Luca Bussotti
Corria o ano de 1874 quando Friedrich Nietzsche lançou a segunda das suas Considerações inactuais, intitulada Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Foi um sucesso e uma provocação ao mesmo tempo, pois, com esta obra pertencente ao período juvenil do filósofo alemão, Nietzsche revolucionou o olhar clássico que do uso da história se fazia naquela altura. Em particular, ele distinguiu, neste breve tratado, entre três tipos de história: a monumental, a antiquaria e a crítica, onde apenas esta última consegue expressar a vitalidade criativa de um povo e servir, portanto, para interpretar e mudar o presente.
Se formos a transpor esta classificação de Nietzsche na arena política do actual Moçambique, não seria difícil vislumbrar várias similitudes: acima de tudo, em termos de uso da história que tais partidos fazem. Por exemplo, Frelimo e Renamo – que nos últimos dias foram acusados de actuar como Frenamo – defendem uma história monumental, e por isso estática. A Frelimo tem o monopólio político (e da narrativa histórica) desde a independência de Moçambique, por isso que cristalizou a história do país a seu bel prazer. Logo, a história nacional de Moçambique se confunde com a da Frelimo, com escassas possibilidades de contestação científica…Possibilidades que, embora modestas, foram exploradas por não-académicos, tais como Bernabé Lucas Ncomo, Adelino Timóteo, entre outros. A Renamo não foi muito longe da Frelimo na leitura que tem feito da história nacional: claro, procurou enaltecer seu papel de “trazedora da democracia”, enaltecendo figuras como Matsangaíssa ou Dhlakama, também propondo uma história estática, pouco dinâmica e ainda menos útil para compreender as dinâmicas presentes. Assim, mesmo do lado da Renamo não houve grande interesse em promover um discurso crítico a respeito da história oficial, procurando, pelo contrário, recortar um espaço minoritário dentro desta, sem querer alterar necessariamente a narrativa da Frelimo.
Se a base do ADN dos dois partidos principais é esta, relativa a uma cristalização do passado, suas consequências na política contemporânea também foram relevantes: foram inúmeras as campanhas eleitorais em que, diante da pobreza dos manifestos, a disputa era entre quem tinha libertado o país do colono (Frelimo) e quem tinha destruído o marxismo-leninismo, introduzindo a democracia (Renamo). Muito pouco para eleitores cada vez mais novos, portanto mais distantes dos conflitos ideológicos do passado, mais cultos e formados e mais exigentes quanto às propostas programáticas dos partidos moçambicanos.
Entretanto, a história, aquela crítica de que fala Nietzsche, associada a uma visão de longa duração de Braudel, ensina outro elemento: partidos quer congelam o seu passado usando-o para o presente e para construir o futuro são partidos ultrapassados. É esta a condição de muitas formações políticas que estão até hoje no poder em África, mas cuja tarefa histórica já foi cumprida, e que não conseguem se revitalizar. É o caso do ANC na África do Sul, em que o legado de Mandela e da luta anti-apartheid está para terminar, como demonstrado em ocasião das últimas eleições gerais; do MPLA em Angola, cujo prestígio também sofreu uma evidente erosão, que só eleições da transparência muito duvidosa permitiram que se mantivesse no poder; e da própria Frelimo (e Renamo), cuja função histórica já terminou há muito tempo. A Frelimo libertou o país do colono, e conseguiu garantir a transição para a democracia; a Renamo empurrou Moçambique para um caminho diferente do marxismo-leninismo que o país tinha escolhido nos seus primeiros anos de independência, forçando a Frelimo a aprovar uma Constituição pluralista (1990), e sendo um partido razoavelmente competitivo em todas as eleições realizadas, desde as primeiras de 1994 até hoje.
Esta época já terminou, para os dois partidos. A pergunta é: o que vem a seguir? Do lado da Frelimo, os dados falam por si. Um país com uma pobreza enorme, criminalizada mas nunca enfrentada seriamente para que ela possa ser reduzida; uma corrupção fora de qualquer controlo; serviços públicos (e privados) que funcionam pessimamente. Do lado da Renamo, depois da morte de Dhlakama, a sua agenda política está vazia. Por isso é que estes dois partidos tendem a assumir comportamentos parecidos; comportamentos que podem ser resumidos com a expressão de “auto-fechamento”: o importante, para os dois, é garantir os equilíbrios internos, para os quais todas as energias estão sendo gastas. Consequência: a qualidade das propostas políticas é carente, ou até inexistente, diante de um quadro nacional dramático, e a forma como se faz a (pré)campanha eleitoral resulta também muito pobre.
Nos últimos dias temos assistido a cenas dispensáveis: a Frelimo que oferece (ainda!) camisetes em troca de votos, a Renamo cujo líder foi mal recebido (por usar um eufemismo) em Doa (Tete) durante uma sua visita política. Foi Otto Kirchheimer que, na década de 1960, explicou como partidos que ficam cristalizados no passado, transformando-se em organizações estáticas, mudam a sua natureza: eles perdem seu património ideológico (porque, hoje, a Frelimo é considerado como um partido de esquerda, e a Renamo da direita?), enaltecem o papel de suas elites (ou nomenclaturas), em detrimento da participação dos inscritos, reduzem sua atratividade à tutela de interesses de grupos privilegiados e fechados. Em suma, estes partidos – assim como a história monumental – já não servem para a causa do bem-estar de suas populações, mas sim de grupos dirigentes minoritários, autoritários e fechados.
Talvez possa ser esta uma das leituras possíveis para compreendermos a súbita, recente convergência de interesses entre Frelimo e Renamo no que diz respeito a decisões tais como a exclusão da CAD da corrida eleitoral, ou a aprovação de um pacote eleitoral que retira dos tribunais distritais a possibilidade de mandar recontar os votos, ou repetir (localmente) as eleições. Decisões que reduzem a luta política a táctica para salvar o possível com qualquer meio (fraude eleitoral em primeiro lugar) e manter posicionamentos privilegiados, sem olhar para o futuro de Moçambique e de seus jovens, ansiosos de viver num país mais inclusivo e menos autoritário.
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