Mueda: A Terra Imune Onde o Silêncio dos Generais Makonde Ensurdece Cabo Delgado

OPINIÃO
Share this

John Kanumbo

Há terras que sangram e há terras que mandam. Em Cabo Delgado, há distritos inteiros reduzidos a cinzas, aldeias queimadas, crianças fugidas, mulheres violadas e sonhos degolados. E há Mueda — serena, intocada, altiva, reconstruída com estradas, edifícios e energia eléctrica como jamais se viu numa província em guerra. A pergunta impõe-se como ferida aberta: por que razão Mueda permanece imune ao terrorismo, enquanto o resto de Cabo Delgado chora?

Há, sim, perguntas que doem, mas precisam de ser feitas: repito, por que Mueda, o berço simbólico da libertação de Moçambique, permanece imune ao terror que devasta Cabo Delgado? Por que a terra dos generais, dos heróis e dos intocáveis continua em paz, enquanto o resto da província sangra, queima e foge?

Esta não é uma provocação gratuita ou porque aquele jovem durante o comício em Mocímboa da Praia fez. É uma constatação que exige coragem para ser dita. Mueda — outrora uma vila esquecida e árida, sem água, sem estradas nem futuro — transformou-se hoje num espaço de desenvolvimento raro, quase inverosímil em tempos de guerra. Enquanto Mocímboa da Praia foi destruída, Muidumbe e Macomia desfiguradas, Palma ferida e Nangade empobrecida, Mueda floresce. Há geografia estranha nessa guerra. Há ali estradas novas, infra-estruturas, electrificação, construções sólidas e sinais de progresso que contrastam brutalmente com o cenário de deslocamento e ruína dos outros distritos. E todos fingem não ver.

O mito fundador e a apropriação da história. Mueda é o altar sacrossanto do mito nacional moçambicano. É o palco do Massacre de 1960 — onde a revolta contra o colonialismo português foi transformada em símbolo da libertação. A partir daí, a história oficial construiu uma narrativa única: a luta começou em Mueda, pelos Makonde de Mueda, e foi vencida sob a sua liderança. Mas quem vive e conhece Cabo Delgado sabe que a verdade é mais complexa: a luta nasceu em vários cantos — Muidumbe, Nangade, Mocímboa da Praia, Macomia — e contou com muitos heróis que o Estado esqueceu.

Com isso, Mueda depois da independência se apropriou-se o centro do imaginário nacional porque lá nasceu a narrativa da libertação. O massacre de 1960, com números ainda disputados entre 500 outros dizem 600, e 6.000 mortos, foi transformado no símbolo máximo da revolta popular. Mas essa história — que deveria ser plural — foi, ao longo dos anos, apropriada e monopolizada por uma elite político-militar que fez da identidade makonde o pilar da legitimidade revolucionária. Outros protagonistas — de Muidumbe, Nangade, Macomia, Mocímboa e até dos vizinhos megomanos, Lindi, Niwala (Tanzania) — foram apagados ou reduzidos a notas de rodapé. A glória foi centralizada, e com ela veio o poder. O problema é que a história da libertação foi apropriada por um grupo que dela fez trono, escudo e coroa. Os Makonde de Mueda transformaram-se na aristocracia revolucionária — os generais, os chefes, os intocáveis.

O poder em Cabo Delgado tem terra natal. Desde a independência, o poder político e militar moçambicano tem sotaque makonde e origem muedense para Cabo Delgado e sotaque machangana e ronga de origem sul do país para liderança governativa. Os nomes são conhecidos e sagrados na história oficial: Alberto Chipande, o homem do “primeiro tiro”; Lago Lidimu, o juiz da guerra; Pachinuapa, veterano de ferro; Ntumuke, o homem do reconhecimento; Marina Pachinuapa, símbolo da resistência feminina. Mas hoje, todos eles partilham algo em comum: o silêncio. Um silêncio que pesa como pedra sobre o sofrimento de Cabo Delgado. Um silêncio que, vindo de quem iniciou a libertação, soa agora como a rendição moral de uma geração.

A partir dessa apropriação nasceu uma oligarquia histórica, composta por nomes venerados. São símbolos da luta, mas também guardiões de um silêncio pesado. Homens e mulheres que viram a guerra de libertação, mas agora assistem calados a uma nova guerra — fratricida, desumana, e desta vez dentro da própria casa.

A imunidade da terra sagrada. Mueda não é atacada porque é sagrada dentro da arquitectura do poder. É o coração simbólico da FRELIMO, o solo de onde brotaram os generais, os ministros, os seguranças do Estado. Ali se ergueram quartéis, redes de vigilância todas às organizações não-governamentais estão ai e lealdade inquebráveis. Os terroristas, ainda que digam lutar contra o Estado, contra kafiri e cristão, sabem onde não tocar. Mueda é o santuário dos intocáveis — a fortaleza da história oficial. Os terroristas sabem que Mueda é intocável — não por medo espiritual, mas por cálculo estratégico. Combinação e jogo de interesse. Atacar Mueda seria atacar o coração de quem ainda comanda o país e eles. Enquanto isso, os distritos periféricos vulneráveis sem entidade máxima no poder político e militar oficialmente e mito nacional” — Muidumbe, Mocímboa, Macomia, Nangade — são tratados como zonas sacrificáveis, margens da história, campos de dor sem valor político. A imunidade de Mueda revela, assim, o que muitos não querem dizer: há uma hierarquia do sofrimento em Cabo Delgado.

Mas essa imunidade tem um preço: ela expõe as feridas de todos os outros distritos. O sangue derramado em Mocímboa da Praia, em Palma, em Macomia, em Nangade, corre em direcção ao planalto, mas ali seca. Não há lágrimas oficiais, não há discursos sinceros, não há responsabilidade política. Há apenas o silêncio sepulcral dos veteranos, um silêncio que fala mais alto que qualquer comunicado militar.

O silêncio dos heróis. Dói ver Chipande — o homem do primeiro tiro — terminar a sua vida pública sem dizer uma palavra sobre o último tiro. Dói ver os que foram deuses da revolução tornarem-se sombras que observam em silêncio enquanto o povo é degolado nas aldeias. Dói perceber que o mesmo espírito que libertou o país parece hoje aprisionado por um sistema que se alimenta da glória passada e do medo presente. Mas o silêncio também é uma escolha política. É o escudo de quem já não tem coragem de confrontar o próprio espelho da história. E talvez, como digo sempre com sabedoria, o silêncio seja o último tiro — não o que liberta, mas o que encerra uma era.

Essa guerra e uma geografia da desigualdade de um poder selectivo. Há uma linha invisível que separa o Cabo Delgado dos que mandam e o Cabo Delgado dos que morrem. O desenvolvimento de Mueda — por mais justo que seja para os seus habitantes — tornou-se símbolo de um privilégio selectivo. Enquanto a guerra se alimenta do abandono, Mueda é o retrato do investimento e da protecção. As máquinas do Estado trabalham ali como se não houvesse crise; as forças armadas circulam ali com tranquilidade. As ONG estão aí sem medo. E o resto do norte principalmente vizinho? Vive sob medo, fome e deslocamento.

Quem regressa hoje a Mueda vê algo inédito: novas estradas asfaltadas, prédios em construção, comércio, energia e telecomunicações. Num país em guerra, Mueda parece viver o seu próprio “milagre”. Mas não há milagres na política moçambicana — há prioridades de poder.

Os investimentos concentram-se ali não por acaso, mas por lealdade e herança. Enquanto Mueda floresce, os outros distritos — os que não têm “filhos generais” — sobrevivem entre deslocações, fome e abandono. O resultado é um Cabo Delgado dividido: um planalto protegido e um litoral esquecido. Este desequilíbrio é o espelho do país. A libertação prometida não se traduziu em liberdade partilhada. Transformou-se em libertação privatizada, com herdeiros do heroísmo e filhos da marginalização.

Mais trágico não é apenas a guerra — é o silêncio dos que podiam pará-la. Os veteranos makonde, que um dia empunharam armas pela libertação, hoje assistem calados ao degolamento da sua própria província. Aqueles que deram o primeiro tiro pela liberdade parecem não ter mais voz para dar o último pela dignidade. Talvez Chipande devesse, simbolicamente, disparar o último tiro — o da palavra, o da verdade, o da consciência nacional. Mas prefere o silêncio. E, assim, o silêncio tornou-se o último disparo da revolução — um disparo em branco, que ecoa sobre o vazio moral de uma nação em dor.

Não se trata de negar o valor histórico dos makonde nem dos veteranos de Mueda. Eles lutaram, sofreram e merecem respeito. Mas o respeito não pode ser sinónimo de impunidade. Quem carrega a glória da libertação também carrega a responsabilidade de defender o povo que libertou. E esse povo está hoje deslocado, decapitado, deserdado. Cabo Delgado sangra, e Mueda brilha — e nisso há algo moralmente errado. Porque a verdadeira vitória de um herói não é manter o seu chão limpo de sangue, mas impedir que o sangue do seu povo se torne lama nas fronteiras vizinhas.

A minha hipótese da última palavra. Talvez tenha chegado a hora de os generais falarem. Não com discursos partidários, mas com a consciência histórica de quem deve ao povo a verdade. O patriotismo verdadeiro. Talvez o país precise de ouvir novamente um “primeiro tiro” — não de armas, mas de verdade. Porque a paz que se cala diante da injustiça não é paz, é cumplicidade. E o silêncio de Mueda, por mais disciplinado e reverente que pareça, é o eco do medo de um país que não quer olhar para o espelho da sua própria história. Mueda está imune, sim — mas o preço da imunidade é a alma de Cabo Delgado. E quando o silêncio se torna política, o último tiro da libertação transforma-se no primeiro da vergonha nacional.

Promo������o
Share this

Facebook Comments