Com o barco a afundar: Um ano após as eleições, nada mudou na essência do partido Frelimo

DESTAQUE POLÍTICA
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  • ANAMOLA eleva fasquia de popularidade e Frelimo ainda não acordou para a realidade
  • A velha máquina da Frelimo resiste às mudanças e o vazio abre espaço ao novo
  • Frelimo protege o poder, os negócios e as lealdades, mas arrisca-se a perder o povo
  • “Camaradas” continuam a operar com a mesma sensação de impunidade, com os negócios do Estado
  • Se eleições fossem hoje, provavelmente haveria um tetê-a-tetê com o ANAMOLA

Enquanto a nova estrela política, Venâncio Mondlane, e o seu recém criado partido ANAMOLA elevam a fasquia da popularidade com um discurso de mudança concreta que penetra facilmente nas camadas mais jovens, mas também numa fasquia significativa de adultos e até idosos cansados de marginalização e frustrados pelos mais de 50 anos de uma governação que produziu uma minoria capitalista e ao mesmo tempo uma maioria a viver na míngua, a máquina da Frelimo permanece aprisionada às suas velhas práticas: arrogância, predação de oportunidades e uma estrutura montada para servir a lealdades internas, não ao País.

Evidências

No passado dia 09 de Outubro, o País assinalou um ano após um processo eleitoral que a manteve, diga-se a ferro, fogo e a gás lacrimogéneo, no poder, mas que representou um abalo sísmico na sua hegemonia, a Frelimo governa como se a derrota nas urnas nas principais cidades nunca tivesse acontecido.

A promessa de renovação e autocrítica esbarra numa realidade de inércia, onde as estruturas do partido parecem mais dedicadas a preservar os feudos das famílias dominantes e alimentar a máquina de negócios dos “camaradas” do que a responder ao descontentamento popular, sobretudo dos mais jovens, que impacientes e sedentos por transformações urgentes, lideraram quase cinco meses de manifestações, que nalgum momento resvalaram em violência.

A imagem da Frelimo hoje é a de um barco a afundar, com a tripulação mais preocupada em redistribuir os espólios restantes do que em tapar os buracos, como era de se esperar depois da mensagem clara que foi deixada durante as manifestações da dita Geração Z, que desafia balas e gás lacrimogéneo e é capaz de marchar até aos Centros do poder, tal como se viu recentemente em Nepal e Madagáscar.

Apesar do discurso de reconciliação e unidade nacional, a prática no terreno mostra um partido que não caiu na realidade. A arrogância do poder, longe de ter sido atenuada pelo voto de protesto, mantém-se intacta nos corredores da Rua da Frente de Libertação de Moçambique, onde se localiza a sede do poder político.

Apesar de Filipe Nyusi estar fora do poder desde Janeiro de 2025, internamente a Frelimo está mais “nyusista” do que nunca. A composição da sua Comissão Pólítica, amplamente montada e controlada por Filipe Nyusi, é vista por muitos analistas como um instrumento de controlo e não de direcção política clara.

A apatia e a falta de debate vigoroso são a norma, com a lealdade aos grupos de interesse a sobrepor-se à necessária crítica e ao impulso renovador de que o partido desesperadamente precisa para se manter actual e relevante num contexto em que a ameaça já não é apenas um grupo de vândalos e  marginais com pneus em chamas na mão. Tem nome. Chama-se ANAMOLA, tem endereço e uma liderança avassaladora que em tão pouco tempo caminha bem lançada para atingir a fasquia de um milhão de membros.

A morte quase anunciada ou apatia dos partidos tradicionais, associada à falta de respostas concretas para os anseios do povo por parte da Frelimo estão a transformar o ANAMOLA num movimento bastante forte que, se as eleições fossem hoje, poderia protagonizar um tetê-a-tetê com o partido no poder.

A Frelimo encontra-se numa encruzilhada histórica. Pode escolher continuar o seu curso actual, ignorando os sinais de alerta e acreditando que o controlo do aparelho de Estado é suficiente para se manter no poder indefinidamente. No entanto, essa estratégia tem um preço: o aprofundamento do fosso com a população e o fortalecimento da oposição.

Um ano depois das eleições, a mensagem é clara: nada mudou na essência do partido no poder. E, num país onde a maioria da população é jovem e ansiosa por mudança, parar no tempo é, talvez, o maior risco que a Frelimo pode correr. O barco pode não estar apenas a afundar-se lentamente; pode estar a preparar-se para um naufrágio político de proporções histórias.

A sombra de Nyusi e a Comissão Política apática

Esta lógica estende-se para além da estrutura partidária. Os cargos-chave no aparelho de Estado, desde governadores provinciais, conselheiros do PR, até presidentes de municípios onde a Frelimo venceu, foram preenchidos por homens de confiança e leais a Nyusi, que continua a ter uma influência informal.

O novo Presidente da República e simultaneamente do seu partido, Daniel Chapo, não conseguiu até aqui livrar-se da sombra de Filipe Nyusi e da influência de “donos da Frelimo” como Alberto Chipande e Filipe Paunde, que continuam a estar no centro de tomada de decisões.

Casos há de governantes, incluindo ministros, alguns envolvidos em escândalos claros de corrupção e outros simplesmente incompetentes nas missões para as quais foram confiados, mas que não podem ser mexidos, porque estão no Executivo no interesse de alguns camaradas poderosos.

Trata-se menos de meritocracia e mais de assegurar que o controlo sobre os recursos e o aparelho decisório permaneça nas mãos de um círculo restrito. O partido, que devia se resignar e procurar se contrar novamente com as massas e no povo que alguma vez disse ser o farol, não conseque se livrar da imagem de um mecanismo de distribuição de cargos e privilégios, sobretudo a jovens oriundos da OJM, muitos dos quais sem competência alguma, senão habilidades de bajulação.

Órgãos da Frelimo mantêm-se “inúteis” ao Governo

Num contexto de desafios cada vez mais presentes, a Frelimo encontra-se quase ausente da vida do Governo. Mesmo com a mesma administração, os órgãos da Frelimo, a nível mais alto, mantêm-se uma sombra institucional, presa a uma rotina de aplausos e formalidades. As reuniões, outrora espaços de debate ideológico e confronto construtivo, tornaram-se cerimónias protocolares onde reina o silêncio cúmplice e a reverência ao poder.

A Comissão Política (CP) mantém-se aquele órgão que vai dando eco às decisões do seu Presidente, sem ao menos dar uma palmadinha nos casos em que há desnorte no Governo. Segundo uma fonte do órgão, é um cenário paradoxal, num tempo em que a governação enfrenta crises de legitimidade, má gestão e contestação popular, o órgão mais influente do partido no poder comporta-se como um simples eco das vontades superiores.

A questão que se coloca é: por que um grupo de dirigentes, muitos já no fim da carreira política, se limita a bajular, em vez de contribuir com a experiência acumulada ao longo dos anos? A resposta está, talvez, na ausência de senso de responsabilidade e no medo de contrariar a hierarquia. A cultura política da Frelimo habituou-se a confundir disciplina partidária com subserviência.

O resultado é uma Comissão Política formada por velhos que, segundo vozes internas, passam mais tempo a discutir agendas fúteis, falar de inimigos do partido, do que a enfrentar os verdadeiros dilemas nacionais.

As sessões terminam invariavelmente com mensagens de saudação, votos de confiança e discursos de encorajamento ao Governo, como se o país não estivesse mergulhado em problemas estruturais que exigem coragem, lucidez e ruptura com o passado. Esta tradição de complacência, segundo vozes internas, perpetua os erros e banaliza os desafios, transformando a crítica em tabu e o conformismo em virtude.

O mesmo erro alastra-se ao Comité Central, o maior órgão deliberativo entre congressos, composto por 250 membros efectivos. Desses, contam-se pelos dedos das duas mãos aqueles que intervêm de forma contundente e independente. O resto limita-se a assistir, aplaudir e votar por unanimidade resoluções previamente alinhadas.

Nos primeiros meses desta governação, a tendência manteve-se: a tradição de vassalagem e silêncio prevaleceu sobre o debate. Até mesmo aqueles membros que, fora de lides políticas são tidos como “radicais” ou “vozes dissonantes”, internamente optam por uma postura de prudente conformismo. Ninguém quer ser o primeiro a levantar a voz, com medo de perder favores, posições ou promessas. A consequência é clara: o Governo não é monitorado e o partido, que devia exercer supervisão e controlo político sobre o Executivo, converte-se num mero prolongamento deste.

De forma subtil mas eficaz, o Governo consegue blindar-se ao colocar os seus ministros estratégicos no Comité Central e, em certos casos, na própria Comissão Política. É uma forma de neutralizar qualquer veleidade de fiscalização interna. O que devia ser um espaço de vigilância partidária sobre a actuação governamental transforma-se, assim, num escudo de auto-protecção. O partido serve o Governo, e não o contrário.

O diagnóstico é duro, mas inevitável: a Frelimo tornou-se um partido de Governo sem voz sobre o Executivo. Apenas um grupo de veteranos continua a se impor, enquanto os jovens  prestam-lhes vassalagem e “lambidelas”. A máquina partidária, inchada de veteranos e dependente de uma lógica de clientelismo, perdeu o pulso da realidade. Os seus debates são cada vez mais estéreis, as suas decisões previsíveis e a sua acção política reduzida a gestos de propaganda.

A ausência de renovação geracional acentua o problema. Jovens quadros, ainda que competentes e críticos, raramente têm espaço para emergir. O partido, segundo sentencia uma fonte, vive numa bolha temporal onde os símbolos do passado ainda ditam as regras do presente. O medo de romper com a velha guarda paralisa qualquer tentativa de modernização interna.

A novidade, se é que se pode chamar assim, é a previsão de uma “reunião de quadros” para o próximo ano. Espera-se que esse encontro sirva de momento de introspecção, mas o contexto político é dos mais exigentes dos últimos anos. A oposição, embora fragmentada, começa a consolidar alternativas. O surgimento do Anomola como nova força política, ainda que em fase embrionária, é sintoma de um desgaste interno profundo na Frelimo e de uma sede de mudança na sociedade.

A ironia é que o partido sexagenário, que conseguiu durante décadas neutralizar a Renamo através de estratégias políticas e acordos pontuais, parece agora desarmada perante um novo tipo de contestação, não vinda das armas, mas das ideias e da descrença popular.

O partido que libertou o país precisa, agora, de libertar-se de si próprio. De romper com a cultura de medo, da bajulação e da inutilidade política. Devolver sentido aos seus órgãos, restituir autoridade moral à Comissão Política e dar voz real ao Comité Central.

A velha cultura de predação, corrupção e agora os cartéis

Sem ideias, o partido transformou-se num barco a afundar, a máquina de corrupção e predação de oportunidades, longe de ter sido desmontada, adaptou-se. Os cartéis digladiam-se entre si pelo controlo das “boladas”.

Os “camaradas” continuam a operar com a mesma sensação de impunidade, com os negócios do Estado a serem desviados para as mãos de sempre. A grande diferença é que, hoje, esta prática ocorre sob o olhar mais atento de uma opinião pública cansada e de uma oposição revitalizada.

Enquanto a Frelimo navega na sua bolha, a realidade do cidadão comum permanece marcada pelo custo de vida elevado, pela falta de empregos e por serviços públicos precários. A desconexão entre a liderança do partido e o povo que diz representar nunca foi tão grande. O Governo prometeu uma série de iniciativas visando aliviar o custo de vida e apoiar iniciativas juvenis e não só, mas ainda não saíram do papel de forma efectiva.

ANAMOLA: uma força bruta subestimada

Neste cenário de estagnação, emerge a figura de Venâncio Mondlane e o ANAMOLA. A sua popularidade não é um acidente. Ela é construída sobre o vazio deixado pela Frelimo. Enquanto o partido no poder se fecha, Mondlane abre janelas de diálogo directo. Enquanto a Frelimo fala em linguagem de comício, o ANAMOLA comunica através das redes sociais.

Ele elevou a fasquia do que se espera de um político em Moçambique. A sua postura e a sua capacidade de capitalizar o descontentamento funcionam como um espelho embaraçoso para a Frelimo, mostrando que é possível fazer política de uma forma diferente, mais ágil e próxima das pessoas.

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