Sobreviver aos ataques terroristas para morrer de fome em Pemba

DESTAQUE SOCIEDADE
  • O drama dos deslocados das novas vagas de ataques no Sul e Centro de Cabo Delgado
  • Deslocados de Ancuabe, Meluco e Nacuta queixam-se de total abandono
  • INGD reconhece falta de capacidade e que há quem não está a receber nada

“Não temos nenhuma assistência, há mais de seis meses, aqui passo fome e várias necessidades, mas não quero nunca voltar para minha aldeia”. Esse é o relato da pequena Nelita Almeida, adolescente de 12 anos, que carrega na alma o trauma de uma guerra que dura mais de cinco anos. Inserida numa estatística de cerca de 34 mil crianças deslocadas num único mês, um recorde apontado na altura pela Save the Children, chegou à cidade Pemba fugindo dos ataques de Nandule, distrito de Ancuabe, em Junho de 2022, com os pés completamente inchados, desidratada e doente, mas apesar da idade teve de fazer a difícil escolha entre morrer nas mãos dos terroristas ou morrer a fome na zona de acolhimento, onde vive na casa dos avós, sem nenhuma assistência do Governo e nem das organizações humanitárias há mais de oito meses.

Reginaldo Tchambule

Tal como Nelita, centenas de deslocados das últimas vagas dos ataques nos distritos a Sul e Centro de Cabo Delgado, sobretudo mulheres e crianças, vivem em situação degradante nas casas de familiares nalguns bairros da cidade de Pemba e nos centros de acolhimento como em Metuge e Ancuabe. Enquanto isso, os deslocados idos do distrito de Meluco estão prestes a completar um ano sem nenhuma assistência e acusam o Instituto Nacional de Gestão e Redução de Risco de Desastres (INGD) de os ter abandonado à sua sorte.

O Governo, através do INGD, reconhece falta de capacidade devido a indisponibilidade de fundos, enquanto as organizações humanitárias encabeçadas pelo Programa Mundial de Alimentação (PMA) enfrentam limitações para continuar a prover assistência.

Por conta da situação, os cheques (vouchers) de 3600 meticais que antes eram distribuídos pelas famílias deslocadas a cada 30 dias, hoje estão intervalados por um período de 60 dias ou mais, havendo relatos de períodos em que os deslocados permaneceram mais de três meses sem receber nenhuma ajuda.

Enquanto isso, as vítimas dos últimos ataques, sobretudo as que encontraram abrigo seguro em casas de familiares na cidade de Pemba, até hoje, volvidos mais de oito meses, ainda não foram sequer registadas para beneficiarem de ajuda e, até Novembro último, dezenas de crianças em idade escolar não haviam sido reintegradas nas escolas locais e deambulavam pelas ruas, vendendo pequenos produtos para ajudar aos pais a sobreviver em meio ao abandono do Governo.

“Estamos abandonados a nossa própria sorte. Aqui a vida não é fácil. Comemos duas vezes por dia. De manhã, comemos papa e no fim do dia mandioca ou arroz com peixe”, testemunha Yassima Jaha, uma deslocada dos ataques de Ancuabe, a 04 de Junho de 2022, que está acolhida em Mahate, arredores de Pemba, numa casa com outros 42 deslocados idos de vários distritos de Cabo Delgado, entre adultos, jovens e crianças.

Ao Evidências, Yassima, que quando chegamos estava a pilar mandioca seca para preparar uma farinha com a qual iriam jantar naquele dia, contou que alimentar mais de 43 bocas é uma grande maratona.

Fugiu de Nandule, depois que homens desconhecidos invadiram a aldeia e incendiaram todas as casas. Junto com dezenas de pessoas da sua aldeia, caminhou mais de 40 quilómetros até chegar a Ancuabe sede, de onde apanhou um carro para Pemba na esperança de uma vida melhor, mas descobriu que apenas tinha conseguido fugir dos insurgentes, pois pela frente tinha de enfrentar o drama da fome.

“Neste momento, somente os homens se arriscam ir a nossa aldeia para buscarem comida e voltar, mas sinceramente, penso todos os dias em voltar para a minha casa porque aqui, para além de sermos muitos, estamos a passar fome. Nós que chegamos agora não estamos a ter nenhuma assistência do Governo. Sobrevivemos da solidariedade de outras famílias que partilham o pouco que ganham”, relata.

Relato de quem nunca recebeu um grão de ajuda sequer

Justino Gabriel fugiu dos ataques em Ancuabe, em Outubro, quando os terroristas estiveram a dois quilómetros da vila sede. Visivelmente abatido, com o crânio quase a se deixar esculpir sobre uma pele que espelha marcas de sofrimento, conta que fugiu para a incerteza junto com sua esposa e dois filhos menores.

Chegados a Pemba, procuraram informações sobre o Centro Transitório para poderem se alistar, acomodarem-se e encontrarem melhor encaminhamento, mas foi tarefa inglória. O Centro Transitário foi desactivado pelo Governo e nenhuma autoridade neste momento presta qualquer assistência à chegada para os deslocados.

Teve a sorte de ser acolhido por uma família de idosos, no bairro Marringuanhe, onde partilha com a família um pequeno e apertado quarto. Para ajudar nas despesas da casa de acolhimento, Justino Gabriel faz pequenos biscates e seu maior sonho é voltar a sua casa, mas o receio de mais ataques o tornou refém de um futuro incerto na capital.

“Quando chegamos, apresentamo-nos às autoridades, mas nunca recebemos nenhuma ajuda e para sobreviver tenho que fazer pequenos biscates. Mesmo assim a vida não é fácil. Há dias que só comemos papa e dormimos”, frisou Justino, que diz ter deixado para trás a sua casa, sua pequena criação e alimentos tanto nas machambas, assim como nos celeiros.

Gracinda Pedro fugiu da aldeia de Pulo, no interior de Metuge, em Setembro passado, após um ataque terrorista. Com um olhar de desconfiança e de poucas palavras, encontramo-la a preparar uns bolinhos na companhia de uma bebé, tendo relatado as carências em que vive desde aquele fatídico dia em que os terroristas invadiram a aldeia e decapitaram três pessoas, tendo depois raptado uma mulher.

Hoje, deslocada e desamparada pelo Governo, dorme com seu marido, quatro filhos e outros três casais em condições deploráveis numa capoeira acondicionada para acolhe-los no quintal de familiares. No mesmo quintal há mais dois abrigos de tendas improvisadas que acolhem outras famílias deslocadas.

“Ninguém veio sequer registar-nos para beneficiar de qualquer tipo de ajuda. Fomos apresentados ao Chefe de Quarteirão, mas este diz que ainda não se estão a registar os novos deslocados, porque ainda não receberam ordens para o efeito”, relata, descrevendo que quando amanhece, o marido sai à procura de biscates, enquanto os seus filhos menores saem para o mercado para vender bolinhos, uma vez que nem sequer conseguiram vaga para continuar os estudos.

 “O ‘cheque’ de 3600 meticais do PMA não dura sequer uma semana”

Iquima Jaha é irmã da nossa primeira interlocutora, que chegou a Pemba em 2018, ida de Mocímboa da Praia, hoje partilha a experiência de como viver apertada e com pouco ao lado de outras famílias deslocadas recém-chegadas. Apesar de viverem num agregado de 43 pessoas, apenas uma das seis famílias que partilha a mesma casa é que recebe ajuda, por via de uma senha mensal do Programa Mundial de Alimentação, no valor de 3600 meticais, que, não obstante, por vezes atrasa mais de dois meses (sem retroactivos), é insignificante para alimentar 43 bocas.

Conta que as famílias deslocadas de Nandule, Pulo e outros pontos recentemente atacados, até hoje não receberam nenhuma ajuda, a excepção de uma cesta básica oferecida pelo Governador, nos primeiros dias. Mas depois disso não só não viram mais o rosto do dirigente, como também não receberam outra ajuda, estando hoje votadas à sua própria sorte.

“Aqui conseguimos só ter duas refeições por dia. Somente eu é que recebo o cheque de 3600 meticais do PMA que não dura nem sequer uma semana, tendo em conta o número de pessoas. Pedimos que o Governo nos ajude em comida e tendas”, apelou, apontando uma capoeira que serve de abrigo para os deslocados.

As marcas de terror nas crianças

Dados da Organização Internacional das Migrações (OIM) revelam que, até Novembro de 2022, havia um total de 1.028.743 deslocados internos e 352.437 repatriados em 238 localidades no Norte do País, um número que conheceu incremento desde Abril de 2022, altura em que os insurgentes intensificaram ataques em distritos nunca antes atacados como Ancuabe, Metuge, Balama, Mecufe, Chiure e Namuno. Só para se ter uma ideia do incremento do número de deslocados, em Novembro de 2021, o País tinha somente 735.000 pessoas deslocadas internamente.

Infelizmente as crianças representam mais de metade das pessoas deslocadas, enquanto mais da metade das pessoas deslocadas são mulheres e meninas. Só em Junho, altura em que foi registada a maior vaga de ataques em Junho de 2022, registou-se mais de 34 mil crianças deslocadas, o que representa um recorde, ou seja, o maior número de sempre de petizes deslocados num único mês, desde o início do terrorismo em Cabo Delgado, em Outubro de 2017

Nessas estatísticas está também Nelita Almeida, de apenas 12 anos de idade, que tem o sonho de ser enfermeira, mas viu recentemente a sua vida por um fio, no ataque de 04 de Junho em Nandule, no interior do distrito de Ancuabe. Embora nova, conhece como ninguém, o drama de percorrer uma longa distância para fugir de terroristas.

“Naquele dia vivemos um terror. Os terroristas quando chegaram capturaram pessoas e começaram a torturá-las. Mataram duas pessoas, ambos funcionários de uma Fazenda do General Chipande. Um morreu decapitado e outro carbonizado, pois trancaram a porta e incendiaram a casa em que estava”, relata.

Apavorados, conta que fugiu de Nandule com a mãe e outros aldeões para a aldeia de Ntele, num percurso a pé por alguns atalhos dentro da densa floresta do Parque Nacional das das Quirimbas. Já em Ntele, onde a menina chegou com os pés já inchados depois de caminhar dia e noite, porque não tinham recursos tiveram que telefonar para familiares para enviarem dinheiro.

“Caminhamos cerca de 60 quilómetros a pé pelas matas dentro da floresta, com diversas paragens para assistir os doentes, crianças e idosos, o que fez com que a viagem durasse dois dias”, relata.

Tímida e com os traumas ainda frescos, jura de pés juntos que não volta a colocar os pés em Nandule, sua terra natal para não reviver o terror daquele dia em que viu um homem a ser decapitado e outro a perecer trancado numa casa em chamas, enquanto os residentes do seu povoado gritavam e corriam tentando salvar as suas vidas.

“Coisas que vivi naquele dia e nos dias seguintes são desumanas. Não quero nunca mais voltar para minha aldeia. Passamos muito terror. Cheguei a Pemba com os pés completamente inchados, desidratada e doente”, descreve.

Foi graças ao apoio da família que conseguiram apanhar um transporte com destino a Ancuabe sede e de lá para Pemba, onde hoje se encontra a viver aos cuidados dos avós maternos.

Está no famoso bairro Mahate A, nos arredores da capital de Cabo Delgado. A mãe com quem vivia e fugiu de Nandule, viu-se encurralada pela difícil vida sem nenhuma assistência na capital e preferiu voltar para Ancuabe, estado a viver no centro de reassentamento de Nanjua, de onde de quando em vez tem ido espreitar a sua casa e machambas em Nandule.

A fazer 7ª classe este ano, Nelita teve sorte diferente das outras crianças deslocadas. Os avós, conseguiram subornar um professor para poderem matriculá-la ao meio do ano.

“Primeiro foi difícil. Houve uma inscrição através das estruturas do bairro, de todas as crianças em idade escolar, mas depois desapareceram. Vendo o tempo passar, os meus avós falaram com um professor que acabou conseguindo a vaga”, relata a menor, com um olhar tenro.

Ataques nas zonas de machambas agravam fome em Pemba

Zaina Ali, avó da pequena Nelita, embora resida em Pemba, é também vítima do terrorismo. Perdeu uma colheita inteira, após abandonar uma plantação de arroz, numa machamba em Nacuta, distrito de Metuge, a cerca de 60 quilómetros de Pemba. A machamba está agora tomada pela mata e o arroz cuja colheita estava prevista para Dezembro, para alimentar a sua família e o excedente servir para o comércio, virou alimentação de pássaros.

A região de Nacuta é famosa pelo seu potencial produtivo e com cada vez menos terras na capital, muitas famílias em Pemba, mantinham lá suas machambas, onde chegadas as temporadas de cultivo, sementeira e colheita, os camponeses montavam pequenos acampamentos temporários e depois regressavam às suas origens. Mas todos deixaram de ir, por medo de novos ataques, depois que os terroristas decapitaram pessoas nas machambas.

“Este ano vamos sofrer de fome. Perdemos tudo e ficamos sem nenhuma esperança. Desde que decapitaram pessoas nas nossas machambas nunca mais tivemos coragem de lá voltar e toda produção que estava prevista está totalmente perdida”, relatou Zaina, adiantando que o stress provocado pela situação, agravou o estado de saúde do seu marido, que agora está com dificuldades motoras.

O Governo tem estado a apelar aos deslocados que fogem da nova vaga de ataques para não se moverem a Pemba, mas sim aos centros de acolhimentos criados em cada uma das províncias, como estratégia para melhor gestão dos esforços humanitário.

Em Ancuabe, por exemplo, o governo abriu, entre outros, o centro de Nanona, onde também há relatos de fome, pois, até Novembro passado só haviam recebido ajuda uma única vez, o que fez com que muitos fugissem para casas dos familiares em Pemba e noutros cantos da província.

Angelino Lade, adjunto chefe de Mahate B confirma que os novos deslocados acolhidos nas famílias do bairro não estão a receber nenhuma assistência.

“Primeiro recebemos os deslocados de Metoro, que depois voltaram. Passado algum tempo vieram muitos outros de Nadule e outros sítios que nunca foram assistência. Estão a viver um grande sofrimento. Nós aqui estamos a lutar para que eles sejam contemplados. O grupo de Meluco chegou a Pemba no início do ano (Fevereiro e Março de 2022), mas até hoje não foram beneficiados, apesar de terem sido inscritos. Os de Ancuabe nem sequer permitiram que lhes inscrevêssemos”, protestou.

PMA já está com limitações de assistência aos deslocados

Enquanto a nossa reportagem acompanhou uma jornada de distribuição de alimentos em Pemba por parte do Programa Mundial de Alimentação (PMA), que lidera acções de assistência em Cabo Delgado, mas também enfrenta limitações nos últimos meses, fazendo com que por vezes os deslocados fiquem meses sem receber as senhas de alimentação.

Aliás, quando a nossa equipa escalou Pemba, os deslocados já contavam com dois meses sem nenhuma ajuda. A intermitência na canalização da ajuda fez Anita Carlitos e sua família composta por nove membros passarem fome.

“Nos últimos meses tem sido difícil, pois para além de alguns meses não recebermos ajuda, quando chega os preços são muito altos. Com 3600 só conseguimos levar um saco de arroz, farinha de milho, óleo e termina por aí”, protesta Anita.

Evidências contactou, entre Novembro de 2022 e Janeiro do corrente ano, os escritórios do Programa Mundial de Alimentação em Pemba, com vista a obter informações sobre as razões da intermitência na alocação das senhas de alimentação aos deslocados, bem como a razão de não se estar a prestar nenhuma assistências aos deslocados vítimas de novas vagas de ataques mas foi debalde. As nossas solicitações nunca foram atendidas.

Mas, recentemente, à margem da visita da embaixadora americana junto das Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield, a Maputo, a directora nacional e representante em Moçambique, Antonella D’Aprile confrontada pelo Evidências assumiu a incapacidade da instituição em prover assistência aos deslocados, anunciando que só tinha víveres para até o final de Janeiro passado.

Dito e feito, neste momento, segundo apurou o Evidências, está interrompida a ajuda aos deslocados em Cabo Delgado e o PMA já se encontra a mobilizar pouco mais de 102.5 milhões de dólares para suprir as necessidades de assistência alimentar e humanitária.

INGD nega que tenha abandonado os deslocados mas reconhece limitações

Durante o trabalho do campo em Pemba e Metuge, foi notória a total ausência do braço humanitário do Governo, o INGD na assistência não só aos centros de reassentamento, como também às famílias deslocadas acolhidas em Pemba e noutros pontos do país.,

Questionada sobre a aparente ausência do INGD no terreno, chegando a haver deslocados que sequer conhecem o nome da instituição, a porta-voz do INGD, Nelma de Araújo diz que o INGD nunca deixou de assistir as vítimas, o que acontece é que está mais centrado no papel de coordenação.

“A assistência é a mesma. Infelizmente muitas vezes as pessoas ficam a pensar que o PMA faz uma assistência e o Governo faz outra, mas não. As pessoas dizem que o INGD não assiste os deslocados, porque só vêem o PMA, mas a assistência é a mesma”, defendeu Nelma, assegurando que os deslocados constam do plano de continência em vigor.

No entanto, reconhece a escassez de bens alimentares e outros insumos para assistir os deslocados das novas vagas de ataques.

 “Para quando está prevista a assistência, infelizmente não posso adiantar. O que condiciona a assistência são os recursos existentes. Neste momento o INGD tem capacidade para assistir cerca 300 mil pessoas e o PMA e outros parceiros um pouco mais”, frisou.

Sobre o encerramento do Centro de Trânsito de Pemba, Nelma de Araújo diz que deveu-se ao facto dos deslocados, na sua maioria, preferirem ficar em casa de familiares e durante as novas vagas de ataques o INGD não se ter visto necessidade de reabri-lo.

Na nossa deslocação ao centro de acolhimento 25 de Junho, em Metuge, os deslocados queixavam-se da degradação das tendas que já deviam ter sido substituídas há cerca de um ano. Respondendo a esta inquietação, a porta-voz do INGD reconheceu a situação e apelou aos deslocados a apoiarem na reconstrução das suas casas, para não viverem eternamente em tendas.

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