No dia em que o Governo, no Banco dos réus, rasgou a sentença e leu a sua própria defesa como veredicto

DESTAQUE ECONOMIA POLÍTICA
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  • Quando o condenado diz que é inocente, mas não convence diante das provas
  • Primeira-ministra nega desvio que o próprio Governo já reconheceu ao Tribunal Administrativo
  • Governo até comprometeu-se a regularizar os montantes não canalizados à Conta Transitória
  • Dinheiro do gás foi desviado em três parcelas de USD 800 mil; 25,78 milhões e 7,07 milhões 

Como que a “rasgar” a “sentença” do Tribunal Administrativo e ler a sua própria defesa como “veredicto”, o Governo insiste que o fiscal das contas públicas está errado em relação aos 33,65 milhões de dólares de receitas do gás natural desviados da rota legal. Dados oficiais citados pelo tribunal comprovam que o montante foi transferido em três parcelas, entre o final de 2022 e o início de 2024, sem nunca ter passado pela Conta Transitória – o cofre por onde todo o dinheiro do gás deve obrigatoriamente passar antes de ser repartido para o Fundo Soberano de Moçambique (40%) e para o Orçamento de Estado (60%). Perante as provas, o Executivo, no banco dos réus, limitou-se a negar qualquer irregularidade, argumentando que o Fundo Soberano “só foi criado em 2024”. Esta explicação, porém, desaba perante o seu próprio relatório enviado ao tribunal, onde o Ministério das Finanças admite a necessidade de “regularizar” os valores, reconhecendo implicitamente o desvio. Igualmente, ignora o princípio de transferência retroactiva que consta da Lei. Na prática, o argumento do Executivo ignora que o problema não está na inexistência do Fundo Soberano, mas sim no facto de o dinheiro nunca ter chegado à conta onde deveria ser depositado integralmente antes da partilha, revelando uma falha grave na transparência e gestão das receitas do gás.

Nelson Mucandze e Reginaldo Tchambule

O Jornal Evidências, publicou, na sua edição (232) anterior a esta, que Governo admitiu formalmente perante o Tribunal Administrativo (TA) o “desvio” de 33,65 milhões de dólares das receitas do gás natural que, por lei, deviam estar depositados na Conta Transitória antes de serem repartidos para o Fundo Soberano de Moçambique (40%) e para o Orçamento de Estado (60%).

Depois de uma comunicação algo atabalhoada da primeira-ministra, Benvinda Levi, à saída do Parlamento, na passada quarta-feira, veio o Ministério das Finanças dar uma explicação exaustiva sobre a razão da utilização dos 33 milhões fora do roteiro estabelecido por lei.

Em resposta às críticas do Tribunal Administrativo (TA) sobre uma alegada diferença de 33,6 milhões de dólares nas receitas do gás natural liquefeito da Bacia do Rovuma, o Ministério das Finanças, através do secretário de Estado do Tesouro, Amílcar Tivane, negou qualquer desvio e apresenta-se como guardião da legalidade orçamental.

Segundo o Governo, que embora réu no processo julgado pelo Tribunal Administrativo, decidiu ler sua própria sentença, o montante em causa corresponde ao Imposto sobre a Produção de Petróleo (IPP), arrecadado pela Autoridade Tributária e canalizado para a Conta Única do Tesouro (CUT), “ao abrigo do regime legal então vigente”. Ou seja, não houve desvio — apenas cumprimento da lei, sustenta o Executivo.

O argumento central é o mesmo apresentado pela primeira ministra: quando a receita foi cobrada, ainda não existia a Lei do Fundo Soberano, e, portanto, não havia base legal para destinar o valor a outro mecanismo que não fosse o Tesouro.

“Qualquer retenção antecipada seria ilegal”, justifica o Ministério, citando a Lei do SISTAFE e o princípio da legalidade das finanças públicas.

O Governo insiste que actuou com “prudência e disciplina fiscal”, equilibrando dois objectivos: respeitar a lei em vigor e preparar o caminho para a nova regra de repartição 60/40 (60% para o Orçamento do Estado e 40% para o Fundo Soberano). Na sua leitura, o dinheiro foi gasto legalmente, mas a futura parcela do Fundo será compensada “à custa do Orçamento”, para garantir que o Fundo Soberano não sofra perdas.

Uma justificação que ignora o Princípio de Transferência Retroactiva

Trata-se de uma afirmação que entra em rota de colisão com as explicações formais que o próprio executivo já forneceu ao Tribunal Administrativo (TA) e com a lógica da lei que instituiu o fundo.

O cerne da contradição está no facto de ter sido o próprio Governo que, anteriormente, estabeleceu o princípio da “transferência retroactiva” (feita a posterior) justificando que, embora o fundo não existisse fisicamente, o dinheiro para ele já estava a ser arrecadado e precisava de ser contabilizado. Igualmente, ignora o facto de o dinheiro em causa ter sido desviado em três parcelas das receitas declaradas entre 2022 e 2024.

Ao afirmar que o valor “entrou na Conta Única do Tesouro e foi usado numa despesa normal”, o Governo descreve com precisão o acto que o TA classificou como irregular, pois o valor só poderia passar para o Orçamento do Estado depois de passar pela Conta Transitória de onde seria feita a repartição.

É que o  problema não é a cobrança pela Autoridade Tributária, mas sim o seu desvio do circuito legalmente definido para essas receitas específicas. A Lei n.º 1/2024, de 9 de Janeiro, que cria o Fundo Soberano de Mocambique (FSM), não se limitou a estabelecer um cofre para o futuro, pelo contrário, ela definiu, no seu artigo 6.º, um regime especial e retroactivo para a gestão de todas as receitas da exploração de hidrocarbonetos.

Foi com base nesse mesmo artigo que o próprio Governo, no seu relatório sobre a execução orçamental, justificou o depósito de 164,69 milhões de dólares na Conta Transitória, um montante que inclui explicitamente receitas de 2022 e 2023. Na sua resposta formal ao TA, o Executivo detalhou que “o valor da Receita do Gás da Bacia do Rovuma cobrado de Dezembro 2022 a Dezembro de 2024 é de USD 164.68 milhões” e que “o valor depositado na Conta Única Transitória (…) é de USD 131.03 milhões”, reconhecendo assim a diferença de 33,65 milhões de dólares.

Ou seja, o Governo já havia admitido que as receitas de 2022, 2023 e primeiro trimestre de 2024 deviam ser integradas na Conta Transitória (daí tê-las somado retroactivamente). Reconheceu, quando confrontado, que uma parte dessas receitas (os 33,65 milhões) não seguiu para a Conta Transitória, tendo sido, em vez disso, consumida como “despesa normal” no Orçamento do Estado, ou seja, sacou-se o mel antes de cair no pote de onde se faz a divisão.

Portanto, a afirmação da primeira-ministra de que não poderia haver desvio porque o fundo não existia é juridicamente frágil. A lei posterior veio criar a estrutura final do fundo, mas consagrou o princípio de que as receitas do gás cobradas no passado recente lhe estavam destinadas. Ao utilizar esses recursos para financiar despesas correntes, o Governo antecipou-se e violou o destino que a própria lei viria a confirmar.

O “desvio” não é do fundo como entidade, mas do destino legal que foi estabelecido para esses recursos específicos. O compromisso de “regularização” que o Governo assumiu perante o TA é, por si só, o reconhecimento tácito de que o procedimento inicial, agora defendido publicamente pela primeira-ministra, não estava correcto e precisa de ser rectificado.

Dinheiro foi desviado em três parcelas antes de chegar à conta que faz a distribuição.

Com um trocadilho de palavras o Governo está a tentar lançar areia nos olhos dos moçambicanos. De acordo com o Relatório e Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2023, emitido pelo Tribunal Administrativo, até Março de 2024, a Conta Transitória tinha um saldo de 60.589.023,82 USD, dos quai, 47.582.992,19 USD depositados em 2023 e 13.006.031,63 USD canalizados nos primeiros três meses de 2024.

A essa altura, o auditor das contas públicas referia que de 2022 a Março de 2024 tinham sido cobrados 94,2 milhões de USD, contudo a conta mostra que o valor cobrado em 2022 (800 mil USD) não foi depositado na Conta Transitória, enquanto em 2023, dos 73,36 milhões de USD anunciados, apenas 47,58 milhões de USD foram depositados, faltando 25,78 milhões de USD.

Já no Primeiro Trimestre de 2024, foram declarados 20,08 milhões de USD, mas somente 13,01 milhões de USD foram depositados, faltando depositar 7,07 milhões de USD.  São esses montantes que somados totalizam 33,65 milhões.

Como se pode depreender, na prática, o argumento governamental desmorona-se diante dos números do TA, que apontam que quando os auditores foram verificar as receitas do gás a Conta Transitória já apresentava um saldo incompleto.

Isso significa que o dinheiro não foi desviado depois da repartição entre o Fundo Soberano e o Orçamento do Estado, mas antes mesmo de lá chegar, levantando sérias dúvidas sobre o controlo e a transparência do fluxo financeiro das receitas do gás natural, consideradas uma das principais apostas económicas do País para a próxima década.

O que é e como funciona a Conta Transitória?

A Conta Transitória é um mecanismo financeiro criado para assegurar transparência e rastreabilidade na gestão das receitas provenientes do gás natural da Bacia do Rovuma. Trata-se de uma sub-conta da Conta Única do Tesouro (CUT), gerida pelo Ministério da Economia e Finanças, onde todo o valor arrecadado com a exploração do gás deve ser depositado integralmente antes de qualquer utilização ou repartição.

Na prática, a Conta Transitória funciona como um ponto de passagem obrigatório: todas as receitas do gás entram primeiro nessa conta e, só depois, são distribuídas conforme determina a lei — 40% para o Fundo Soberano de Moçambique (FSM), destinado a investimentos de longo prazo, e 60% para o Orçamento do Estado, que financia despesas públicas correntes e programas sociais.

A lógica dessa estrutura é simples e essencial para a boa governação das finanças públicas: o depósito prévio na Conta Transitória garante que o montante total arrecadado seja verificável, auditável e devidamente registado antes da sua afectação. Isso permite acompanhar o percurso do dinheiro desde a origem (as receitas do gás) até ao seu destino final, prevenindo desvios, subdeclarações ou usos indevidos.

Contudo, segundo o relatório do Tribunal Administrativo (TA), foi justamente nesse ponto crucial que se verificou a irregularidade. O TA constatou que os 33,65 milhões de dólares em receitas do gás nunca chegou à Conta Transitória. Em termos técnicos, isso significa que o desvio ocorreu antes da entrada do dinheiro na conta, ou seja, antes de qualquer distribuição entre o Fundo Soberano e o Orçamento do Estado.

Por isso, o argumento de que o desvio não poderia existir por o Fundo Soberano ainda não estar operacional perde fundamento: o problema não reside na fase de repartição, mas sim na origem do fluxo financeiro, onde o montante total deveria ter sido depositado e não foi.

Em resumo, a Conta Transitória é o coração do sistema de gestão das receitas do gás, o local onde tudo deve ser registado, contado e validado. Se o dinheiro não chega lá completo, a integridade de todo o processo fica comprometida, e é precisamente isso que o Tribunal Administrativo apontou ao Governo.

A discrepância dos 33,6 milhões de dólares é, portanto, um facto contabilístico material que exige e terá, segundo o compromisso assumido, uma correcção formal, realçando o papel crucial do Tribunal Administrativo na defesa da legalidade e da transparência da gestão pública

Ao confrontar-se o Governo, este admitiu que, no lugar de transferir o dinheiro para a Conta Transitória, o valor foi cobrado pela Autoridade Tributária e foi para o OE.

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