Vala comum de Lhanguene: Um lugar de perturbação para os vivos e de eterno descanso para “rejeitados”

SAÚDE SOCIEDADE
  • “Vizinhos” relatam episódios em que cães puxaram ossadas humanas para os quintais
  • Funcionários do município de Maputo acusados de depositar luvas em lugares impróprios
  • Edilidade legitima reclamações das famílias, mas não pensa no encerramento da vala comum

Para o escritor brasileiro Weberth de Alencar, “os funerais não são para os mortos, mas, sim, para os vivos” porque “os vivos é que precisam desse dia, eles é que precisam de se despedir, de honrar/homenagear a alma e a vida da pessoa que morreu, eles é que carregam todos os sentimentos e os arrependimentos de uma vida”. No entanto, em Moçambique, concretamente nas cidades de Maputo e Matola, há mortos que partem para o eterno descanso sem nenhuma despedida, ou seja, os seus corpos são depositados em vala comum porque não foram reclamados pelos familiares e amigos. Em Maputo, os corpos são depositados na Vala Comum, localizada no interior dos Cemitérios de Lhanguene, em condições pouco condignas e sem o devido aterro, deixando muitas vezes partes dos corpos expostos, facto que inquieta sobremaneira os moradores dos bairros circunvizinhos com destaque para Luís Cabral, que para além do cheiro putrefacto de corpos em decomposição, falam de episódios em que cães puxaram ossos de mortos para os quintais. Relativamente às reclamações, o Município de Maputo, na voz de Helder Muando, director do Serviço Municipal de Cemitérios, refere que não tem nenhum em plano em curso para o encerramento da Vala Comum de Lhanguene, que existe desde 1970. Para a psicóloga Nilda Martins, as crianças que vivem perto do local podem desenvolver traumas ao longo do crescimento, daí que defende que deve ser encerrada ou quiçá a edilidade optar por reassentar as famílias que vivem a escassos metros da última morada dos que não foram abandonados pelos vivos e nem sequer mereceram um enterro condigno

Duarte Sitoe

De acordo com dados tornados públicos pelo Conselho Municipal da Cidade de Maputo, mais de 3000 corpos foram depositados na vala comum só no ano passado, por terem permanecido nas morgues por mais de 30 dias. O destino foram os cemitérios de Lhanguene e Michafutene.

O grosso dos corpos não reclamados é de indivíduos que foram abandonados pelos familiares ainda no leito hospitalar, sendo que, por lei, a edilidade deve dar um destino aos mesmos, ou seja, alguns na vala comum e outros para as faculdades que lecionam cursos superiores de medicina para estudos.

Devido às condições pouco dignas em que são descartados os corpos, muitas vezes deixando partes expostas e ou somente aterrados alguns centimetros, fazendo com que se tornem alimento para cães, a vala comum no cemitério de Lhanguene em vez de ser um espaço para o eterno descanso daqueles que não tiveram direito ao último adeus dos familiares e amigos, se tornou motivo de perturbação para as comunidades que vivem a escassos metros da mesma.

Moradores do bairro Luís Cabral, que vivem muito perto do Cemitério de Lhanguene, reclamam do mau cheiro dos corpos descartados sem maneio adequado, o que atrai cães que vezes sem conta arrastam ossadas para os quintais, em cenas verdadeiramente perturbadoras.

“Somos vizinhos do cemitério, mas não estamos mortos (…) exigimos dignidade”

Angelina Mário era o rosto da desilusão quando foi abordada pelo Evidências. Vive a poucos metros do cemitério de Lhanguene desde o longínquo ano de 1986, mas refere que nos últimos anos o cheiro nauseabundo tem sido insuportável, sobretudo nos dias em que acontecem os descartes de corpos e nos dias subsequentes. A situação torna-se mais crítica depois da chuva.

“Quando o carro que carrega corpos chega sentimos o cheiro nauseabundo. E para variar quando passa deixa manchas de sangue e as nossas crianças inocentemente brincam no mesmo espaço. Estamos entregues à nossa própria sorte e, sobretudo, expostos porque as covas são pequenas e os coveiros depositam pouca areia. Somos vizinhos do cemitério, mas não estamos mortos, por isso, exigimos dignidade e respeito daqueles que nos governam”, desabafou Angelina, para posteriormente revelar que já presenciou casos em que os cães arrastaram ossadas humanas para os quintais.

“Infelizmente já assistimos episódios em que cães entraram na vala comum e puxaram ossos de mortos para os nossos quintais. Aqui no quarteirão 43 Já encontramos um braço de uma criança no quintal de uma vizinha. Foi constrangedor para pessoas adultas, agora imagina para os nossos filhos. Ninguém merece viver nestas condições. Só continuamos aqui porque não temos condições para comprar outro espaço, mas parece que para os nossos governantes estamos mortos só pelo simples facto de viver ao lado do cemitério”, sublinhou.

Para além do mau cheiro, Manuel Rodrigues queixou-se do facto dos funcionários do Conselho Municipal da Cidade de Maputo descartarem as luvas que usam durante o carregamento de corpos para depositar na vala comum em lugares expostos.

“Os funcionários do município sabem que temos crianças e, mesmo com isso, deitam luvas que usaram para depositar corpos na vala comum. Infelizmente, já reclamamos sobre esta triste situação, mas ninguém nos deu ouvidos. É lamentável o que está a acontecer. Na inocência os nossos filhos brincam com aquelas luvas e isso pode-lhes causar problemas de saúde. Na minha opinião esta vala comum tinha que ser encerrada. Não vejo a razão de continuarem a depositar corpos aqui, enquanto tem muito espaço no cemitério de Michafutene. O Município deve ouvir o nosso clamor, estamos cansados de cheiro que até bloqueia os nossos cérebros”, relatou.

Amélia Joaquim, actualmente com 25 anos de idade, vive no bairro Luís Cabral desde que nasceu. Diz que tem vergonha de dizer aos amigos e ao namorado que é vizinha do cemitério e diz que desde criança é perturbada por aquela situação que vai desde o mau cheiro a situações de martes de corpos achadas em casa.

Há quem pensa em marchar para que a vala seja encerrada

Para mudar o actual cenário, que considera de verdadeiro atentado à saúde pública, a fonte defende que os moradores devem boicotar o depósito de corpos na vala comum até que a edilidade, liderada por Rasaque Manhique resolva os problemas que inquietam os moradores.

“Acho que temos que nos manifestar para o município ouvir o nosso clamor. Esta vala comum é um atentado à saúde pública, por isso, já devia ter sido encerrada. Cresci a ver corpos a serem depositados, e é uma situação lamentável. Não gostaria que os meus filhos vivenciarem o mesmo cenário. Acredito que se um dia impedirmos o depósito de corpos o Conselho Municipal de Maputo pode começar a olhar para nós como pessoas e não como mortos como tem feito até aqui. Contudo, há união entre os moradores, alguns parecerem que já aceitaram esta condenação de inalar cheiro nauseabundo a cada dia que passa. Até tenho vergonha de dizer ao meu namorado que sou vizinha do cemitério, digo que vivo no bairro Luís Cabral.

Juvenalda viu a sorte grande lhe bater à porta quando conheceu um jovem natural de Quelimane que estava disposto a se apresentar aos progenitores com o objectivo de noivar para posteriormente marcar o casamento. No entanto, o azar bateu à sua porta quando os tios do suposto se fizeram a sua casa para saber dos termos e condições para a oficialização da relação.

Segundo Juvenalda Mambo, os tios do namorado não gostaram do facto de terem sidos obrigados a atravessar o cemitério e saltar campas para chegar a sua casa, muito menos sentir o cheiro putrefacto que vinha da vala comum sempre que o ar soprava.

“Dizem que o amor vence todas barreiras, porém, infelizmente, não foi o que me aconteceu. O meu namorado foi obrigado a me deixar pelo facto de viver ao lado do cemitério. A família dele disse que ele não podia casar no cemitério. Foi uma ofensa que a minha família jamais irá esquecer. As pessoas precisam perceber que o fato de viver ao lado do cemitério não significa que estamos mortos. Nós vivemos e gozamos dos mesmos direitos que aqueles que vivem nas zonas de elite”, desabafou.

Para Marcos Mabote, a única solução para os problemas das famílias que vivem a escassos metros da vala comum do cemitério de Lhanguene é o reassentamento numa outra área.

“Não restam dúvidas de que fomos abandonados à nossa própria sorte. Acredito que os dirigentes não podem suportar o nosso sofrimento por cinco minutos. Ora são cães que levam ossadas para os nossos quintais, ora é o cheiro nauseabundo dos cadáveres. Este município ainda tem muitas terras que podiam servir para o reassentamento das famílias e assim a edilidade podia continuar com a sua vala comum. Percebemos que o reassentamento jamais seria possível, por isso, pedimos ao Conselho Municipal para construir um muro de vedação para não dividirmos o mesmo espaço com os mortos”, sugeriu.

Edilidade de Maputo não tem nenhum plano de encerramento da vala comum de Lhanguene

Na sua versão dos factos, a edilidade de Maputo, através do director Municipal de Morgues e cemitérios, Hélder Muando, culpou algumas famílias pela destruição do muro de vedação que separava as casas das campas e por terem invadido e construído num espaço que outrora pertencia ao cemitério.

Muando legitimou as reclamações da população do bairro Luís Cabral. Entretanto, lembrou que a vala comum foi aberta na década 70 e que os corpos não reclamados geralmente são depositados naquele espaço nas primeiras horas do dia.

Relativamente a ideia do encerramento da vala comum, Muando referiu que não existe nenhum plano em curso para o efeito, tendo ainda revelado que a edilidade de Maputo tem mantido encontros com as famílias que vivem nas imediações da vala comum, com o claro propósito de ouvir a preocupação das mesmas, assim como explicar a postura municipal.

Aliás, Hélder Muando, ignorando queixas sobre cheiro nauseabundo, declarou que durante os encontros promovidos pelo Município de Maputo as famílias nunca chegaram de pedir o encerramento da vala comum, mas sim pediram que o carro que transportava corpos escalasse aquele espaço nas primeiras horas do dia, tendo igualmente adiantado que está em marcha a construção do muro para o portão do cemitério esteja sempre fechado.

Crianças que vivem ao lado do cemitério podem desenvolver traumas

Para a psicóloga Nilda Martins, para além dos problemas de saúde, as crianças cujas famílias são vizinhas da vala comum e vivenciam cenários perturbadores como ossadas arrastadas por cães para seus quintais, bem como cheiro putrefacto de corpos humanos, podem desenvolver traumas ao longo do crescimento.

“Passar por algum tipo de violência na infância pode gerar uma série de consequências imensuráveis para a vida de uma criança, que deveria estar sendo protegida em seus direitos fundamentais. Entre os impactos que essas violações trazem, estão traumas e sequelas que reforçam a importância do cuidado com a saúde mental para um desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Agora, as crianças que vivem perto da vala comum podem guardar sequelas para toda a vida”, revela.

No entender da psicóloga, as famílias deviam blindar as famílias daquele ambiente fúnebre, pois mesmo os adultos não conseguem lidar com cadáveres.

“Mudar de residência talvez seria a melhor opção, mas isso envolve custos que não se suportam de dia para noite. As famílias devem proteger as crianças daquele ambiente fúnebre”, concluiu.

Promo������o

Facebook Comments