Deficientes queixam-se de exclusão social e falta de oportunidades

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  • Dados do MGCAS apontam que cerca de 727 600 de cidadãos são deficientes

Em Moçambique, embora a Assembleia da República tenha aprovado recentemente (03.04), a Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, muitos deficientes ainda enfrentam desafios diários que vão além das barreiras físicas. A exclusão social, a discriminação e a falta de oportunidades são questões persistentes que afectam directamente a vida de milhões de deficientes. Face a esta situação, o Fórum das Associações Moçambicanas de Pessoas com Deficiência (FAMOD), entende que o problema se deve, primeiro, ao quadro político legal que não dá devida atenção a esses grupos, enquanto que, para o psicólogo, a exclusão social é um acto de “violência”.

Elisio Nuvunga

De acordo com dados do Ministério de Género, Criança e Acção Social, cerca de 727 600 de cidadãos são deficientes, cifra equivalente a 2,6 % da população. Nesta estatística cerca de 15,8 % tem membros inferiores amputados, 7,2% com membros superiores amputados, 06% correspondente a paralisia, 8,9% com deficiência auditiva visual e 7,4% com perturbações mentais.

Ainda no mesmo universo de 727 600, o relatório do Ministério de Género, Criança e Acção Social, aponta que o país tem 10, 8% com deficiência visual mesmo usando óculos, 5, 2% não consegue ouvir mesmo usando aparelho auditivo, 15,3% com problemas de locomoção e 4,5% com problemas de memória.

O Evidências ouviu histórias reais de quem vive o drama de ser portador de deficiência para além das batalhas diárias que cada um enfrenta. Há quem frequentemente é discriminado no posto de trabalho, na escola, universidade, no meio de transporte público, sociedade entre pontos diversos.

Maria Chiconela é deficiente física, tem 37 anos de idade e vive na capital do país, Maputo. Partilhou um pouco da sua rotina e lamentou sua condição. Chiconela diz que não é fácil tomar transporte público, aliás, só toma-o em caso de aparecer alguém de ”bom coração”.

“Não é fácil ser deficiente”, disse em forma introdutória como quem está cansada da sua condição. “Sofro muito para pegar chapas (transporte público) quando quero sair. Fico por muito tempo na paragem espera de chapa. Não é porque não tem carros”, lamentou.

Mas isso tem explicação: “É que os cobradores pensam que nós (deficientes) ocupamos muito espaço por causa da cadeira de rodas. Muitas vezes só saio da paragem quando aparece alguém (chapeiro) de bom coração”, acrescentou.

Quem também tem uma vida desafiante é o Alcídio Vasconcelos. É deficiente físico, tem 29 anos de idade, é formado e mesmo assim desempregado por conta da deficiência física. Vasconcelos sofre de hipercifose popularmente tratada de “corcunda”, uma doença óssea causada por desvio postural, fazendo com que apresente uma curvatura acentuada na região torácica da coluna vertebral.

Por conta da sua condição física, queixa-se da falta de oportunidades sobretudo de emprego para além da discriminação gratuita.

“Viver com corcunda tem sido um peso de discriminação e falta de oportunidades. Sinto que as pessoas me olham com estranheza, como se fosse algo fora do comum, como se a minha transpiração fosse culpa minha. Nos ambientes sociais muitos me olham mal, como se estivessem a ver uma coisa fora do normal”, lamentou.

É mestre de mão cheia na área de electricidade. É formada pela Escola Profissional de Assis, no bairro de Mumemo, Município de Marracuene. Já trabalhou numa empresa por dois anos onde entrou como estagiário mas, quando a empresa faliu, um caminho para frustração, humilhação para ter outro emprego.

“Desde que a minha antiga empresa fechou, onde trabalhei dois anos e nunca mais tive emprego. Já perdi várias oportunidades de trabalho porque, durante as entrevistas, o entrevistador quando vê meu estado físico, em vez de perguntar sobre minhas capacidades, simplesmente me olham com desdém. Muitas vezes, sinto que, mesmo quando estou preparado e capacitado, sou descartado por algo que não posso controlar. A sensação de estar sempre diferente é exaustiva”, explicou.

Chama-se Fernanda Massinga, tem 38 anos de idade, é deficiente visual. O seu problema de vista não é adquirido, aliás é de nascença. Como os demais, sobretudo supracitados, sofre qualquer tipo de exclusão. Massinga começou por contar que o problema de discriminação sempre esteve presente em toda sua vida em toda sua vida.

“Desde criança, sempre sofri bullyng principalmente na escola. Quando fazia ensino secundário meus colegas sempre gozaram comigo, diziam para sentar no chão para eu poder ver bem. E nos trabalhos em grupos ninguém queria fazer comigo por achar que não vou contribuir em nada mas, isso não é verdade porque eu conseguia ver, tinha óculos de vista”.

Não eram somente os seus colegas que a deixavam desconfortável com os comentários sobre sua condição: “os professores não eram pacientes comigo. Alguns diziam que não era fácil trabalhar com pessoas como eu, porque não foram treinados a trabalhar connosco” acrescentou.

A situação também se fazia sentir a nível doméstico. Seus pais, irmãos, primos e a sociedade limitavam suas capacidades e por vezes reduzirem-nas em zero porque precisa de muita atenção.

“Na minha casa, por exemplo, quando há eventos tipo festas e convívios me sinto excluído porque ninguém me dá aquela atenção porque acha que não posso ajudar para nada. Quando tenho que sair sinto que há um grande problema porque ninguém quer sair comigo por achar que vou-lhe dar muito trabalho, mas já estou acostumado” lamentou.

Para se enquadrar no mercado laboral não tem sido nada fácil, das poucas vezes que trabalhou foi por pouca duração. Nunca trabalhou mais de um mês logo que as empresas se apercebem que precisa de alguma atenção.

“Já trabalhei” começou por contar tristemente para depois dizer que “mas nunca por muito tempo, sempre me mandam parar porque quando ando e trabalho tenho que prestar muita atenção”, disse. Adicionalmente disse que “não é por falta de capacidades é o pensamento que as pessoas que tem sobre nós (com problemas de vista).

 “A própria constituição da República por si só já se mostra discriminatória”

Para o Fórum das Associações Moçambicanas de pessoas com Deficiência (FAMOD), reconhece os desafios das pessoas com deficiência mas, o maior problema para agudização da exclusão da pessoa com deficiência parte sobretudo do quadro político legal moçambicano.

“Se formos a olhar para a própria constituição da República ela por si só já se mostra discriminatória a pessoas com eficiência por exemplo, há várias tipologias de deficiência visíveis como deficiência física e visual e dá pouca atenção as necessidades das pessoas com deficiências psicossociais. Essa discriminação que é a constituição da Republica, já apresenta um desafio para o gozo efectivo dos direitos com pessoas com deficiência”, explicou Timóteo Bene, Oficial de Pesquisas e análise de Politicas do FAMOD.

Para sustentar seu argumento chamou um exemplo da questão eleitoral, em que os deficientes não têm condições mínimas para sua participação.

“Podemos olhar para as leis específicas como a lei eleitoral que não tem mecanismos concretos que promovam a participação de pessoas com deficiência em processos eleitorais. Se formos a olhar para acessibilidade dos materiais constituem uma barreira para as pessoas com deficiência porque os locais onde as eleições são realizadas as eleições não são acessíveis para as pessoas com deficiência e acaba marginalizando-os neste processo. Nos manifestos dos próprios partidos políticos as campanhas eleitorais não tem mecanismos de acessibilidade para as pessoas com deficiência”, acrescentou.

Outro desafio levantado pelo oficial do FAMOD, tem a ver com questões laborais em que as leis não são muito claras no que tange a promoção e protecção desses grupos específicos.

“A nível do trabalho, embora a lei de trabalho e a lei da pessoa com deficiência tenha artigos específicos para a inclusão de pessoas com deficiência no mercado laboral, não determinam que medidas ou acções o estado, o sector público deve considerar para a inclusão da pessoa com deficiência no trabalho, o que de certa forma contribui para que nenhuma acção proactiva seja tomada para avançar a integração de pessoas com deficiência no trabalho”, disse.

Para mitigar esta situação, é no entender do FAMOD que se deve regulamentar a lei aprovada com vista a definir políticas especialmente para esses grupos.

“A nossa expectativa diante destes fenómenos sobretudo a aprovação da nova lei sobre a deficiência, a lei número 10/2024 é que se avance com o processo de regulamentação tal está prevista na lei que é para definir mecanismos muito concretas que abrange vários actores quer singulares e colectivos sobre como promover e realizar os direitos das pessoas com deficiência nas diferentes sectores, políticos, económicos e socioculturais”, sugeriu.

A exclusão social é uma forma de violência

Por seu turno, o psicólogo moçambicano, Edmilson Mavie, entende a exclusão de indivíduos deficientes como um acto violento que vária de níveis e, por outro lado, resulta da degradação de valores socialmente morais.

“A exclusão social é uma forma de violência que vai variando de acordo com o nível que é protagonizado. A exclusão social da pessoa deficiente é, antes de mais, resultado de uma degradação de valores morais e humanos, porque todos os outros factores que vêm a seguir cruzam essa mesma linha”, explicou.

Nesta senda, estão presentes elementos como preconceito, discriminação e o estigma resultante de uma “sociedade despreparada para aceitar as diferenças e as singularidades de cada um e, esse despreparo começa do nível familiar quando os pais entram em depressão e revoltam de ter nascido um filho deficiente e a sociedade alimenta esse sentimentos atribuindo a causalidade como uma forma de punição, descartando que é normal”.

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