“Sonhar… torna-me um marginal ou um alvo a abater?”

DESTAQUE POLÍTICA
  • Vaquina quebra silêncio e apela o resgate de uma Frelimo aglutinadora
  • “Nunca devíamos permitir que comportamentos indecentes façam jovens afastarem-se da Frelimo”
  • “Não me obriguem a misturar-me no banquete macabro dos que vivem do sangue do meu povo”
  • “… estão agora com os dentes fincados na nádega do seu próprio povo, como que a provar ao patrão que foram bem treinados. E a culpa não é apenas deles”
  • “… se houvesse outros a falar, nossos dirigentes teriam tempo de se corrigir em pleno mandato”

O antigo primeiro-ministro no consulado de Armando Guebuza, Alberto Vaquina, reagindo, num grupo privado que integra militantes da Frelimo, semana passada, a um vídeo de uma jovem que fala da degradação do partido e apela para que os jovens não votem na Frelimo, desabafou numa massiva, questionando o silêncio dos membros face aos erros dos governantes do partido. Vaquina, conhecido por ser reservado e de intervenções cautelosas, deixa intacta a sua angústia, pelo “divórcio da Frelimo da sua principal razão de ser que é o Povo”, uma crise perpetrada por pessoas identificáveis. O antigo governante lamenta o silêncio cúmplice dos camaradas, ao garantir que “se houvesse outros a falarem como eu, em vez de murmurarmos, os nossos dirigentes teriam tempo de se corrigir em pleno mandato, porque falar mal deles fora do exercício de nada adianta. Podemos pontapeá-los, humilhá-los, insultá-los, mas isso é absolutamente inútil, porque depois de eles saírem do poder nada podem mudar. (…) Nunca devíamos ter permitido que os comportamentos indecentes de alguns de nós, perfeitamente identificáveis, fizesse os jovens afastarem-se da Frelimo. Nem os jovens, nem os adultos, nem as crianças. Para que ao verem-nos chegar a todo o lado, as pessoas respirem de alívio, porque está a chegar um membro da Frelimo que é, ao fim e ao cabo, a própria Frelimo. Sonhar com isso torna-me um marginal ou um alvo a abater?”

O desabafo de Vaquina surge na sequência de um apelo de uma jovem para que os jovens não votem na Frelimo, por não terem nenhuma razão para o fazê-lo, porque o país está mal e esta camada social é que sofre os impactos da governação.

A forma vigorosa e o tom de revolta, bem como o verbo afiado contra a Frelimo, fizeram Vaquina sair da sua zona de conforto e desabafar num grupo que congrega camaradas. Mas a mensagem acabou sendo extraída e divulgada nas redes sociais. Acompanha na íntegra o desabafo de Alberto Vaquina.

“Irmãos e amigos! Peço um pouco do vosso tempo porque ouvir aquilo de uma jovem moçambicana dói muito. Onde é que falhamos para que hoje os nossos filhos falem da sua Frelimo, da nossa Frelimo, como algo que não lhes diz respeito. Por eles, a Frelimo pode muito bem cair na rua, desamparada, abandonada, como um avô sem netos?

Que decisões tomámos para que hoje a nossa Frelimo se tenha transformado num saco de boxe, sem dono, que quem quiser pode pontapear, dar uns socos, sem ninguém se importar com isso? E os poucos que se importam com isso são afugentados como criminosos, como se a Frelimo merecesse ser tratada como algo sem dignidade para merecer a nossa estima, o nosso carinho, a nossa admiração, ou pelo menos a nossa misericórdia?

Que Frelimo é esta que só fica feliz quando os outros dizem bem dela e fica indiferente ou mesmo indignada quando nós, os filhos dela, vamos em sua defesa? Será que temos o direito de nos manter em silêncio quando a nossa mãe, nossa Frelimo, é invadida por novas vontades que não se importam que ela seja vandalizada?”

“Sei que sozinho nada farei contra a máquina instalada”

“Camaradas, eu sou tão insignificante como qualquer um de vós. Mas não tenho o direito de me sentir feliz, nem de concordar, nem de aplaudir no palco dos que com a desculpa da sua pequenez estão convencidos de que para defender ou proteger o seu modo de vida profano devem sacrificar os nossos interesses, que a sua faustuosa peregrinação nesta terra que é de todos nós deve ser feita à custa do nosso empobrecimento, sem se importar com os ciclones que se viraram contra nós, da zanga justa da mãe Natureza que se virou contra nós, como se fóssemos os únicos responsáveis pelo recorrente estupro a que ela está sujeita.

Camaradas, julgo que quando Mondlane, Samora, Chissano, Guebuza, uns que sequer assistiram ao arriar da bandeira do opressor e consequente raiar de um novo amanhecer. Não me obriguem a concordar ou a misturar-me no banquete insano e macabro dos que vivem do sangue do meu povo. Não! Não me obriguem a tal. Sei que sozinho nada farei contra a máquina instalada que é o sistema, os vários sistemas que se encontram em cada canto deste mundo, de Moçambique à toda a África e, quiçá, do mundo inteiro. Sim, porque esses sistemas estão em todo o mundo, como abutres ou tubarões que sentem o cheiro do sangue alheio ou controlam os povos cujos gritos de socorro que não são atendidos pelos seus filhos que a primeira missão era socorrerem a sua mãe, protegerem o povo que de forma pública e voluntariamente juraram servir e proteger.

Não me obriguem a entregar-me aos apetites vorazes dessa gente. Juntando-me a eles estaria a sorver selvaticamente o sangue da minha própria mãe. Deliciar-me da carne com que eles saciam a sua fome incessante seria alimentar-me da carne do meu próprio povo. E eu não posso fazer isso. Porque eu sou filho deste povo e não tenho o direito de fingir indiferença quando um cão morde a nádega da minha mãe, com a desculpa de que sou demasiado pequeno e frágil. É verdade que eu sou frágil.

Mas sempre que eu estava febril, tinha dor de ouvido, precisava de leite ou simplesmente tinha sujado as fraldas ou o corpo da minha mãe ou a melhor capulana que ela tinha, ela nunca desistiu de mim. Nunca me exigiram uma contrapartida, nem mesmo o meu sorriso…

Se eu me juntar a esses impostores, a esses invasores, estarei a trair a minha própria mãe apenas por ser pobre e indefesa”.

“Essa jovem (do vídeo), nossa filha, certamente, é fruto das nossas hesitações ou indiferenças”

“Insisto que essa jovem, nossa filha, certamente, é fruto das nossas hesitações ou indiferenças. É nossa responsabilidade que ela não seja da Frelimo. Nunca devíamos ter permitido que os comportamentos indecentes de alguns de nós, perfeitamente identificáveis, fizessem os jovens afastarem-se da Frelimo. Nem os jovens, nem os adultos, nem as crianças.

A nossa missão como membros ou dirigentes da Frelimo é trabalhar os nossos comportamentos e dos nossos camaradas, familiares e amigos para que a nossa presença na comunidade seja inspiradora de esperança, de respeito, de sonhos construtivos, não de ódio ou pesadelos.

Para que ao verem-nos chegar a todo o lado as pessoas respirem de alívio, porque está a chegar um membro da Frelimo, que é, ao fim e ao cabo, a própria Frelimo. Sonhar com isso torna-me um marginal ou um alvo a abater?

Só peço que não me obriguem a festejar o divórcio da Frelimo da sua principal razão de ser, que é o povo. Este povo que deve permanecer unido do Rovuma ao Maputo, do Zumbo ao Índico.

Por favor, não permitam que as perspectivas de petróleo e gás, de ouro e não sei de que mais na costa de Moma, Angoche, Memba, e no meu e nosso interior do Eráti, me torne tão egoísta que me esqueça dos tempos em que falar de riquezas do subsolo era apenas falar de Tete, ou que o pouco do Orçamento existente era muito dependente do Parque Industrial da Matola, praticamente o único do seu tempo. Era dali que o pouco se distribuía para todos.

Se como pobres éramos irmãos e unidos, não permitamos que as perspectivas de riqueza nos separem. Isso seria traição ao nosso sonho de Unidade Nacional.

“Gostaria que nossos dirigentes tivessem uma vida tranquila depois do mandato”

Eu sei que falo muito. Se calhar até falo demais. Mas garanto que se houvessem outros a falar como eu, em vez de murmurarmos, os nossos dirigentes teriam tempo de se corrigir em pleno mandato.

Porque falar mal deles fora do exercício de nada adianta. Podemos pontapeá-los, humilhá-los, insultá-los, mas isso é absolutamente inútil porque depois deles saírem do poder nada pode mudar. E eu gostaria que os nossos dirigentes, todos eles, sem qualquer excepção, tivessem uma vida tranquila terminados os seus mandatos, pela simples razão de que já não podem mudar o passado em que se tornaram deuses ou demónios, sei lá, deixámo-los ao Deus dará.

E porque os abandonámos, alguém, diferente de nós que somos seu povo, lhes deu carinho, importância e tornou-lhes fortes. E, para mostrarem gratidão a quem os retirou do abandono, estão agora com os dentes fincados na nádega do seu próprio povo, como que a provar ao patrão que foram bem treinados. E a culpa não é apenas deles. É verdade que é também deles. Mas é igualmente nossa.

Disse tudo o que tinha para desabafar. Vou fazer descansar a quem perdeu o seu tempo lendo este meu desabafo. A verdade é que ficaram a conhecer-me melhor. Sabem que é assim que penso sobre estas questões”.

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