Luca Bussotti
Ao longo das últimas semanas, mas também dos últimos anos, assistiu-se a uma aceleração no processo de liquefação da esquerda mundial. Realço logo que esta palavra e conceito, “esquerda”, evoca fantasmas sinistros, assim como práticas democráticas e de boa governação. Os fantasmas são os que estão relacionados com experiências de governos totalitários, o da antiga URSS acima de tudo, mas também de outros países do ex-bloco soviético na Europa do Leste, da China, da Coreia do Norte, entre outros. A boa governação é daquela esquerda democrática que, a partir da social-democracia alemã e dos países nórdicos da Europa, deu provas inconfutáveis de que é possível governar países modernos e complexos sem recorrer ao mercado como única ideologia e regra de convivência entre os homens. Dito entre parenteses, o mesmo vale a direita: fascismo e nazismo representam os piores pesadelos da humanidade, ao passo que figuras políticas da direita liberal, tais como Chirac na França, Tatcher no Reino Unido, Angela Merkel na Alemanha comprovaram que também é possível gerir bem um país partindo de um posicionamento contrário aos princípios da esquerda democrática.
Historicamente, estas duas famílias políticas conseguiram fazer com que o mundo avançasse, quer do ponto de vista económico, assim como da dialética democrática: com efeito, é normal, no mundo ocidental, ver a alternância de uma direita liberal e de uma esquerda democrática na liderança de uma nação, sempre respeitando a vontade dos eleitores e sempre tendo como bússola o voto da maioria.
Na semana passada, em dois países importantes da União Europeia, Itália e Espanha, duas eleições locais assinalaram a crise da esquerda democrática: na Itália – onde tradicionalmente a esquerda é mais forte do que a direita nas eleições municipais e locais no geral – foram pouquíssimos os municípios conquistados pela esquerda, ao passo que a direita conseguiu sucessos mesmo em cidades históricas para a esquerda, tais como Ancona, voltando a ganhar também em Pisa e Siena, na vermelha Toscana. Na Espanha o cenário foi tão devastador, para a esquerda, que o primeiro-ministro, Sánches, resolveu dissolver o seu próprio governo, pedindo eleições antecipadas.
Depois dos anos Noventa, quando a esquerda da “terceira via” com Blair, Clinton, Prodi e outras figuras similares impulsionou reformas sociais significativas, mas também a fragmentação do mercado do emprego, abrindo as portas à precariedade actual, a direita começou a ter a hegemonia política, e em parte cultural. A esquerda deixou de interpretar os anseios daquelas classes menos abastadas que historicamente ela tinha representado, esquecendo que na sociedade contemporânea ainda existem injustiças com base na classe e na pertença étnica ou racial (principalmente em países como Brasil), e concentrando a sua atenção em questões certamente relevantes (direitos das minorias, por exemplo), mas eleitoralmente pouco significativas.
Com excepções (países como Portugal e Alemanha, ou a própria Espanha estão sendo governados hoje pelas esquerdas), a direita ganhou terreno, misturando a sua inspiração liberal e moderada com a mais radical, de raíz neo-fascista, tão presente actualmente não apenas na França com a família Le Pen, mas também na Itália (a primeira ministra, Meloni, é filha da cultura da extrema direita), na Espanha com Vox e um pouco em todos os países do Centro e Norte da Europa, onde partidos de clara inspiração neo-nazista estão cada vez mais fortes e populares.
No Brasil foi necessário o retorno de Lula para que a esquerda conseguisse derrotar – por um punhado de votos – um governo liderado por Bolsonaro que tinha dado provas bastantes de incompetência em todos os sectores da vida pública, desde a gestão da pandemia a educação, desde a saúde pública ao meio ambiente, para não falar da política externa, de facto ausente. Entretanto, quando se passa no continente africano, a situação fica ainda mais complicada: aqui, a esquerda não se dissolveu em razão da vitória de partidos da direita (o que, em algumas circunstâncias, aconteceu, como em Cabo Verde), mas sim porque os partidos que em linha teórica deveriam pertencer à frente da esquerda democrática acabaram se posicionando mais a direita dos seus próprios adversários. O caso de Moçambique, assim como de Angola, é sintomático deste ponto de vista: a Frelimo perdeu qualquer referência ética, ideal e programática à esquerda. Os serviços públicos básicos versam todos eles em condições lastimáveis, a pobreza representa, hoje, uma culpa e não uma condição da maioria da população a que o Estado deveria pôr remédio com eficazes políticas sociais e do emprego; e finalmente, a mentalidade comum, a partir das classes dirigentes, esqueceu-se completamente dos princípios da solidariedade e da ajuda mútua, desaguando numa luta sem quartel para o enriquecimento individual – pouco interessa se lícito ou ilícito -, em detrimento da maioria da população. Moçambique, hoje, é um dos países africanos com o mais elevado coeficiente de Gini (que mede o fosso entre ricos e pobres), tendo sido governado desde a sua independência por um partido que se diz pertencer à esquerda mundial. Ainda pior quando se fala de nível de democracia e de liberdade de expressão: não precisa dar exemplos concretos, pois a realidade – pontualmente registada por entidades internacionais, tais como Freedom House ou a Economic Intelligence Unit – oferece diariamente casos de violação de direitos humanos fundamentais, que a esquerda deveria combater e proteger, e não promover.
Este “auto-da-fé” da esquerda africana (o ANC na África do Sul, por exemplo, está a empreender o mesmo caminho) levanta um problema muito sério, e até hoje não resolvido: se é verdade que, na política africana muitas vezes os factores que compõem o “político” são diferentes comparando com os que se encontram no Ocidente (a partir das categorias de direita/esquerda), a questão é quem é que, em África, e em Moçambique de forma especial, desempenha o papel da esquerda, ou seja, quem tutela as classes mais desfavorecidas. Neste vazio político, ético e democrático a crise da esquerda corresponde à crise da democracia, e consequentemente da representação das classes mais populares: com efeito, se é essencial termos uma esquerda democrática forte e capaz de competir com uma direita liberal, cada vez mais assediada por uma extrema e radical, a sua ausência assinala (ver o caso de Moçambique) uma realidade em que milhões de pessoas já não estão sendo representadas, e por isso resolvem se abster dos processos eleitorais, de tanto inúteis que eles são, ou que assim são julgados pela resignada maioria dos cidadãos.
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