As marcas de um regime autoritário

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  • Filipe Nyusi impõe ditadura e tem o judiciário no bolso

A semana finda foi prenhe em acontecimentos que representam a última machadada ao Estado de direito democrático, confirmando o que relatórios internacionais já vinham alertando sobre uma tendência autoritária do regime da Frelimo, sobretudo desde que o Presidente da República, Filipe Nyusi, tomou o poder, altura em que surgiram os esquadrões da morte, embruteceu-se a polícia, começou-se a limitar severamente direitos e liberdades dos cidadãos e agora surgem evidências cada vez mais claras de que o sector judiciário está capturado, como o que se viu, há dias, quando um selecto grupo de interesse, que inclui governantes, conseguiu mobilizar todo o aparelho do Tribunal Administrativo para em menos de cinco horas deliberar a seu favor, o que deixa depreender que os tribunais estejam também a funcionar com base em ordens superiores. A polícia, por seu turno, voltou a repelir, sem nenhum argumento democraticamente aceitável, uma manifestação popular, como, de resto, tem sido apanágio nos últimos anos, completando o ciclo de uma governação que se confunde com uma ditadura.

Reginaldo Tchambule

Daqui a mais alguns anos, provavelmente, os tempos em que os moçambicanos vivem poderão ser lembrados como os mais sombrios e tenebrosos que o país já viveu desde a institucionalização do Estado de Direito democrático, tal como hoje se tem memória de António Oliveira Salazar, em Portugal, e Benito Mussolini, na Itália, que, na sua época, institucionalizaram a repressão da oposição por via da força, limitaram direitos e liberdades e levaram ao extremo o controlo das instituições do Estado.

É que, de um tempo a esta parte, o regime liderado por Filipe Nyusi tem estado a investir na limitação de direitos e liberdades na repressão policial, e há sinais claros de captura do sistema judiciário, para além de intimidação às vozes discordantes, culto à personalidade, institucionalização de esquadrões da morte, que vitimaram académicos, políticos e activistas sociais, bem como a criação de grupos de choques para diabolizar críticas ao governo do dia.

E como tal, o país, que nunca conheceu uma democracia plena e sempre estagnou nas “democracias híbridas”, variando apenas a pontuação, tem estado anualmente em queda livre no Índice Democracia, tendo saído de uma democracia híbrida para um Estado Autoritário, onde se mantém há quatro anos. Um Estado autoritário é aquele em que os governantes forçam o povo à apatia com recurso à força, à obediência passiva e à despolitização.

O autoritarismo tem como características a exclusividade do exercício do poder; arbitrariedades; enfraquecimento dos vínculos jurídicos; alteração da legislação institucional, criando regras para a auto-manutenção do poder; restrição substancial das liberdades públicas e individuais; impulsividade nas decisões; agressividade à oposição; controle do pensamento; censura às opiniões; cerceamento das liberdades individuais, de pensamento, religiosas e de imprensa; cerceamento das liberdades de movimentação; e emprego de métodos ditatoriais e compulsórios de controlo político e social.

É exactamente o que se tem vindo a assistir nos últimos dias. Na semana passada, o enfraquecimento de vínculos jurídicos ficou mais evidente com a demonstração de uma total falta de independência do poder jurídico em relação ao poder político.

A polémica decisão do Tribunal Administrativo, de levantar a suspensão das taxas de portagens, batendo todos os recordes de rapidez na tramitação de um expediente jurídico, veio confirmar que o sector judiciário moçambicano está a reboque do poder político e acredita-se que aquela decisão resultou de uma pressão política e directa do próprio Chefe do Estado.

Poderes judiciais e legislativos capturados

A Constituição da República preceitua que Moçambique é um Estado de direito democrático, uma forma de governação que reconhece a separação dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário). No entanto, nos últimos dois ciclos de governação assiste-se ao poder político a sobrepor-se aos demais.

Na verdade, sempre se reclamou falta de independência do poder judicial, mas nunca a promiscuidade entre os dois poderes esteve tão à vista. As pinceladas do Ministério Público no processo do julgamento das dívidas ocultas para proteger o partido Frelimo e o Presidente da República, apesar de haver provas bastantes de se terem beneficiado de USD 10 milhões e USD 2 milhões, respectivamente, são ilustradores do controlo que o poder político tem sobre o judiciário.

Aliás, o Conselho Constitucional teve sobre a mesa, nas últimas eleições, provas bastantes sobre a fraude eleitoral, contudo, validou os resultados mesmo assim, e no dia seguinte após a tomada de posse para o segundo mandato, Filipe Nyusi foi jogar golfe e na claque tinha como uma das torcedoras a Presidente do Conselho Constitucional, Lúcia Ribeiro, como que a revelar a promiscuidade entre os poderes executivos e judiciário.

Quanto ao poder legislativo, não obstante a ditadura da maioria no parlamento, Filipe Nyusi teve a ousadia de tomar decisões sem o mínimo consultar a Assembleia da República à semelhança da ilegalidade cometida aquando da contratação das dívidas ocultas. Uma das decisões tomadas à revelia do parlamento é a vinda das tropas ruandesas à luz de acordos que nem sequer foram submetidos a este órgão para sua homologação.

A oposição até tentou questionar esta arbitrariedade, mas a resposta de quem sempre se mostrou contra a vinda de tropas de fora veio curta e grossa: “não havia tempo”. Como resultado, neste momento, não se sabe qual parte do quinhão dos recursos naturais é que vai pagar a factura da intervenção.

Juntando a captura dos poderes legislativos e judiciário à repressão policial, limitação da participação política dos cidadãos, limitação dos direitos e liberdades cria-se a mistura perfeita para uma ditadura, um regime descrito por teóricos como sendo aquele em que o poder está em apenas uma instância, ao contrário do que acontece na democracia, onde o poder está em várias instâncias, como o legislativo, o executivo e o judiciário.

E se as acções já escancaram a triste realidade, Filipe Nyusi faz questão de vincar a sua veia ditatorial também no discurso. Na semana finda, na abertura do ano judicial, mobilizou os vários pilares do sector judiciário para restringir ainda mais as liberdades, ou seja, para combater aquilo que chamou de organizações políticas clandestina, numa referência à organizações da sociedade civil, em particular ao Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD), que nos últimos dias liderou uma campanha contra as portagens.

Dos esquadrões da morte à limitação das liberdades

Os primeiros sinais de autoritarismo no governo de Filipe Nyusi começaram a surgir logo no início da sua governação, em 2015, e tiveram gosto de sangue humano. O actual chefe do Estado não havia sequer completado dois meses no poder quando, a 03 de Março de 2015, foi assassinado a sangue frio e à luz do dia o constitucionalista e professor universitário, Gilles Cistac.

Cistac viria a ser a primeira vítima dos esquadrões da morte, que durante quase cinco anos perseguiram, violentaram e assassinaram académicos, políticos, jornalistas e activistas sociais tidos como críticos ao regime.

Na lista das vítimas dos esquadrões da morte constam ainda Jeremias Pondeca, Mahamudo Amurane e Anastácio Matavele, só para citar alguns exemplos, e, até hoje, a Procuradoria-Geral da República só conseguiu solucionar o último assassinato perpetrado por agentes do Grupo de Operações Especial, uma força de elite dentro da Unidade de Intervenção Rápida da Polícia da República de Moçambique (PRM), que foram neutralizados após capotarem logo depois do crime.

Era a revelação de que o crime era organizado, planificado e executado dentro da instituição que curiosamente tem como competência garantir a Lei, Ordem e Tranquilidade Pública, até porque todos os casos seguiram o mesmo padrão.

Tal como Cistac, o antigo deputado e membro sénior da Renamo, que liderava o grupo da Renamo nas negociações com o Governo, Jeremias Pondeca, foi, a 8 de Outubro de 2016, assassinado com recurso a uma AK 47, uma arma de uso exclusivo das Forças de Defesa e Segurança no território nacional. Foi regado de balas, em plena Marginal, por indivíduos que se faziam transportar numa carrinha, quando estava a fazer o seu exercício matinal.

Já Mahamudo Amurane, falecido presidente do município de Nampula, foi crivado de balas, a 4 de Outubro de 2017, início da noite, quando saía da sua farmácia. Testemunhas oculares falam de seis pessoas que se aproximaram da vítima e o atingiram com três balas, e depois fugiram numa viatura descaracterizada.

O último caso, e que destapou o véu, foi do assassinato à queima-roupa, a uma semana das eleições gerais de 15 de Outubro de 2019, do director executivo do FONGA e observador da Sala da Paz, Anastácio Matavele, quando preparava a missão de observação eleitoral. O acto macabro foi perpetrado por agentes do Grupo de “Operações Especiais” da Unidade de Intervenção Rápida. Os agentes à paisana faziam-se transportar numa viatura descaracterizada, que depois se provou pertencer ao presidente do Município de Chibuto e membro sénior da Frelimo, Henrique Machava.

Os criminosos, em número de cinco, conseguiram fugir do local, mas viriam a envolver-se num acidente que tirou a vida de dois integrantes, dois foram detidos e outro está foragido. Após o julgamento, em que curiosamente foram defendido por Elísio de Sousa, um lacaio da propaganda de Filipe Nyusi, foram condenados a penas de três a 24 anos.

Para além dos casos mortais, dois reconhecidos académicos da praça (José Jaime Macuana e Ericino de Salema) foram raptados por desconhecidos em momentos diferentes, seviciados e abandonados numa área baldia, na província de Maputo. Já o jornalista Matias Guente, do semanário Canal de Moçambique, escapou ao rapto, mas carrega no peito e no corpo as marcas de golpes de tacos de basebol. 

Limitação do direito à manifestação

Analistas do The Economist Intelligence Unit, na sua avaliação sobre o índice de democracia, avaliam itens como “processo eleitoral e pluralismo; funcionamento do Governo; participação política; cultura política; e liberdades civis. No caso de Moçambique, o Índice de Democracia de 2020 avaliou negativamente os processos eleitorais e pluralismo (2,58 pontos), o funcionamento do Governo (1,43 pontos) e as liberdades civis (3,53 pontos).

No que a liberdade civil diz respeito, há cada vez mais uma acentuada tendência de deterioração, com os constantes atropelos à liberdade de reunião e manifestação consagrada pelo artigo 51º da Constituição da República (CRM), conjugado com Lei 9/91 (11 de Julho), alterada pela Lei 7/2001 que regula que a demonstração não necessita de autorizações (artigo 3º, n.º 1).

A Lei dispõe que «todos os cidadãos podem, pacificamente e livremente, exercer o seu direito de reunião e de manifestação, sem qualquer autorização prevista pela lei». O artigo 11º da Lei n.º 9/91 prevê especificamente que «a decisão de proibir ou restringir [a liberdade de reunião e demonstração] deve ser fundamentada e notificada aos promotores […] no prazo de dois dias a contar da recepção da comunicação.

No entanto, desde que Filipe Nyusi tomou o poder, este direito foi ilegalmente “borrado” da Constituição e da lei ordinária, fazendo emperrar a violência policial, tal como se viu quando jovens tentaram marchar pacificamente contra as portagens. Mas antes, o regime de Filipe Nyusi já havia repelido mais de uma dezena de manifestações devidamente comunicadas, tal como manda a lei.

Curiosamente, as organizações sociais da Frelimo (OJM e OMM) marcham quase sempre em saudação do Presidente da República, uma espécie de culto à personalidade ao estilo de ditaduras como a Coreia do Norte. Filipe Nyusi é de tal forma cultuado que membros do governo a vários níveis em vez de insígnias com o símbolo do Estado, hoje em dia envergam a foto do Presidente da República. Nas redes sociais, de quando em vez, os membros do partido Frelimo são obrigados a trocar as fotos de perfil pela do chefe do Estado.

Acto contínuo, hoje, além de repelir manifestações com violência, atingiu-se um nível em que até simples conferências de imprensa convocadas por organizações da sociedade civil são repelidas pela polícia. Por duas ocasiões, num espaço de um mês, membros da Associação Rede dos Direitos Humanos foram recolhidos para as celas da polícia quando se preparavam para dar uma conferência de imprensa em reivindicação contra o aumento do custo de transporte e mais tarde do Imposto Pessoal Autárquico, numa altura em que o custo de vida tende a subir.

Tentativa de limitação da liberdade de imprensa

Um outro episódio que marca o retrocesso no capítulo de direitos e liberdades tem a ver com uma tentativa frustrada de limitar a liberdade de imprensa por via da introdução de taxas proibitivas. Por exemplo, para abrir um jornal, o decreto 40/2018, de 23 de Julho, publicado em Boletim da República, impunha o pagamento de 200 milhões, enquanto que para abrir uma rádio de dimensão nacional os proponentes deviam pagar dois milhões e para televisão de dimensão nacional custava três milhões de meticais.

Para que um correspondente estrangeiro pudesse trabalhar em Moçambique devia pagar 500 mil meticais e igual valor pela renovação da acreditação. Os “freelancers” estrangeiros deviam pagar pela acreditação 150 mil meticais e igual valor pela renovação, e os “freelancers” nacionais estavam sujeitos a uma taxa de 30 mil meticais pela acreditação e pela renovação.

A pedido do MISA – Moçambique, o Conselho Constitucional declarou o decreto inconstitucional, deitando abaixo o plano do governo de limitar o exercício de jornalismo no país. O Conselho Constitucional reconheceu que o decreto limitava garantias constitucionais como a Liberdade de Imprensa e o Direito à Informação, elementos fundamentais para a Democracia.

O Governo que já estava a implementar o decreto há mais de um ano e meio teve de recuar, contudo, neste momento, estão em curso outras estratégias, incluindo a sabotagem das publicações através do scan e partilha de jornais nos WhatsApps e intimidações. O caso mais grave foi o incêndio intencional à redacção do Jornal Canal de Moçambique, que se tornou o mais vil ataque contra a imprensa.

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