Sobreviver a violência doméstica para enfrentar pressão social e chantagem emocional

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Drama de quem vive ou viveu aprisionada num ciclo de Violência Baseada no Género

Deitada numa maca com dificuldades para respirar, atordoada e com o corpo completamente dolorido. É parte das memórias de Joana Sambo do dia em que teve a vida por um fio, quando escapou à morte por espancamento protagonizado por aquele que um dia jurou amá-la, seu marido. Joana sobreviveu para contar a sua história, mas estatísticas mostram um cada vez crescente número de mulheres e raparigas assassinadas, vítimas de violência doméstica. Só nos últimos dois anos, ou seja, entre 2022 e 2024, houve registo de mais de 122 feminicídios causados por violência baseada no gênero. Nas vítimas, os traumas deixados vão para além do físico. Roçam o emocional e podem contribuir para baixa de autoestima e perda de interesse pela vida.

Luisa Muhambe

A violência baseada no género (VBG) é um problema grave em Moçambique, com destaque para a violência doméstica, que afeta muitas mulheres, sendo uma das formas mais prevalentes de abuso. Estima-se que uma significativa proporção de mulheres já tenha sofrido algum tipo de violência no casamento ou união. Além disso, o assédio sexual em espaços públicos e privados, como escolas e locais de trabalho, também é uma preocupação crescente.

De acordo com um estudo do Instituto Nacional de Estatística (INE) de Moçambique, 41% das mulheres entre 15 e 49 anos relataram ter sofrido violência física ou sexual por parte de um parceiro íntimo em algum momento de suas vidas.

Em 2022, o Relatório de Violência contra as Mulheres, publicado pela Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LMDH), indicou que cerca de 1 em cada 3 mulheres já sofreram algum tipo de violência doméstica, e a maior parte dos casos ocorre em áreas rurais.

Mas nem todas as mulheres vítimas de violência doméstica têm a sorte de sobreviver para contar a história. Entre 2022 e 2023, 122 mulheres e raparigas foram assassinadas, vítimas de violência doméstica, em diferentes pontos do país, segundo dados do Comando Geral da Polícia da República de Moçambique (PRM).

Numa altura em que está em curso, desde 25 de Novembro, a campanha  global dos 16 Dias de Ativismo contra a Violência de Gênero, que tem com o objetivo de aumentar a conscientização e mobilizar ações para combater todas as formas de violência de gênero, especialmente a violência contra mulheres e meninas e nesta edição o Evidências traz a luz o drama de quem já foi vítima dos que deviam ser e a protecção e de uma sociedade omissa ao seu sofrimento.

Joana Sambo, mãe de dois filhos, compartilhou sua difícil jornada de abuso em seu último relacionamento. Ela lembra que, no início, a relação parecia perfeita, mas mais tarde viria a conhecer o demónio com que partilhava cama e mesa.

“Tudo era um mar de rosas”, diz ela, antes de ressaltar que tudo mudou após o nascimento do seu primeiro filho, quando “ele começou a se irritar por qualquer coisa” e se incomodava com a sua presença.

“Parecia que minha presença era indesejada. As agressões começaram pequenas, mas logo se tornaram constantes”, revela Joana, ainda impactada pelo sofrimento vivido, mostrando parte das marcas físicas de anos de violência.

“Fui parar no hospital (…) Acho que ele queria me matar naquele dia”

Vítima de constantes espancamentos e humilhações, Joana permaneceu no relacionamento por anos, respondendo ao apelo de seus pais e sogros que depois de conversarem com o agressor renovavam promessas de que haveria mudança por parte do parceiro.

“Eu não podia opinar em nada. Ele chegava bêbado e, sempre que brigávamos, eu era a culpada. Vivíamos na casa dos meus sogros, mas ninguém parecia se importar com o que acontecia comigo”, lembra Joana, relembrando o isolamento que sentia.

“Eu tentava sair, mas ele sempre me prometia que ia mudar, e eu acreditava, até que ele me bateu tão forte que fui parar no hospital. Ali, percebi que não tinha mais como continuar, foi o fim para mim. Acho que ele queria me matar naquele dia. Minha família finalmente percebeu que, se eu continuasse ali, não demoraria muito para receberem a notícia da minha morte”, recorda.

Ganhou forças e saiu de uma relação tóxica. Hoje, Joana compartilha sua experiência com outras mulheres e, felizmente, encontrou um parceiro respeitoso, com quem tem um outro filho.

“Graças a Deus, hoje tenho um homem que me respeita e que aceita meu filho do outro relacionamento. Não desejo a nenhuma mulher o que passei”, relata, com a esperança de que outras possam encontrar forças para deixar relacionamentos abusivos, antes que se tornem em meras estatísticas de mulheres que morreram nas mãos de agressores.

Quando há controle psicológico

Laura (nome fictício), uma jovem de 23 anos, vive em um ciclo de abuso emocional que a mantém presa a um relacionamento tóxico. Ela descreve que o parceiro, sempre que ela tenta terminar, ameaça se matar.

“Sempre que quero terminar, ele diz que vai se matar. Eu não sei o que fazer, porque também o amo, mas sei que esse relacionamento só me faz mal. Me sinto muito sozinha, ninguém sabe o que acontece entre nós”, revela a vítima, com os olhos marejados de lágrimas.

O abuso que Laura sofre não é só físico, mas emocional. O parceiro usa ameaças de suicídio e chantagem emocional para mantê-la ao seu lado, fazendo com que ela se sinta culpada e impotente. A jovem também enfrenta pressão de sua família, que gosta do rapaz e não sabe sobre sua violência psicológica.

“Meus pais gostam dele e ninguém sabe o que ele me bate. Me sinto presa. Me afastei da maior parte das minhas amigas. É muito difícil, porque quando ele me ameaça, eu fico com medo de ser culpada por algo acontecer com ele. Me sinto muito sozinha, como se não houvesse ninguém que me compreenda”, diz Laura, ainda confusa sobre como sair desse ciclo.

Apesar de ainda lutar contra as amarras emocionais do relacionamento, está ciente de que precisa de ajuda. “Sei que preciso sair desse relacionamento, mas ainda não tenho coragem. Só espero que, com o tempo, eu consiga encontrar a força que preciso”, diz ela.

VBG é um crime público

Júlio Vinho, do Gabinete de Atendimento à Mulher e à Criança, destaca que  o maior obstáculo que se enfrenta na investigação de casos de  violência baseada no género é a omissão do crime.

“A violência doméstica, por exemplo, é um crime público, ou seja, não precisa ser a vítima a denunciar, qualquer um pode fazer a denúncia, nós como gabinete, temos toda uma estrutura funcional que permite a recepção das denúncias, e protegemos não só a vítima como também o denunciante. Há uma estrutura criada que garante que a vítima ao denunciar, o faça em um ambiente que transmita segurança e ela se sinta confortável para expor o seu problema”, conta.

Segundo Vinho, existem ainda barreiras culturais e sociais que fazem com que a violência baseada no género, especialmente contra mulheres seja tratada  como um problema familiar e não como um caso que merece a especial atenção das autoridades policiais, o que faz com que os a  agressores não sofram as sanções impostas pela lei e se perpetue o ciclo de normalização  da violência no seio das famílias e na sociedade em geral

“Nós temos feito palestras ao nível das comunidades sobre a necessidade de se denunciar, porque ao ficarmos calados, estamos a incentivar este violador, este agressor e isso pode ter efeitos desastrosos para nós no futuro. Temos a nossa linha verde que funciona 24 horas por dia para receber as denúncias. Muitas vezes o agressor é um familiar da vítima, por isso feita a denúncia, nós fazemos um acompanhamento para garantir a salvaguardar a sua integridade, porque é importante que a vítima não fique perto do agressor, para evitar cenários piores’’

A violência baseada no género (VBG) é um problema que preocupa a todas camadas da sociedade, recentemente em um workshop sobre o papel transformador das mulheres  no sistema de justiça em Moçambique, a Associação Moçambicana de Juízas (AMJ), alertou que embora existam boas leis no papel, há grandes falhas em sua implementação, o que impede muitas vítimas de alcançar a justiça que merecem.

Silvia Comissário, presidente da Associação Moçambicana de Juízes, destacou a importância de entender não apenas a existência de boas leis, mas sua efetividade na prática.

“Eu gosto de entender que nós temos leis bonitas, nós fazemos muita legislação, mas o que queremos perceber melhor é como é que estamos tornando essas leis eficazes”.

Silvia Comissário também levantou questões sobre a lei que trata da proteção das vítimas e testemunhas,  enfatizando a necessidade de assegurar que as vítimas de violência baseada no gênero tenham um ambiente seguro ao testemunharem, separadas de seus agressores. Para ela, o problema não está tanto na legislação, mas na sua implementação.

“Às vezes discute-se muito sobre aumentar a pena, mas será que a questão é aumentar a pena de 16 anos para 24 anos, ou é garantir que as vítimas tenham acesso aos tribunais e que os agressores sejam efetivamente condenados?”, indagou.

“A vítima pode se sentir impotente, o que diminui autoestima e sentido de valor próprio”

Segundo a psicóloga Georgia Mabuie, violência baseada no género (VBG) tem profundos impactos psicológicos nas vítimas, afetando-as de várias formas, dependendo da intensidade, duração e tipo de abuso. Esses impactos podem ser imediatos ou prolongados e variam conforme o contexto individual e social da vítima.

“A vítima pode sentir medo constante, preocupação excessiva e insegurança, especialmente em ambientes onde a violência ocorreu ou nas situações cotidianas, em casos extremos, as vítimas podem desenvolver ataques de pânico, que incluem falta de ar, tremores, sensação de desmaio ou perda de controle. A violência baseada no gênero pode levar a sentimentos intensos de desesperança, tristeza profunda e perda de interesse em atividades anteriormente prazerosas. A vítima pode se sentir impotente, o que contribui para uma diminuição na autoestima e no sentido de valor próprio”, referiu.

Segundo Mabuie, há o risco de se desencadear transtornos de estresse Pós-Traumático (TEPT), baixa autoestima e sentimento de culpa e dificuldades nas relações interpessoais

‘‘As vítimas frequentemente revivem o trauma, experimentando flashbacks, pesadelos e pensamentos intrusivos relacionados à violência sofrida. Isso pode levar a uma hipervigilância, dificuldades para dormir e, em casos graves, pode afetar gravemente a vida cotidiana da pessoa, muitas vítimas internalizam a culpa pela violência que sofreram, o que resulta em sentimentos de vergonha, inadequação e humilhação. A ideia de que de alguma forma mereciam o abuso pode prejudicar a autoimagem e a confiança. A violência pode afetar a capacidade da vítima de confiar em outras pessoas. Isso pode levar ao isolamento social, dificultando o estabelecimento de relações saudáveis no futuro. O medo da rejeição ou de ser novamente vítima pode ser paralisante”, advertiu a psicóloga.

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