Golpe no Niger, golpes em África e nova geopolítica internacional

OPINIÃO

Luca Bussotti

Há poucos dias saiu, numa conceituada revista internacional, “Frontiers in Political Science”, um dossier que organzei juntamente com Marc Jacquinet, colega da Universidade Aberta de Lisboa, e Miguel de Barros, investigador da Guiné-Bissau, intitulado “Violent transformations in Africa: coup d’etat, civil wars and terrorism in the crisis of democracy” (https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpos.2023.1228780/full). Compõem o dossier quatro artigos. Um deles é sobre Moçambique, e foi escrito por mim e pelo dr. Ermenegildo Júlio Coimbra (https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpos.2023.1122373/full), dois foram sobre Guiné-Bissau, e um sobre 11 golpes de estado em África. O dossier visava trazer uma perspectiva inovadora a volta de golpes de estado e transformações políticas violentas no continente africano. Inovadora num sentido específico: como vimos, em último, para o caso di Niger, o esquema em volta dos golpes de estado africanos tende a se repetir, com óbvias variantes locais. Primeiro, eleições geralmente duvidosas, ou seja, pouco transparentes, mas aceites pela comunidade internacional. Dito em parentese, se tais procedimentos eleitorais se dessem naqueles países ocidentais que “certificam” a correcteza das eleições em quase todos os países africanos, o mínimo que poderia acontecer seria uma revolta popular…Segundo: uma governação que continua ineficiente, altamente corrupta, negligenciando os mais elementares critérios de justiça social, contribuindo assim para o alargamento do fosso entre ricos e pobres. Terceiro: repressão máxima dos protestos populares, pacíficos assim como violentos. Quarto: golpe militar, com deposição do presidente eleito e formação de uma junta, geralmente chefiada por militares ou por um civil escolhido pelos golpistas. Quinto: condenação unânime do golpe por parte da comunidade internacional, pelo meno a ocidental. E sexto: substituição da influência ocidental com a russa (ou chinesa, ou as duas).

O dossier queria desvendar a lógica de tal mecanismo, assim como a peculiaridade de cada transformação violenta em termos de mudança de regimes formalmente eleitos. Alpha Condé na Guiné Conakry representa provavelmente o exemplo paradigmático deste ponto de vista. Ele foi eleito para um terceiro mandato em 2020, depois de ter reformado a constituição do seu país, que impunha o limite de dois mandatos para o cargo de presidente da república, e depois de ter registado dezenas de mortes ao longo da campanha eleitoral. Um ano após as eleições de 2020, Alpha Condé foi deposto, em favor de uma junta militar que assumiu o poder. As condenações internacionais desta mudança, a partir da França, foram generalizadas. Parece evidente que uma análise mais detalhada de tal mudança seria necessária, não limitando-se, pelo meno do lado da academia, a condenar o golpe, sem ter entendido os factores que o provocaram e suas dinâmicas sociais e políticas.

A situação no Sahel é a que, em África, hoje mais preocupa e que representa quase que um unicum em todo o plantea: uma inteira área constituída por governos originados por golpes de estado e governados por militares. O Niger era o único país que tinha um regime supostamente democrático, com eleições realizadas em final de 2020 (as primeiras na história do país), mas ainda muito frágil e com imensos problemas sociais. 42% da sua população vive em condições de pobreza extrema, com cerca de 700.000 entre refugiados e prófugos dos países vizinhos, por causa dos contínuos ataques terroristas de matriz jihadista. É considerado como o país mais pobre do mundo, com uma escolaridade média de 3,1 anos (dados ONU). Entretanto, é o terceiro produtor mundial de urânio, um material precioso para produção de energia e armas nucleares.

O presidente eleito, Mohamed Bazoum, era uma referência fundamental para o Ocidente, numa área onde a Rússia está a incrementar a sua influência. França e Estados Unidos têm bases militares no Niger. Em 2013 o governo de Niamey assinou um acordo com Washington para permitir a entrada de forças da defesa estadunitense para ajudar a França e o exército local no combate ao terrorismo islâmico. Na Niger Air Base 201, na cidade de Agadez, foi implantada uma base de drones americanos, a partir de 2019.

Este aparato todo de segurança não foi suficiente para evitar o golpe de estado. Talvez, foi mesmo esta abordagem quase que exclusivamente securitária, filo-ocidental e pouco sensível às instâncias sociais dos cidadãos que deu azo aos militares para levar a cabo este golpe. Se é verdade que a população não foi envolvida neste processo, também é preciso realçar que não houve nenhuma manifestação em defesa do presidente Bazoum, assinalando assim resignação, ou até um certo grau de aprovação, por parte dos cidadãos, para o golpe militar realizado. A França, através da sua sociedade Areva, a segunda companhia no mundo produtora de urânio, deteve o monopólio da exploração deste material até anos muito recentes, deixando inclusive enormes problemas de poluição nas pequenas cidades desérticas afectadas por esta produção (Arlit em primeiro lugar), com denúncias de Greenpeace e da ONG Sherpa. Um sistemático ocultamento de dados epidemiológicos por parte dos hospiais locais tendeu a esconder doenças pulmonares, tais como câncer, infeções, alergias, para não falar da poluição das águas e do ar, elementos todos desvendados a partir de 2010.

É muito provável que a opçao estratégica do presidente-Bazoum, no sentido de continuar a confiar em aliados que, historicamente, trouxeram pouquíssimos benefícios às populações locais, ainda por cima piorando os dados sobre saúde e poluição ambiental, tenha representado uma das razões da sua impopularidade, volvidos apenas poucos anos após as primeiras eleições democráticas. Agora, o cenário que se abre é de uma provável viragem do governo militar para a Rússia, que resulta já dominante em vários outros países do Sahel, a partir do Mali e do Burkina Faso, e que está configurando-se como o actor político mais influente de toda esta área.

Mais uma vez, a simples condenação do golpe não será suficiente para compreendermos as complexas dinâmicas que estão por detrás deste acto. E nem para develver o poder ao presidente Bazoum. Repensar na lógica da presença ocidental em África seria assunto extremamente urgente para que esta parte do planeta não se torne presa demasiado fácil de movimentos jihadistas, ou de países autoritários, tais como Rússia e China, que dificilmente poderão contribuir na melhoria das condições de vida das populações locais.

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