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Nilza Dacal
Há momentos na história em que o poder esquece que existe para servir, e passa a existir apenas para se perpetuar. É quando o Estado se desvia da sua missão pública e transforma-se num instrumento privado nas mãos de quem o ocupa. É nesse instante, silencioso e corrosivo, que as nações começam a ruir, não com o som das bombas, mas com o peso das traições políticas, da corrupção institucional e da indiferença moral.
Cada jogo tem as suas leis silenciosas, seja no futebol, na política ou na vida pública. No desporto, o árbitro apita e o jogo recomeça, mas, na política, o apito é abafado por quem deveria escutá-lo. As faltas acumulam-se, desde as promessas de mais emprego para a juventude até aos projectos de infra-estruturas que tardam em sair do papel e o povo, cansado de ser espectador, começa a perceber que o jogo está viciado.
Quando a política, que deveria ser a arena do bem comum, foi sequestrada por interesses que a distorcem, os governantes confundem mandato com propriedade, e o Estado com a sua própria vontade. Em nome da estabilidade, sacrificam a transparência; da unidade, suprimem a crítica; e da soberania, perpetuam o medo.
Em democracias frágeis, a manipulação das instituições é o novo golpe. Já não se precisa de tanques para derrubar um sistema, basta controlar os tribunais, como tantos analistas receiam, silenciar a imprensa, manipular os dados económicos e esvaziar o parlamento do seu papel fiscalizador. Assim, o poder sobrevive sem legitimidade, governa sem moral e representa sem ouvir.
O discurso nacionalista, tantas vezes usado como escudo, torna-se uma cortina para esconder incompetência e corrupção. Fala-se de “pátria” para justificar o privilégio, de “ordem” para encobrir o abuso, e de “soberania” para silenciar o dissenso. A verdade, contudo, é simples: nenhum Estado é soberano quando o seu povo é refém do medo.
A corrupção não é apenas um desvio ético; é, por vezes, uma estratégia política que alimenta a dependência, garante lealdades e sufoca a renovação. Quando o desvio de fundos públicos se mede em percentagens do PIB, o mérito morre e o futuro de gerações inteiras empobrece. As elites políticas, fechadas nos seus círculos, esquecem que governar é representar o povo, não o explorar.
O verdadeiro líder não é aquele que vence eleições, mas aquele que resiste às tentações do cargo. Liderar é ter coragem de contrariar aliados, de enfrentar o sistema e de reconhecer os próprios erros. É entender que o poder não é um fim, mas um meio para servir, reformar e libertar.
As nações ruem quando a cidadania é transformada em plateia e o povo convocado apenas para votar e depois convidado a calar-se. Ruem quando o parlamento é reduzido à formalidade, quando a justiça se torna selectiva, e quando a imprensa é tratada como inimiga. Ruem quando a crítica é censurada e o pensamento livre é substituído pela propaganda.
A história política recente ensina que nenhum poder é eterno. Governos que pareciam inabaláveis caíram por causa da corrupção e da arrogância. Regimes que se julgavam indestrutíveis sucumbiram ao silêncio das ruas que deixaram de acreditar. O povo, mesmo adormecido, nunca perde o direito de despertar.
A estabilidade sem ética é apenas uma pausa antes do colapso. O desenvolvimento sem justiça é apenas ilusão estatística. E a unidade sem liberdade é apenas disciplina de medo. O Estado que ignora estas verdades prepara o seu próprio declínio.
A grandeza de uma nação não está nos palanques nem nos discursos oficiais, mas na integridade das suas instituições, na coragem dos seus cidadãos e na independência dos seus juízes. O poder que governa pela propaganda pode resistir, mas não prevalece. O tempo, inexorável, expõe o que o aplauso tenta esconder.
O futuro não pertence aos que controlam, mas aos que libertam. Não aos que mentem, mas aos que dizem o que precisa de ser dito, mesmo que doa. Governar é ter a coragem de agir com ética quando é mais fácil ceder à conveniência. É compreender que o povo não é massa de manobra, mas o árbitro supremo do jogo político.
E quando o poder esquece as regras do jogo, cabe à cidadania recordá-las, não com violência, mas com consciência e coragem. Porque o verdadeiro soberano não é o governante: é o povo. É ele quem legitima o poder, quem sustenta o Estado é quem, em última instância, paga o preço pelos erros e pelos abusos do poder.
Quando o povo desperta, não joga mais o jogo imposto: muda as suas regras. Deixa de ser espectador e torna-se árbitro e autor do seu próprio destino. Rejeita as promessas vazias, exige transparência, cobra resultados e reconstrói a nação sobre novos alicerces: justiça que não se vende, dignidade que não se negocia e liberdade que não se teme.
Porque uma nação só se torna verdadeiramente livre quando o seu povo compreende que o poder é apenas um mandato temporário, e que as regras do jogo democrático pertencem, em última instância, à consciência colectiva de todos os cidadãos.



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