Levantamento de “força maior” veio com uma factura de biliões e anos de exploração a custo de banana

DESTAQUE ECONOMIA
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  • Governo ainda não se decidiu, mas é tentado a aceitar condições menos vantajosas
  • Empresa aproveitou momento de fragilidade económica para jogar as suas cartas

Um silêncio cauteloso paira sobre o Governo após a TotalEnergies ter anunciado o levantamento do estado de “força maior”, colocando fim a mais de quatro anos de incerteza. Contudo, longe de ser um sinal claro de retoma, a divulgação na imprensa de uma carta dirigida ao Presidente da República, com uma série de exigências que altera profundamente a equação económica do projecto, com destaque para a incorporação de cerca de USD 4.5 mil milhões em custos adicionais para “reparar parcialmente o impacto económico” da paralisação e uma extensão de 10 anos no prazo do Período de Desenvolvimento e Produção do campo de Golfinho-Atum traça um cenário sombrio sobre os reais ganhos do Estado moçambicano. A investida de mestre da Total Energies acontece numa altura de grande fragilidade económica de Moçambique, marcada pela crise de divisas, insustentabilidade da dívida, falta de liquidez e pressão crescente sobre o que pode forçar o Governo a ceder a uma proposta por muitos considerada “abusiva” e “maximalista”, que pode garantir lucros-extras avultados para a empresa à custa dos interesses de Moçambique. Para já, segundo fontes internas, o Executivo até agora não tomou decisão, estando a compulsar legislação para aferir a legalidade das exigências.

Reginaldo Tchambule e Elísio Nuvunga

Num comunicado oficial dirigido ao Presidente da República, a TotalEnergies, em nome dos parceiros do projecto Área 1, justifica o relançamento com base nas melhorias de segurança garantidas pelo Governo e pelas forças aliadas ruandesas. Contudo, a carta, datada de 24 de Outubro, rapidamente transita das boas notícias para uma lista de exigências que altera profundamente a equação económica do projecto.

Entretanto, o ponto mais polémico da missiva, vazada deliberadamente, é o pedido de uma extensão de 10 anos no prazo do Período de Desenvolvimento e Produção do campo de Golfinho-Atum, um acréscimo que duplica e mais a compensação técnica pelo tempo perdido (que seria de 4,5 anos). A empresa alega que precisa dessa compensação para “reparar parcialmente o impacto económico” da Força Maior.

Como suposta contrapartida para esta extensão vantajosa, a TotalEnergies propõe uma alteração no Acordo de Financiamento da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH). A alteração permitiria que a ENH, parceira estatal no consórcio, reembolsasse os seus custos de desenvolvimento antes de liquidar outras dívidas do projecto.

À primeira vista, parece um alívio para as finanças da ENH. No entanto, analistas vêem isso como uma manobra para trancar a estatal num ciclo de endividamento.

Paralelamente, a petrolífera pressiona pela aprovação de um aumento de custos do projecto na ordem de 4,5 mil milhões de dólares, um valor que o Governo terá de escrutinar com lupa para evitar que o país acabe a suportar custos inflacionados que corroem as suas futuras receitas.

Em suma, Moçambique, que tanto anseia pelos royalties e receitas fiscais do projecto, poderá ver o seu “bolo” de receitas adiado de forma significativa.

Nos bastidores, o levantamento da força maior pela TotalEnergies é interpretado por alguns sectores como uma estratégia para “agitar o mercado” e transferir o ónus da decisão final para o Executivo moçambicano.

Especialistas em Direito e Economia dos recursos naturais ouvidos pelo Evidências alertam para o perigo dessa concessão.

“A Força Maior, reconhecida no contrato (CCEP), já prevê uma extensão automática do prazo equivalente ao período de paralisação – que são 4,5 anos. Pedir 10 anos é um excesso sem justificação técnica clara. É, na prática, uma maneira de garantir o direito de explorar e vender o nosso gás por mais uma década, muito para além do necessário, sem que o país veja uma contrapartida financeira proporcional”, explica um economista que preferiu não se identificar.

Governo analisa com cautela o levantamento da “força maior” pela TotalEnergies

O Governo moçambicano está a analisar com algum receio o anúncio da TotalEnergies sobre o levantamento da força maior no projecto de gás natural em Afungi, Cabo Delgado. A informação, que agitou o mercado petrolífero nacional, ainda não foi formalmente discutida ao mais alto nível, segundo confirmou uma fonte governamental ligada ao sector energético.

“Ainda não nos sentamos para analisar o conteúdo da carta. O assunto está a ser avaliado e aguardamos também a reacção do Presidente da República, a quem foi endereçada a carta”, referiu a fonte.

De acordo com a fonte do Governo, a extensão contratual de dez anos solicitada pela TotalEnergies “não está totalmente clara”, e o Executivo ainda procura compreender “a base legal” dessa proposta.

“Tecnicamente, o tempo de paragem por força maior é razoável e compreensível, mas uma extensão dessa magnitude precisa de ser justificada. Não existe na nossa lei um limite fixo para a duração da força maior”, explicou.

A mesma fonte observou que, embora “as condições de segurança estejam consideravelmente melhores”, o Governo pretende garantir que a retoma das operações ocorra dentro dos parâmetros legais e contratuais estabelecidos.

“Há questões que precisam de clareza e transparência. O importante agora é garantir que qualquer decisão seja tomada com base na lei e na protecção dos interesses nacionais”, sublinhou.

O Ministério dos Recursos Minerais e Energia ainda não reagiu oficialmente ao anúncio, mas espera-se que um pronunciamento formal seja feito após a análise interna do documento remetido pela petrolífera francesa.

Uma investida em momento de desespero do Governo

Ao anunciar unilateralmente o fim da força maior, mecanismo que a livrava de responsabilidades durante a insegurança em Cabo Delgado, a Total Energies transfere agora ao Governo o ónus e a pressão pública pela próxima decisão.

A investida da TotalEnergies surge num momento de notória fragilidade para a economia moçambicana. Com as finanças públicas sob stress, uma dívida pública elevada e uma pressão social por resultados económicos tangíveis.

Sentado diante de um barril de pólvora e sem dinheiro, o Governo vê-se num dilema: ceder a termos potencialmente desvantajosos para ver o tão necessário projecto e as suas receitas avançarem, ou travar uma batalha legal e negocial arriscada que pode adiar ainda mais os benefícios económicos.

O cerne do impasse, porém, não está no fim da força maior, mas nas condições que a TotalEnergies anexou a esse gesto. A mais controversa é o pedido de uma extensão de 10 anos no prazo de produção do campo de Golfinho-Atum, um acréscimo que mais do que duplica a compensação técnica pelo tempo perdido (que seria de 4,5 anos).

Economista Rui Mate alerta para riscos fiscais e políticos na retoma da TotalEnergies

Para o economista e pesquisador do Centro de Integridade Pública (CIP), Rui Mate, a retoma do projecto deve ser encarada com prudência e não com euforia. Em entrevista ao Evidências, o especialista alerta que, embora o regresso da TotalEnergies represente um sinal de confiança dos investidores, os ganhos para Moçambique poderão ser significativamente menores do que o previsto inicialmente.

“O contrato assinado entre a Total e o Governo foi profundamente impactado pela insegurança. A empresa já anunciou custos adicionais de cerca de 4,5 mil milhões de dólares, valor muito alto considerando que o investimento inicial era de 23 mil milhões. Esses custos são recuperáveis, ou seja, a Total recupera primeiro o investimento antes de começar a partilhar lucros com o Estado. Isso reduz as receitas esperadas para Moçambique”, explica Mate.

Segundo o economista, o País deve preparar-se para uma realidade em que os ganhos fiscais e de balança de pagamentos sejam inferiores aos projectados há alguns anos.

“Se o Governo esperava lucros de 10 mil milhões de dólares, e agora há custos adicionais de 4,5 mil milhões, isso significa uma perda significativa. O País precisa de rever as expectativas e renegociar alguns termos do contrato à luz dessa nova conjuntura”, adverte.

Rui Mate identifica ainda três riscos que devem ser considerados nesta nova fase: o risco fiscal, o risco de gestão de expectativas e o risco de aproveitamento político.

“Podemos ter receitas abaixo do previsto, euforias desmedidas e tentativas de usar o retorno da Total como vitrine de sucesso político, desviando o foco das reformas necessárias. É importante perceber que a produção só deverá começar por volta de 2029, portanto, os ganhos reais ainda estão distantes”, acrescenta o economista, criticando a falta de transparência na comunicação governamental sobre o processo.

“A carta da Total foi enviada em Agosto, mas só veio a público de forma não oficial (vazou). O Governo deveria ter informado o país de modo transparente sobre as condições do regresso e os custos envolvidos. A gestão inadequada da informação pode gerar frustração e desconfiança”, observa.

Apesar das incertezas, Rui Mate reconhece que o anúncio da retoma pode trazer efeitos positivos de curto prazo, sobretudo no mercado cambial.

“O retorno da Total pode aliviar a escassez de divisas, graças ao aumento do fluxo de capitais ligados à fase preparatória do projecto. Mas ainda não é o benefício real que os moçambicanos esperam. Esse só virá quando o gás começar a ser produzido e exportado”, sublinha.

Questionado sobre os riscos de a exploração de gás agravar o conflito em Cabo Delgado, Mate não descarta essa possibilidade. “Curiosamente, à medida que se falava do retorno da Total, os ataques intensificaram-se. Há interesses económicos e políticos complexos por trás do conflito, e é provável que alguns grupos tentem perturbar o processo. As forças de segurança precisam de identificar as verdadeiras causas e actores por detrás da violência”, disse.

Para o economista, evitar a chamada “maldição dos recursos” exige mais do que optimismo. É preciso transparência, rigor técnico e visão estratégica.

“As receitas do gás devem ser aplicadas em sectores produtivos como educação, saúde, infra-estruturas, agricultura para beneficiar o maior número possível de moçambicanos e também as gerações futuras. Caso contrário, corremos o risco de criar uma economia dependente, vulnerável e desigual”, alerta.

Rui Mate conclui com um apelo à responsabilidade e ao planeamento: “O maior desafio deste novo capítulo do projecto Mozambique LNG é garantir que o regresso da Total traga benefícios reais e sustentáveis. O país deve aprender com os erros do passado, gerir bem as expectativas e colocar os interesses nacionais acima das agendas empresariais e políticas.”

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