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- “Juntos pela vida” expõe a urgência do diagnóstico precoce e a crise de apoio logístico que ameaça a continuidade do tratamento.
- Drama das mulheres que adiam a procura por ajuda.
A luta diária contra o cancro da mama é enfrentada por milhares de mulheres em Moçambique, uma batalha travada na esperança e na dor, muitas vezes solitária e silenciosa. Segundo dados epidemiológicos e projecções de saúde pública, a doença constitui o segundo cancro mais prevalente no país, superado apenas pelo cancro do colo do útero, representando uma pesada carga para o sistema nacional de saúde e para as famílias. O diagnóstico tardio, impulsionado pela falta de acesso a rastreios regulares e pelo desconhecimento dos sintomas, é uma realidade cruel que coloca muitas mulheres a competir contra o tempo. É neste cenário de urgência e necessidade de consciencialização que o Outubro Rosa se ergue como um farol de esperança. Foi nesse âmbito que decorreu, em Maputo, no Polana Serena Hotel, o evento “Juntos pela Vida”, uma iniciativa da Casa Rosa e do hotel que reuniu especialistas, assistentes sociais e, mais importante, mulheres, cujos testemunhos de força e resiliência iluminaram a jornada de sensibilização e solidariedade na luta contra a doença oncológica.
Luísa Muhambe
A vida de Arminda Paulo, como a de tantas mulheres em Moçambique, deu uma reviravolta abrupta em 2023. No princípio, o que a sentia era apenas um nódulo subtil que, por ingenuidade ou negação, ela esperava que desaparecesse com o tempo. Mas o tempo não trouxe a cura: trouxe a mudança, o desconforto crescente e, com ele, a certeza de que algo estava profundamente errado. A decisão de fazer o exame, no início deste ano, culminou no temido diagnóstico: cancro da mama.
“Eu tinha um nódulo na mama, mas não prestei muita atenção porque pensei que fosse uma coisa que, com o tempo, fosse passar, mas conforme o tempo passava, eu senti que aquele nódulo ia mudando, já estava muito desconfortável. No início desse ano, eu decidi fazer o exame. Foi daí que eu tive os resultados. O que eu mais temia era o diagnóstico de câncer da mama. Chorei, foi difícil. Fiquei com medo, tive incertezas, mas, graças a Deus, com a ajuda da minha família, que sempre me apoiou, eu consegui ganhar uma força de vontade,” contou.
Arminda recorda com pesar o tormento que foi a confirmação do câncer. Foi nesse abismo de pavor que Arminda encontrou o seu alicerce. O apoio incondicional da família transformou o medo em determinação. Foi uma voz interna, quase um pacto consigo mesma, que a impulsionou:
“Eu disse para mim, eu não vou morrer disso. Se o Senhor colocou esse obstáculo na minha vida, porque o Senhor já me fez vencer.”
Operada no mês passado, Arminda aguarda o próximo passo, a quimioterapia, mas o seu coração está inundado de gratidão.
“ Fui operada no mês passado, dia 24, e estou em observação, esperando o segundo passo, que é a quimioterapia. Sou grata a Deus, digo isso com o coração cheio de gratidão. Se eu não tivesse prestado atenção, eu não estaria aqui contando esta história dessa maneira,” disse, reconhecendo a importância de prestar atenção aos sinais.
A aceitação é o primeiro passo para a cura
Entre as vozes de superação, Carla Pelembe partilhou uma narrativa crua de medo e redenção. O diagnóstico de cancro da mama ressuscitou o trauma familiar, a perda da tia, fazendo-a temer o pior. A notícia no hospital levou-a a uma reacção instintiva de fuga.
“A primeira coisa que eu fiz foi sair do hospital, queria suicidar-me, cheguei à praia com essa intenção, mas depois pensei nos meus filhos.”
A sua recuperação, contudo, veio de uma determinação interior em transformar a doença numa batalha a ser vencida. Carla sublinha que a chave de tudo foi a aceitação da doença, um passo que muitos pacientes resistem a dar, mas que ela considera ser o mais libertador e mobilizador.
“Mas a primeira coisa que eu quero dizer-te é: a primeira coisa que tu deves fazer é aceitar a doença. Eu aceitei a doença, comecei a fazer uma quimioterapia, a minha primeira sessão, foi dolorosa, a minha penúltima sessão, os meus pés doíam, eu fiquei um ano sem trabalhar. Eu tenho graça, graças a Deus, porque tive apoio da minha família, e o meu chefe também me devolveu ao serviço”, relatou.
Carla Pelembe personifica a ideia de que o controlo se recupera na atitude. A sua preparação psicológica foi tal que quando lhe disseram que o cabelo cairia, ela agiu proactivamente, rapou-o, assumindo o novo visual como um símbolo de força, não de fragilidade. A sua mensagem mais poderosa é um apelo urgente ao autoconhecimento.
“Para dizer: mulheres, temos que nos conhecer. Eu sou a prova viva de cancro, temos que ir ao hospital cedo,” defendeu.
Perigo da normalização do anormal
A luta contra o cancro do colo do útero encontrou uma porta-voz em Rosita Larissa, cuja história é um alerta dramático sobre a subestimação de sintomas. O seu diagnóstico, em 2022, foi descoberto por acaso, quando procurava operar miomas. A doença já estava descontrolada, exigindo cirurgias complexas e tratamento no exterior. Rosita quase sucumbiu, atingindo o peso crítico de 45 quilos.
“Quando eu fui ao hospital, o objectivo era o de operar os miomas, mas descobriu-se o câncer de útero, que já estava descontrolado. O médico fez o que pôde, mas não tinha outra coisa para fazer, então aconselhou-me a fazer o tratamento fora, que era a única chance que eu tinha de poder sobreviver. Chegando lá, com o relatório do médico, descobriu-se que o que se tinha feito aqui não tinha sido correcto, porque o câncer já estava há sensivelmente 28 dias desgovernado. Tinham lá células cancerígenas, já descongeladas, e foi submetida a uma segunda cirurgia. E dessa segunda cirurgia, descobriu-se que o câncer já estava nos intestinos, e já estava desgovernado, eu tive de voltar ao hospital, a operar, e retirei o intestino para depois começar as quimioterapias”, revela.
Rosita Larissa, que sobreviveu a três cirurgias de barriga aberta e a 30 sessões de quimioterapia, fez um apelo veemente, desmistificando crenças perigosas e detalhando os sinais que ignorou.
“Eu fiz 30 sessões de quimioterapia, no período de seis meses. Depois da cirurgia das quimioterapias, para me recuperar um pouquinho, para depois fechar a colectomia, que é desenvolver o intestino para que eu faça necessidades maiores de forma normal. Eu tive isso (período irregular), não prestei atenção, e, no âmbito das relações sexuais, achamos que o sangramento, depois do acto, é normal, mas não é porque o sexo é prazeroso, então não pode ser um momento de dor. Foram vários sintomas. Eu tive vários sintomas do cancro do útero, depois do diagnóstico, e fomos percebendo que não, que aquilo que acontecia, portanto, não era normal”, contou.
A sua mensagem é clara: o diagnóstico precoce é a diferença entre a vida e o sofrimento extremo.
“Eu cheguei ao hospital tarde. Eu tive que passar por três cirurgias de barriga aberta, mas, se eu tivesse diagnosticado o cancro no estado inicial, eu podia ter evitado tudo por que passei. Então, peço, por favor, que não normalizem o anormal,” apelou.
Desafios logísticos e a falta de apoio social
Os desafios em Moçambique vão muito além da medicina. Os profissionais de saúde presentes expuseram a face mais dura da oncologia: as barreiras socioeconómicas que impedem o tratamento.
Judite Timane, da Casa Rosa, detalhou o drama do abandono do tratamento, um flagelo impulsionado pela pobreza e pela distância. A Casa Rosa tenta ser a ponte entre a doença e a cura, mas os desafios são imensos.
“Temos enfrentado muitas desistências em pacientes, porque eles dizem que muitas das vezes não têm um corpo para poder apanhar um chapa, para poderem chegar ao hospital e darem continuidade com o tratamento. Temos enfrentado também problemas com a própria medicação. Existe a medicação grátis, mas às vezes o hospital também não tem”, revelou.
Judite Timane revelou que o tratamento do cancro da mama, em particular, requer medicação específica que, quando indisponível no sistema público, tem de ser adquirida a preços elevados, levando muitas mulheres a interromper a terapêutica. A falta de nutrição adequada e a dificuldade em regressar a casa, especialmente para pacientes das províncias, que ficam meses no hospital, constituem um pedido de socorro.
“Pedimos intensamente o amor de todos em tentar apoiar aquilo que for possível à oncologia para nós podermos apoiar as pessoas que estiverem lá em tratamento.”
O Dr. Elídio, assistente social, sublinhou a precariedade das infra-estruturas de acolhimento. A centralização dos serviços de oncologia no sul do país, principalmente em Maputo, força pacientes de toda a nação a deslocarem-se.
“Só para vocês terem uma noção: aqui, na cidade de Maputo e Matola, nós só temos uma casa de apoio ao doente. E essa casa já está superlotada. Que é a Casa John. É uma casa que acolhe sem cobrar nada a todos os doentes que vêm das províncias, quando têm um lugar para eles ficarem,” disse.
A superlotação da Casa John obriga os profissionais a recorrerem à sua rede pessoal para encontrar alojamento.
Alberto Gudo Morais, oncologista e responsável pelo serviço de Radioterapia do HCM, forneceu o enquadramento científico da doença, descrevendo o cancro como uma alteração genética multifactorial que confere às células a capacidade de crescimento descontrolado e de migração (metástase). No entanto, o seu foco rapidamente se desviou da técnica para o humano.
O oncologista destacou o tratamento complexo e multidisciplinar que o HCM oferece: cirurgia, quimioterapia, radioterapia e a dificuldade na aquisição de medicamentos essenciais. Mas a sua intervenção terminou com a defesa apaixonada do impacto do apoio social no prognóstico dos doentes.
“E está provado que quem faz o tratamento com apoio social, com apoio familiar, tem muito mais chances de cura, tem muito mais chances de tratamento dar certo. Se comparado com os doentes que são abandonados, que entram em depressão, que acabam desistindo, que acabam falhando os seus tratamentos, a chance de falha é muito maior”.
Morais defendeu que a solidariedade não é um substituto da acção governamental, mas uma extensão do braço social da comunidade. O gesto de ‘dar uma fruta’, um ‘abraço bom’, ou de ajudar com o transporte pode ser a diferença entre a vida e a morte, pois o tratamento do cancro não é uma corrida de um dia, mas um “casamento com o serviço”, que dura pelo menos cinco anos.
Cenário oncológico em Moçambique: Uma urgência nacional
Os testemunhos e os apelos dos especialistas ecoam um cenário preocupante em Moçambique. O cancro do colo do útero e o cancro da mama são os principais flagelos oncológicos femininos. O primeiro é o mais incidente e mortal, impulsionado pela baixa cobertura de rastreio e pela infecção pelo vírus HPV. O cancro da mama, o segundo mais comum, também é diagnosticado maioritariamente em fases avançadas.
A carência de recursos, a escassez de centros de tratamento fora da capital e a falta de consciência sobre os sinais precoces, como evidenciado por Rosita Larissa, elevam as taxas de mortalidade. O cancro em Moçambique é, portanto, uma doença de saúde pública, mas também uma doença de pobreza, onde a falta de dinheiro para o transporte ou para uma dieta adequada pode ditar a falha do tratamento.
O evento “Juntos pela Vida” foi um momento de reflexão e mobilização. As histórias de Arminda, Carla e Rosita, de vida e de luta, tornam o Outubro Rosa não apenas uma campanha, mas um movimento de humanidade e resiliência, provando que, perante o cancro, a cura começa muitas vezes com um abraço, um bilhete de autocarro, ou o simples acto de ouvir o próprio corpo.



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