Especialistas criticam falta de consistência dos programas da agricultura e a sua interrupção a cada novo ciclo

DESTAQUE ECONOMIA SOCIEDADE
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  • Analistas criticam importação de modelos externos, como ProSavana ou Revolução Verde
  • “O País não precisa de segurança alimentar, mas sim de soberania alimentar” – alertam

Numa altura em que o Governo moçambicano sinaliza o abandono do programa “Sustenta”, surgem críticas severas de especialistas que alertam para a ausência de uma política agrária estruturada e sustentável em Moçambique. A mudança de paradigma, que afasta o Estado de um papel mais interventivo para apostar no sector privado, é vista por académicos e analistas como mais um episódio de descontinuidade institucional num País onde cada ciclo governativo parece começar do zero. Em parte, as suas opiniões surgem em reacção aos últimos pronunciamentos do Ministro da Agricultura e Pescas, Roberto Albino, que deu o “último adeus” ao Sustenta e manifestou foco nos seus novos programas de desenvolvimento agrícola. 

Elisio Nuvunga

Durante um encontro de reflexão realizado, recentemente, em Maputo, economistas, agrónomos e académicos abordaram os principais desafios e impasses da agricultura moçambicana. O debate foi marcado por críticas à curta visão das políticas públicas e à falta de continuidade entre programas governamentais.

O especialista Luís Muchanga foi directo ao ponto ao afirmar que o país vive um vazio institucional na condução do sector agrícola. Para Muchanga, a inexistência de uma lei clara ou de uma política nacional de agricultura, explica por que razão cada novo dirigente implementa o seu próprio programa, muitas vezes ignorando ou rejeitando o que foi feito pelo seu antecessor.

“Nunca estamos a pensar o país de forma holística e a médio e longo prazo. Este círculo vicioso de políticas desconectadas prejudica o próprio desenvolvimento”, sublinhou.

Segundo Luís Muchanga, embora a Constituição estabeleça a agricultura como a base do desenvolvimento nacional, essa directriz não se traduz em instrumentos concretos como leis e políticas públicas coerentes. Esse facto, segundo Muchanga, cria um vazio entre a intenção institucional e a prática, impedindo que o sector se desenvolva de forma consistente.

Além disso, criticou a importação de modelos externos, como o ProSavana ou a chamada Revolução Verde, que não foram adaptados à realidade moçambicana e falharam em responder às necessidades do sector familiar, responsável por sustentar boa parte da produção agrícola no país.

O economista Roberto Tibana destacou que a agricultura não se desenvolve sem infra-estruturas, enfatizando que o problema da segurança alimentar não se resume à produção de alimentos, mas também ao acesso a esses produtos, o que exige rendimentos, estradas, armazéns e sistemas de conservação.

“Pode-se produzir, mas sem condições para escoar, conservar ou armazenar, toda a produção se perde. A ausência de investimento público em infra-estrutura rural é um dos principais problemas”, disse, para depois alertar que o financiamento ao sector agrícola precisa de ser diferenciado e adaptado à sua realidade.

 “Não se pode aplicar à agricultura o mesmo modelo de crédito usado para o sector de importação. São riscos, ciclos e necessidades completamente diferentes”, explicou defendendo um “modelo de investimento público com potencial de multiplicação, capaz de impulsionar o desenvolvimento rural de forma estruturada e de longo prazo”.

É preciso um Governo sensível que entenda o agricultor

Francisco dos Santos, outro especialista em agronomia, destacou que o verdadeiro “entrave” ao desenvolvimento agrícola está na ausência de um mercado ajustado à produção nacional.

“Não vale a pena falar de agronomia sem falar de economia. Os produtores precisam de mercado. Precisam de um Governo sensível que entenda que o agricultor só será competitivo se tiver quem compre e se os custos forem viáveis”, afirmou.

Dos Santos criticou a política fiscal actual, defendendo impostos mais atractivos e diferenciados para os sectores primário e secundário.

“Não faz sentido que os impostos para quem produz alimentos sejam os mesmos que para quem presta serviços ou importa bens de luxo. Precisamos de uma política cambial e fiscal alinhada com os objectivos de desenvolvimento do sector produtivo”, acrescentou.

O agrónomo Luís Ferreira foi ainda mais longe ao afirmar que Moçambique tem feito escolhas fáceis, optando por modelos que garantem acesso a divisas em vez de investir numa estrutura produtiva sólida. Para ele, o país inflacionou a sua economia de forma a perder competitividade regional.

“O gasóleo no Malawi custa 53 meticais, em Niassa custa 93. O ordenado mínimo no Malawi é de 2.400 meticais, na Tanzânia é 3.500. Mas o PIB desses países é igual ou inferior ao nosso. Isso mostra que há algo profundamente errado na forma como gerimos a economia”, afirmou.

Ferreira sublinhou que a agricultura é, antes de tudo, uma questão económica e que o país precisa de alinhar as suas políticas macroeconómicas, sobretudo “cambial e fiscal” com os objectivos de desenvolvimento agrícola. Defendeu ainda incentivos reais ao empresariado nacional, sublinhando que pequenos e médios empresários podem integrar os agricultores familiares em cadeias de valor mais sofisticadas, desde que tenham apoio e segurança para investir.

O país não precisa de segurança alimentar, precisa de soberania alimentar

Todos os intervenientes convergiram na ideia de que Moçambique precisa de uma verdadeira reforma institucional no sector agrário. Além de infra-estruturas, mercado e financiamento, é necessário repensar o papel do Ministério da Agricultura, dotando-o de instrumentos, visão e orçamento para garantir a soberania alimentar, conceito que substitui a ideia limitada de “segurança alimentar” com base em importações.

 “Só o povo moçambicano pode garantir a sua alimentação. Produtos importados não garantem soberania”, frisou Muchanga.

Por fim, os especialistas destacaram o papel essencial do sector familiar, que continua a ser a principal base de resiliência no país.

“Se não fosse o sector familiar, a pobreza em Moçambique seria ainda mais extrema”, alertou Muchanga, reforçando que o Estado deve assumir o compromisso de integrar políticas sociais, económicas e produtivas com o objectivo de reduzir a pobreza, gerar emprego rural e garantir dignidade às famílias moçambicanas.

O encontro terminou com um apelo colectivo: é preciso parar, pensar e decidir, de forma institucional e estratégica, qual é o verdadeiro projecto agrícola de Moçambique. E, acima de tudo, é preciso que esse projecto sobreviva aos ciclos eleitorais.

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