Falta de lei específica para punir erros médicos no país leva pacientes a sofrerem no silêncio

DESTAQUE SAÚDE SOCIEDADE
  • Dezenas de casos de erros que terminam num simples pedido de desculpas
  • Há pessoas que perderam seus entes queridos na sequência de erros médicos e abraçaram o silêncio 
  • Bastonário dos Médicos diz que ainda não recebeu queixas sobre erros ou negligência dos médicos
  • Advogado Victor da Fonseca lamenta falta de lei específica para punir erros médicos

 

Ancha Pelembe, de apenas 31 anos, tornou-se infértil após uma sucessão de erros médicos, na sequência de um parto à cesariana do seu segundo filho, em que os médicos esqueceram uma compressa no seu útero. Depois disso foi submetida a duas cirurgias, a primeira para retirar o objecto que causou danos irreversíveis no seu útero e ovários e a outra para corrigir um erro que ocorreu no processo de suturação da ferida. Ancha é apenas um exemplo de uma lista infindável de erros cometidos por médicos que quando não tiram a vida deixam sequelas irreversíveis no corpo dos pacientes, como são os casos de algumas pessoas que ficaram cegas ou foram amputadas o membro errado. Por falta de mecanismos funcionais de denúncia, muitas vítimas sofrem no silêncio e os poucos casos chegam às autoridades simplesmente não têm o devido seguimento. Se, por um lado, o bastonário da Ordem dos Médicos de Moçambique, Gilberto Manhiça, diz que a instituição por si dirigida ainda não recebeu nenhuma queixa sobre a má actuação dos cirurgiões, por outro, o advogado Victor da Fonseca lamentou falta de lei específica para punir erros médicos.

Esneta Marrove

Nos últimos anos, os relatórios do Instituto Nacional de Saúde (INS) demonstraram que houve uma mudança no perfil das causas de morte em Moçambique. Actualmente, as doenças crónicas não transmissíveis e trauma juntaram-se às doenças infecciosas no rol das principais causas de morte no país. No entanto, mesmo sem registo de dados oficiais, tende a crescer o número de óbitos causados por erros médicos nas diferentes unidades sanitárias espalhadas de Rovuma ao Maputo.

Dados revelados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que aproximadamente 2,6 milhões de pessoas morrem anualmente em todo o mundo devido a erros evitáveis na assistência à saúde, o que equivale a cinco pacientes a cada minuto.

De acordo com a OMS, quatro em cada dez pacientes sofrem algum tipo de prejuízo durante o atendimento na atenção primária e ambulatorial, com os principais erros relacionados a diagnóstico, prescrição e uso de medicamentos.

Em Moçambique, o Sistema Nacional de Saúde não é imune aos erros médicos. No entanto, devido à ausência do instrumento legal que penaliza os profissionais de saúde em casos de negligência, várias famílias sofrem no silêncio depois de terem perdido os seus entes queridos.

Augusto Renato não conseguiu segurar as lágrimas quando falava da sua esposa que perdeu a vida em Março de 2016 na sequência de uma cirurgia mal feita por um médico que não era especializado em ginecologia.

“A minha esposa tinha problemas ginecológicos. Fomos ao médico depois de várias consultas, foi quando o mesmo sugeriu que ela fizesse uma cirurgia, porém a minha esposa questionou se não era melhor que indicasse um profissional especializado na área, visto que ele não era. Ele disse que não teria problema, pois conseguiria resolver”, lembrou a fonte, para depois referir que pagou 60 mil meticais para ver a esposa a perecer por negligência do médico.

No presente, o arrependimento e o inconformismo tomaram conta de Augusto Renato, uma vez que refere que se fosse possível voltar ao passado não teria permitido que o médico fizesse “arranjos” para operar a esposa na Clínica Especial do Hospital Central de Maputo.

Autópsia confirmou erro médico e violação de princípios éticos, mas nada aconteceu

Para confirmar que houve negligência médica, a fonte pediu a autópsia que viria a confirmar que o médico que se ofereceu para fazer a cirurgia da finada violou os princípios éticos ao realizar uma cirurgia de um caso que não era da sua espacialidade, tendo sido punido com dois salários mínimos, o que de certa forma deixou Renato revoltado.

“Passam-se 08 anos que o processo está arquivado, mesmo com todas as provas. Eu não espero nenhum valor, mas sim ver que através do meu caso que o Governo aprove uma lei sobre a responsabilização em caso de erro ou negligência médica”, desabafou.

Tânia Matusse (nome fictício) deslocou-se ao Hospital Provincial de Maputo com o objectivo de resolver um problema de visão que a apoquentava, uma vez que tinha catarata num dos olhos.

Depois de sucessivas consultas, o médico que era responsável pelo seu processo clínico declarou que era necessário avaliar-se a evolução da catarata, para que depois fosse operada.

“Descobri que estava a desenvolver a doença em 2020 quando o esquerdo começou a ficar embaçado, fui às consultas no Hospital Provincial de Maputo, daí o oftalmologista disse que eu devia esperar pela evolução para se decidir pela operação”, contou a vítima.

Em 2023, o Ministério da Saúde (MISAU) levou a cabo uma campanha de remoção de cataratas e Tânia Matusse entendeu que era uma oportunidade para resolver o seu problema de visão. Contudo, ao invés de melhorar, perdeu por completo a visão num dos olhos.

“Quando soube que seria operada fiquei muito feliz. Queria de uma vez por todas viver livre dessa doença, mas não. Após a cirurgia, fui me recuperando, mas em vez de voltar a ver o meu olho esquerdo ficou completamente cego. Aquilo foi destruidor para mim e para minha família”, lembrou.

Mesmo diante daquele cenário sombrio, Tania Matusse ainda tinha esperança de ver o seu problema resolvido, mas quando voltou naquela que é considerada a maior unidade sanitária da Província de Maputo ficou a saber que aquele olho jamais voltaria a reflectir a luz do sol, porque o médico que a operou cortou uma veia errada durante a cirurgia para a remoção da catarata.

“Disseram que falharam e cortaram uma veia errada, o que fez com que provocasse cegueira no olho. Infelizmente, nada foi feito, além de pedirem desculpas pelo sucedido”, referindo que os erros são comuns durante as operações.

 

Ordem dos Médicos sem denúncias contra médicos que cometeram erros

Quem também foi vítima de um erro médico é Ancha Pelembe, que com apenas 31 anos de idade já não pode ter filhos, na sequência de uma operação mal sucedida durante o parto do segundo filho.

“Infelizmente, os médicos disseram que o meu filho era muito grande e que o parto tinha que ser à cesariana. Não tinha outra opção senão aceitar. O parto até decorreu sem sobressaltos, mas o meu calvário começou depois, pois na primeira cirurgia a equipa médica esqueceu uma compressa na barriga. Saí com dores e pensava que as mesmas iam passar, mas não passaram e voltei ao hospital. Quando regressei fizeram ecografia e perceberam que haviam deixado uma compressa na minha barriga. Fui submetida a segunda operação para retirar o material, mas desta não saturaram bem a ferida. O mesmo problema apenas foi resolvido na terceira cirurgia e, por isso, já não tenho como ter filhos”, lamentou a fonte.

Entretanto, tal como outras dezenas de vítimas que acabam preferindo calar e sofrer no silêncio, deixando os responsáveis impunes, a fonte referiu que não procurou as instituições competentes com vista a responsabilizar os médicos responsáveis.

Ao contrário de Augusto Renato, que depois de perder a esposa durante a cirurgia solicitou a autópsia na esperança de responsabilizar o médico, Tânia Matusse e Ancha Manhiça preferiram voltar para casa e tentar digerir o desgosto de terem contraído traumas irreversíveis após erros dos médicos.

Evidências sabe que a negligência é tão gritante a ponto dos médicos amputarem o órgão errado. Isso aconteceu há cerca de um ano, com um paciente diabético que não se quis identificar. Após desenvolver uma ferida que não sarava devido à sua condição de saúde, os médicos decidiram, então, amputar aquele membro.

No dia da cirurgia, o paciente foi administrado anestesia geral, deixando-o totalmente inconsciente durante todo o procedimento. Qual não foi o seu espanto quando recuperou a consciência ao perceber que, em vez da perna infectada, os médicos “cortaram-lhe” o pé errado, deixando-o, curiosamente, com a perna em que devia ter ocorrido a intervenção.

Muitos são os pacientes que perdem a vida nos diversos hospitais, alguns perdem a visão e outros são amputados membros na sequência de erros médicos. Estranhamente, a Ordem dos Médicos de Moçambique revelou que ainda não recebeu nenhuma denúncia contra os seus membros. 

“Não temos registo de nenhum caso. Quando o problema é da área ginecológica, quem faz a avaliação é o colégio de ginecologia e obstetrícia. Se for da área cirúrgica, então é o colégio de cirurgia que faz a análise. Se enquadrar duas áreas diferentes, que é este caso, nós encaminhamos para as duas e cada um dá o seu parecer sobre aquilo que teria sucedido”, referiu Gilberto Manhiça, Bastonário da Ordem dos Médicos de Moçambique. 

Manhiça declarou, por outro lado, que em caso de se provar que houve erro ou negligência médica o profissional responsável é sancionado.

“Há uma moldura que é feita na base dos casos que forem apresentados, isso depois de serem analisados e provados que houve erro pelo Conselho Jurisdicional da Ordem”, destacou.

 

Victor da Fonseca lamenta falta de lei para punir erros médicos

 

Relativamente aos erros médicos que por vezes semeiam luto nas famílias, o advogado Victor da Fonseca lamentou o facto do país não ter uma lei específica sobre os erros médicos.

“A situação é muito sensível, visto que é difícil repor o que foi perdido ou danificado. O artigo 70 da Constituição da República faz referência que aquele que tem o seu direito violado deve recorrer aos tribunais para que possam aplicar a lei e a mesma deve ser cumprida, e o instrumento que pode responder é o código civil no artigo 483”.

Ainda na sua explanação sobre este fenômeno que preocupa sobremaneira os moçambicanos, o advogado refere que há uma obrigação do médico reparar os danos causados aos pacientes, advertindo que o médico ao causar danos possa anuir que houve falha, sendo que “isso não significa que está isento da culpa, ele deve responder a um processo criminal, não existe uma lei que trata esses assuntos, porém nos socorremos no código civil para resolver estes casos”.

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