, ter como seus pilares interesses particulares, familiares ou étnicos. Tal política poderá ser menos “cancerosa” se os seus protagonistas se mantiverem firmes na sua condução ética, com base na transparência e na responsabilidade.

Dom Kukah partilha a ideia de “necropolítica” cunhada por Achille Mbembe, em 2003, inspirando-se ao “biopoder” de Michel Foucault para designar a característica essencial da política africana. Trata-se de uma política que tem poder decisivo em determinar, directa ou indirectamente, as vidas das pessoas, entrando num domínio que não devia lhe competir. Em África, a política tornou-se necropolítica há muito tempo: ela foi assim na altura do colonialismo europeu, reproduzindo mecanismos similares com os estados africanos independentes. Hoje, regimes ditatoriais, autoritários e despóticos, altamente corruptos e incapazes de promover o interesse geral constituem a normalidade da política africana. Segundo classificações internacionais, apenas um punhado de estados africanos (5-6 no total) é que pode ser considerado de democrático, ao passo que, em termos éticos, um país africano detém o não invejável recorde de país mais corrupto do mundo (Sudão do Sul), sendo que, entre os primeiros 10, 4 são africanos. Moçambique – segundo dados da Transparência Internacional – estaria no lugar nr. 32 entre os países mais corruptos do mundo. O problema, porém, não é apenas a corrupção. Juntamente com ela e em razão dela os países mais corruptos são os que mais violam os direitos humanos. E trata-se, mais uma vez, de países africanos, na sua maioria. No último reporte do FairPlanet, os países apontados como tendo um incremento mais consistente da violação dos direitos humanos são Moçambique (em razão da guerra em Cabo Delgado) e Ruanda (por causa do restringimento da esfera pública e civil por parte de Kagame e do seu regime). Outros países africanos em que a situação dos direitos humanos está registando um pioramento assinalável são Burundi, E-Swatini e Zimbabué (link in: https://www.fairplanet.org/story/human-rights-violations-soar-across-africa-report-finds/).

Em suma, a política africana tem entrado numa descida em termos de qualidade da sua democracia, ética pública e respeito para os direitos humanos de que não se vislumbra o fim. A este propósito, mais uma vez, Dom Kukah procurou dar uma explicação desta terrível situação. Numa sua recente provocação, apontou a atenção aos mecanismos perversos que criaram uma pirâmide invertida no relacionamento entre educação e estrutura social e política do continente. Segundo ele, os melhores estudantes africanos se tornam engenheiros e médicos, os medianos se projectam para uma carreira de negócios ou jurídica, ao passo que os medíocres acabam entrando na política, mandando nas duas categorias anteriores de profissionais. Entretanto, existe um último grupo que acaba prendendo os primeiros três: os estudantes completamente falhados. Com efeito, eles vão se tornando criminosos, passando a controlar políticos e empresários, subvertendo por completo a pirâmides do mérito escolar e académico, e criando uma sociedade invertida e pervertida.

As afirmações do importante representante da igreja católica nigeriana devem ser classificadas como provocações; porém, a análise que ele faz merece algumas palavras a mais: acima de tudo, a nível continental assim como moçambicano, a modalidade para fazer carreira na sociedade e acumular riquezas não passa, geralmente, pelo sucesso escolar. Em alguns casos, uma boa educação pode servir para ascender parcialmente na hierarquia social, tão que filhos de camponeses ou de serventes podem se tornar professores ou profissionais de respeito, melhorando consideravelmente a vida própria e dos seus familiares. Entretanto, dificilmente a via da educação garante uma ascensão completa a nível socioeconómico. Olhando para as figuras mais ricas do continente, por exemplo, não é difícil ver que elas são empresárias cuja formação académica, geralmente, não é muito sólida. Pessoas de enorme sucesso como Aliko Dangote (nigeriano, o homem mais rico do continente, com mais de 12 mil milhões de dólares de capital estimado), Nassef Swairis (Egipto, um dos proprietários da Adidas), ou Nicky Oppenheimer (África do Sul, herdeiro da empresa de diamantes De Beers) demonstram isso. Mas a situação está ainda mais clara em outros países com um capitalismo endógeno incipiente, ou pelo menos com uma economia menos propensa a favorecer os negócios de privados não necessariamente ligados ao poder político. Em Angola, durante muito tempo, a família Dos Santos foi a mais rica do país, com Isabel sendo a mulher mais rica do continente; em Moçambique Valentina Guebuza – brutalmente assassinada em 2016 – tinha chegado, em 2013, a ser a sétima mulher mais rica da África. Na Guiné Equatorial o eterno Obiang (riqueza estimada em 600 milhões de dólares) aproveitou a sua ditadura política para se tornar o homem mais rico do país. Estes três exemplos são suficientes para demonstrar como, no continente africano, o poderio económico vai, em muitos casos, em paralelo com a inserção política, desconsiderando o tipo de educação e as competências profissionais dos interessados.

Se os processos formativos em África continuam, em muitos casos, ainda incertos e susceptíveis de melhorias, o que mais fere é a forma como se dá a composição social e económica do continente que aparenta ser completamente desligada dos percursos académicos. Assim, como tem recordado Dom Kukah, quem na verdade manda e acumula riquezas em muitos dos países africanos não são pessoas capazes e com formação sólida, mas sim indivíduos academicamente fracos e, na maioria dos casos, ligados a famílias políticas, étnicas ou até criminosas, assim determinando o presente e o futuro necropolítico da África.

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