Share this
John Kanumbo
Há um conceito antigo, quase esquecido, que diz que o poder só se mantém enquanto o povo acredita nele. No momento em que a crença se rompe, o poder continua de pé apenas como corpo sem alma, sustentado pelo medo e não pela legitimidade. É a partir desta ideia simples, mas brutal, que olho para Moçambique de hoje: um país onde o Estado ainda existe, mas a confiança já morreu; onde as instituições falam, mas o povo já não escuta; onde se governa por inércia, não por visão. E não, isto não é pessimismo — é lucidez. Porque só quem reconhece a doença pode começar a cura. Eu chamo a isso o paradoxo moçambicano: um país que promete futuro mas mantém o povo preso à espera; um poder que se diz democrático mas só funciona para poucos; uma nação que cresce em teorias e declina em prática e transforma a sobrevivência em hábito, como se o sofrimento fosse rotina aceitável.
Fizeram-nos acreditar durante décadas que a centralização era sinónimo de unidade, que concentrar o poder em Maputo era necessário para manter o país inteiro. Mas a filosofia política ensina o contrário: quando tudo se concentra, tudo apodrece. Um poder distante deixa de ouvir, um poder que não ouve deixa de sentir, e um poder que não sente torna-se cruel sem perceber que o é. A desconcentração que nos apresentam hoje é apenas um remendo administrativo num sistema moralmente falido. Distribuem tarefas, mas guardam o comando. Espalham funcionários, mas trancam as decisões. Administradores distritais, governadores e directores provinciais não governam: eles são sombras que obedecem, repetem e justificam o que lhes é imposto, enquanto a vida das populações continua a depender de decisões que eles nunca tomam. Chamam isso de reforma; eu chamo de medo travestido de técnica, e quem paga essa conta é sempre o cidadão comum.
E se a Frelimo governa com medo de perder o controlo e se esconde atrás da centralização e do discurso da unidade, a oposição, por sua vez, adora gritar, mas detesta resistir. RENAMO, MDM, PODEMOS — prometeram ser vozes do povo, mas na prática são ecos fracos de si mesmos. Abandonar a sala daquele jeito é teatral, gera manchetes, dá visibilidade, mas não muda nada. A RENAMO ainda vive da memória, da história do passado, mas esqueceu que presença é poder e ausência é silêncio. O MDM já simbolizou frescura e ruptura, hoje se acomoda e oscila entre indignação e medo. O PODEMOS entrou com slogans de juventude e mudança, mas política não se faz com palavras bonitas: faz-se com combate constante, presença firme, pressão e registo de cada injustiça. O povo elegeu deputados para resistirem, enfrentarem, debaterem, registarem e pressionarem — não para saírem da arena e reforçarem o sistema que dizem querer quebrar. Eu chamo isso covardia parlamentar, e é tão perigosa quanto a centralização excessiva da Frelimo, porque paralisa qualquer chance real de mudança.
A descentralização verdadeira é antítese dessa lógica do medo e por isso mesmo assusta. Ela implica confiar no povo, aceitar o erro local como parte do crescimento, permitir que as províncias decidam, falhem, aprendam e avancem. Implica aceitar que Moçambique não é um quartel nem uma empresa familiar, mas uma nação viva, diversa e pensante. Quem bloqueia a descentralização não o faz por patriotismo, faz por autopreservação. Porque descentralizar é abrir mão do controlo absoluto, é permitir que o cidadão deixe de ser súbdito e passe a ser protagonista e não um espectador, nunca avançou porque ameaça os interesses de quem se alimenta do caos. Eu chamo isso democracia de gabinete: decisões vitais tomadas longe do território, vendidas como participativas, e acompanhadas de uma coreografia de relatórios, estudos e debates técnicos que nunca chegam ao povo
É nesse vácuo que o absurdo floresce: a LAM cobra bilhetes caríssimos como se voar dentro do país fosse luxo internacional, enquanto elites viajam sem pagar nada, protegidas pelo estatuto político. Energia cara, impostos absurdos, serviços públicos degradantes, megas a voarem todos os dias sem se perceber, tudo isso é sustentado pelo silêncio cúmplice do povo e pelo desprezo absoluto de quem governa. Chamam isso modernização, eu chamo parasitismo institucionalizado.
Mas enquanto esse debate se arrasta nos salões técnicos, a vida real dói. Dói quando um voo doméstico custa o mesmo que um intercontinental. Dói quando visitar a família vira um privilégio. Dói quando a LAM simboliza não mobilidade, mas exclusão. Dói quando o cidadão paga tudo — bilhete, energia, impostos, taxas — e assiste a uma elite política a circular sem pagar nada, protegida por um sistema que se serve a si próprio. Isso não é apenas má gestão; é uma filosofia de governação que normalizou a desigualdade como método. Em outra dimensão chamo isso síndrome do voo doméstico: cada bilhete caro, cada serviço inacessível, cada decisão distante é um lembrete de que o Estado funciona para poucos e sufoca muitos.
Porque há outro conceito filosófico que importa recordar, nenhum sistema injusto consegue impedir indefinidamente a emergência da consciência. Eu chamo o que vejo hoje em Moçambique sorriso revolucionário, o espírito da população que, mesmo cansada, observa, questiona, critica e sonha com justiça. A história é clara. Regimes caem não quando o povo passa fome — mas quando o povo deixa de acreditar na narrativa que o oprime. As manifestações recentes não criaram Moçambique, mas despertaram-no. Elas rasgaram o véu do medo e expuseram uma verdade incómoda: o regime não teme o caos; teme a clareza. Teme que o povo perceba que a mudança não é perigosa — perigoso é permanecer imóvel.
O chamado Diálogo Nacional Inclusivo só será digno desse nome se produzir decisões que redistribuam poder, recursos e responsabilidade. Não precisamos de mais discursos bem escritos, precisamos de planos concretos: autonomia financeira local, governação provincial com autoridade real, municípios livres da interferência partidária permanente, serviços públicos pensados a partir do território e não do gabinete. Isso não é radicalismo; é racionalidade política moderna. Países que funcionam fazem isso. Países que fingem funcionar evitam.
O País está exausto, o sistema está doente, mas a mudança é possível. O que falta é coragem: coragem intelectual, coragem política, coragem moral. Quanto mais se adia a descentralização real, mais frágil se torna o Estado; mais evidente se torna que a elite teme a consciência do povo mais do que qualquer protesto. E como na história de todos os povos, tudo o que tem começo tem fim.



Facebook Comments